Tartarugueiro e o seu segredo guardado a medo.



chegar ao Tartarugueiro e Santana é descobrir um pedaço da África mãe, entre chuvas e esquecimento, perdida na boca do Arari. O visitante não vá lá procurar tartarugas ou araras nem saber do antigo engenho dos frades Mercedários, que outrora existiu ali. Bichos de casco ou de couro que antes havia em quantidade foram comidos pela necessidade dos antigos moradores e o velho engenho real com moenda de cana, movida à maré motriz, foi gostosamente devorado pela ferrugem do tempo e a desmemória da gente. 

em compensação, vagamundo das margens da civilização que lá chegar há de ter uma boa safra de história de griô da melhor qualidade a par de uma xícara de café quente com aroma de erva doce torrado e moído em casa... Fazia tempo que nhô Raimundão, patriarca do Tartarugueiro; estava cego e velho centenário; ele pouco andava devidamente a uma desconforme quebradura que lhe restou da queda ribanceira abaixo na maré seca causada por sua vista curta. 

Masporém, mui gentil, o preto velho se comprazia de verdade com a chegada de quem ali fosse de alma pura o visitar e escutar o que esta gente da diáspora africana ainda tem a dizer pela graça do Divino Espírito Santo, libertada do cativeiro mediante a lei áurea da Princesa... Graças a Deus! Ele não se esquecia de agradecer levantando as mãos ao alto. 

O caso é que aquela família ribeirinha de Santana e Tartarugueiro recebera documento em papel passado assinado de próprio punho pelo próprio governador da província, o Barão de Marajó; em gerações passadas doando a terra ao pai de dona Dulce, mulher de Raimundão, todos eles já falecidos... Que Deus os tenha na sua santa glória...  

que nem a rainha de Sabá, Dulce enquanto viveu guardava junto do oratório do Divino o papel do terreno dentro de um baúzinho feito de folhas de Flandres de azul celeste pintado e que ia desbotando ao compasso dos dias que passavam. Era, paresque, para os de Santana e Tartarugueiro, a arca da eterna aliança com as tábuas da lei e a esperança das futuras gerações... Desgraçadamente, porém, com a doença e morte da Zeladora da irmandade e precisão de arranjar a vida o viúvo Raimundão careceu cair no mundo. Aí ele calhou de viajar lá pras bandas das Guianas, metido já em traficâncias com uns certos brancos do contrabando falado. Acreditando ele que o tempo, paresque, nestas paragens do inferno verde era que nem na Bíblia a prece poderosa do guerreiro Josué, estancando a marcha natural do dia e da noite; enquanto a gente ia lá fora viajar e trabucar pra arranjar a vida.

infelizmente, pra sô Raimundão, o tempo não parou nem mesmo naqueles ermos da margem esquerda da história. E quando o velho abriu os olhos já estava ficando cego devido pegar muita chuva e sereno da noite suportando a navalha do vento mar afora, a bom pilotar embarcação carregada de muamba desde porto Caribe, em Paramaribo, até as quebradas do 40 Horas, no Pará, onde o barco do patrão desovada automóvel cotia, centenas de caixas de uísque e rumas de sandália japonesa, rádios de pilha e muito mais. 

Foi só quanto escassiou o negócio das Guianas que ele se alembrou do baúzinho azul da finada Dulce. Aí, meu senhor, catita tinha feito estrago com ninho dentro da arca roendo tudinho que havia ali; até a bandeira encarnada do Divino ficou esburacada como se ela tivesse saído da guerra debaixo de tiros de artilharia... Além do mais, meu amigo, não lhe digo nada: deu cupim no que, zinho, sobrou do papel passado que as letras se corromperam por demais... Paresque formiga de fogo passeando na vista da pessoa quando quem sabia ler tentava decifrar o estúrdio letrume empastelado... Ai de mim!... Gemeu o preto velho com uma dor profunda dentro do peito, lá dele.

Àquela hora morta no Tartarugueiro da baía soprava um vento geral, paresque, de muita antiguidade. Era, paresque, um arrepio de febre depois de pegar muito sol na viagem. Sô Raimundão contava quando o pai de dona Dulce chegou de fora mandado cuidar do farol; aquele sítio ainda estava despovoado e devoluto. As tartarugas vinham desovar no tabuleiro da praia aqui pouco acima de Santana... E, diz-que, as ondas de maré cheia traziam cadáveres de náufragos pra beira. Haja o povo a comer ovo de tartaruga e dar sepultura aos mortos que encostavam, rezavam ladainha ao Divino para os vivos viver em paz na terra e os defuntos repousar no céu... Antão, dizia o velho, quando era trovoada banzeiro resmungava nas pedras da beira da baía que nem o Padre eterno ralha lá em riba das nuvens. 

O visitante calado que nem um clarinete quebrado deixado ao canto: só e só se escondia da ventania pelas ilhargas da porta a fim de se defender da pancada que vinha de fora da casa que nem um potro brabo. Evém a chuva! Dizia Maria, uma moreninha cheia de graça, cria da casa, trazendo café fumegante no xarão estampado deixando cheiro bom na varanda... O danado vento, porém, varava pelas brechas da parede de madeira dando coice às costelas do camarada. 

A voz do vento e a do contador da história, pouco a pouco, foram se confundindo numa coisa só. Parecia música de órgão. Completamente cego da vista para o exterior o preto velho enxergava bastante por dentro de suas lembranças.  De modo que ele era sempre em sua memória um rapagão de dezoito e poucos anos de idade recém-casado com a filha mais velha do faroleiro da boca do Arari, dono de papel passado daquele chão. Dulce era rainha da festa e zeladora do Divino no Tartarugueiro, filha do rei bijogó talvez naquele singelo terreiro, oriundo da Guiné-Bissau no além mar.

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