Metáfora transcontinental da ponte do Oiapoque

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ponte sobre o rio Oiapoque ligando o Norte do Brasil e a Guiana através da fronteira entre as duas regiões da Amazônia Oriental.





"as fronteiras são uma forma de medo" -- Isabel Alende




A Christian José Piat, in memoriam.



A ponte do Oiapoque não é a maior obra de engenharia do "plateau" das Guianas: todavia, sua expressão histórica e geográfica faz desta obra uma das maiores 'pontes" entre o primeiro e o terceiro mundo... No velho rio de Vicente Pinzon a América do Sul e a Europa ficam próximas apenas a 15 minutos de distância...  você sabia? 

Pena que, em 1994, quando o maire de Sinnamary Elie Castor (Caiena 1943 - Clermont-Ferrand 1996) convidou o padre Giovanni Gallo (Turim 1927 - Belém do Pará 2003), criador do sui generis Museu do Marajó (1972); com uma importante delegação de autoridades municipais do Marajó a visitar a Guiana francesa; nós não soubéssemos até então do revolucionário trabalho pedagógico comunitário empreendido por Hugues de Verine, nos anos 70, na criação de ecomuseus por todo mundo a partir da velha França. 

Imagino como poderia ter sido o encontro do marajoara que veio de longe com o francês que conquistou o mundo, de uma maneira que os generais de Napoleão jamais poderiam fazer. Gallo e Verine, juntos, dois cidadãos do mundo que poderiam ter construído, por certo, a "ponte" do Oiapoque unindo o Museu do Homem em Paris ao Museu do Marajó, bem antes que arquitetos e engenheiros tivessem dado o primeiro risco na prancheta a fim de materializar a ponte em concreto que muitos almejavam, desde o passado lendário, das migrações parikur conduzidas pelo cacique Anakayuri desde o Caribe para a baia do Oiapoque. Por que é de pontes, e não de muros; o espírito da construção do novo mundo está clamando.

Acredito eu que, lá mesmo na pátria natal de meu querido amigo Robert Marigard que com esmero organizou a excursão pela parte francesa, antes de terminar a formidável degustação do saboroso bouillon d'awara (Bouyon Wara em crioulo guianense), pronunciar "buiun d'auarrá" (cozido de tucumã); o prato nacional da Guiana francesa feito à base do fruto da palmeira tucumã (Astrocarium vulgare), quando na presença de todos monsieur le maire convidou o padre Gallo para organizar um museu semelhante ao Museu do Marajó de Sinnamary. Presente lá estivesse Hugues de Verine a parceria seria, provavelmente, feita na hora. 

Todos ficaríamos a par da revolução em educação comunitária através de ecomuseus em curso desde os anos 70, quando às margens do lago Arari, que viu nascer a Cultura Marajoara, foi inventado do Museu do Marajó, e, imediatamente, talvez o ecomuseu de Sinnamary estaria prontamente inaugurado em presença da delegação marajoara. O arquiteto Paulo Chaves, àquela hora delegado do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Estado do Pará, e o arqueólogo Marcos Magalhães do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), ambos participantes do ágape de Sinnamary, ouvindo o museólogo do Louvre falar sobre museus ao ar livre, poderiam compreender e valorizar mais a obra de Giovanni Gallo: por acaso, criador do primeiro ecomuseu da Amazônia e, certamente, do Brasil.  

De qualquer modo, os marajoaras de Cachoeira do Arari ali presentes perceberam que nossa tradicional Canhapira é, simplesmente, um "buiun d'auarrá" simplificado. Robert organizou na municipalidade de Caiena o Festival das Guianas de 1986, foi quando eu o conheci e ficamos amigos até a sua morte: sua última vontade já em estado adiantado da enfermidade que nos privou de sua leal amizade e contagiante cultura crioula, foi a de vir a Belém do Pará por avião acompanhado de sua família para se despedir dos amigos brasileiros e retornar a Guiana pela rodovia Macapá - Caiena. 

Até então, nós havíamos conhecimento limitado da Guianidade que o festival de Caiena revelou. Sob iniciativa de Robert tivemos em Belém a Semana de Cultura Guianense,  a geminação entre Caiena e Salvador da Bahia aconteceu, uma delegação escolar da municipalidade de Sinnamary realizou em Ponta de Pedras atividade dita classe de découverte, dentro do Protocolo de Cooperação celebrado entre a Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó (AMAM) e a Associação das Municipalidades da Guiana (AMG). As pequenas sociedades periféricas da vasta região das Guianas começaram a se ver umas nas outras, micro nações locais no dizer de Edgar Morin; fazendo parte de seus respectivos países-estado no seio da Terra-Pátria. Urge preparar o Futuro e o futuro está aí batendo a porta com aviso prévio da Agenda 2030. A mudança climática virá pelas beiras do Planeta, pelas pequenas comunidades ultraperiféricas com seu longo passado histórico pré-colombiano e colonial. As Memórias de Michel, com as de Atipa de Parepou, de militantes do terroir como o nosso irmão Cristian Piat e muitos outros de um lado e de outro das fronteiras geopolíticas e linguísticas, a exemplo do griô de Muaná, Agostinho Batista, da Universidade da Maturidade (UMA), no estado do Tocantins; vão tecendo a rede neuronal de museus comunitários e ecomuseus da Amazônia.

Mais cedo ou mais tarde, a Região Guiana - "última colônia da América" excetuando o status neocolonial de Porto Rico - será plenamente autônoma, quiçá até 2030, passando daí em diante a pais independente. A história do projeto espacial europeu Ariane, com sua base de lançamento de foguetes em Kuru, não pode esquecer a mitologia tupi-guarani dos índios de Camopi, nem as lendas saramacás que se integram aos sonhos do desenvolvimento cientifico e tecnológico da humanidade toda. Permitindo o milagre da era da inteligência coletiva de que fala o filósofo da internet Pierre Levy. Um pedreiro-livre autêntico como Cristian Piat tem muito a ver com a construção de catedrais e pontes iguais a estas. Antes que o Grande Oriente da França (GOF) fosse chamado a Guyana francesa para observar a embaraçante questão da fronteira do Oiapoque e da imigração dita clandestina; Cristian foi aquele São Tomé que quis ver de perto para contar de certo. Falante de português fluente como qualquer libanês do contrabando, ele vinha frequentemente a Belém e Macapá para andar livre pelas ruas misturado ao povão, descobrindo as novidades da terra e ensinando a Guianidade transamazônica para todos: dos subúrbios de Paris até a feira de Caruaru...

Ninguém iria contar a Cristian Piat o que se passa com um brasileiro "clandestino" já no Amapá e Pará para atravessar a fronteira e se refugiar no eldorado francês da Guiana... Ele entrou "clandestino" em seu próprio país, depois de se passar por brasileiro junto a gateiros de aliciamento de trabalhadores escravos. Embarcou em canoa-motor tapouille (tapuia), pagou passagem e comida, viu mulheres a carregar e amamentar bebês, desembarcar no rio Aproaga em horas mortas, andar em trilhas pela floresta noite adentro e chegar à estrada antes que os gendarmes (policiais) comecem a ronda... E depois: onde ir arranjar serviço se não achar patrões ilegais tanto quanto os trabalhadores "clandestinos"? O mesmo vale para garimpos "selvagens" que vendem ouro tão civilizadamente como se vê em obras trabalhadas de finas joias nas vitrines de todo mundo.

No natal de 2005, o então presidente da Comissão de Relações Exteriores da Assembleia Nacional Francesa e presidenciável, atual presidente do Instituto do Mundo Árabe (IMA) Jack Lang, atendeu a convite especial do atual Secretário de Estado de Turismo do Estado do Pará, Adenauer Góes, que o havia visitado em Paris no ano anterior, para conhecer a cidade de Belém e a ilha do Marajó. A ideia consistia em prestigiar a Feira Internacional de Turismo da Amazônia (FITA), aproveitando que o deputado e prefeito municipal de Saint Laurent do Maroni, Léon Bertrand, estava Ministro do Turismo sob a presidência de Jacques Chirac; abrindo desde Paris uma rota alternativa mais curta - como se fosse uma ponte transatlântica - passando pela Antilhas e Guiana francesa até entrar pelo Norte do Brasil.

Minha passagem pela Guiana francesa (1985-1990) ainda agora desde a história do cacique bandoleiro Guamã e de seu parente Ajuricaba dos Manaus continua a me questionar: descobri no serviço da Comissão Brasileira de Limites a "grande oval insular das Guianas" do geógrafo brasileiro Raja Gabaglia, a "grande ilha das Guianas" com Eliseu Reclus; Ciro Flamarion Cardoso com sua tese Guyane française demostrou a grande área cultural guianense que se estende das ilhas do Marajó, no delta-estuário do rio Amazonas, até a ilha de Trinidad, no Caribe. Este espaço enorme adentra a bacia do Orenoco, na Venezuela, passa através do canal de Cassiquiare para o Rio Negro, no estado do Amazonas; para descer o Baixo Amazonas, no Pará, até sair novamente ao oceano Atlântico: nós temos, então, uma Guiana brasileira (Rio Negro, Rio Branco, Baixo Amazonas (amazonense), Baixo Amazonas (paraense), Marajó e Amapá) no "plateau" das Guianas (Brasil, Guiana francesa, Suriname, Guiana e Venezuela).
  O folclore da Guiana francesa coletado pelo folclorista e memorialista crioulo Michel Lohier, "Légendes et contes folkloriques de Guyane", fala do casamento mítico entre o príncipe Caiena, filho do rei Ceperu; e da princesa Belém, filha do rei Brasil. Evidentemente, o príncipe é índio kalina (caribe ou galibi) e a princesa tem sangue português. Moça de sangue nobre, muito vaidosa; que submete o apaixonado a uma prova mortal para transpor as águas perigosas sobre as duas margens de um lago misterioso e profundo. O jovem guerreiro Caiena vai se aconselhar com o grande pajé de sua nação, chamado Montabo. Este então na savana de Iracubu escolhe um grande touro selvagem e chama o príncipe para ensiná-lo a domar o animal alimentando-o religiosamente com ervas mágicas da iniciação dos pajés. 

Chegou o grande dia e uma delegação chefiada pelo rei Ceperu atravessou o mar para apresentar-se com o príncipe ao rei Brasil a fim do jovem pedir a mão da princesa em casamento submetendo à prova imposta por ela. Muitos pretendentes vindos de diversas partes pereceram nas águas misteriosas e profundas. O pajé Montabo conduziu o grande touro ao centro da arena, cercada convidados com as duas delegações lado a lado; Montabo entregou o animal selado cerimoniosamente às mãos do príncipe Caiena que, com um aceno galante dirigido a sua amada Belém; saltou sobre a sela. O animal partiu a galope e deu um enorme pulo que alcançou as nuvens, a voar, e diante do povo pasmo atravessou a larga extensão do lago mortal. De volta ao chão, casamento aceito, foi a vez do rei Brasil ir ao país de Ceperu entregar a princesa Belém ao noivo e passar uma temporada em festa. Claro está que o conto folclórico revela a história oral do povo.

Esta e outras histórias de Lohier, como o livro "Les Mémoires de Michel" (as memórias de Michel) que o amigo Christian Piat presenteou-me; como também o primeiro romance escrito em língua crioula guianense Atipa (tamuatá), de autor anônimo sob pseudônimo Parepou (pupunha), presente afetuoso do meu amigo Robert Marigard; fazem parte da descoberta que fiz do país crioulo da Guiana. Descobri que entre o Marajó e a Guiana há mais coisas do que imagina nossa vã academia.

Estava eu vice-cônsul em Caiena entre os anos de 1985 a 1990, quando por força do serviço consular vi de perto como funciona um dos mais antigos e duradouros regimes colonias nas Américas. Com meu amigo e confrade Odacyl Catete fizemos uma primeira tentativa de aproximar a mídia atuando em Belém e Caiena revelando um país amazônico com a cabeça na Europa e o coração na África. Uma viagem de prospecção comercial a Guiana, Guadalupe e Martinica foi conduzida pelo Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Mineração (SEICOM) do Pará Nelson Ribeiro, com apoio do Consulado de Caiena. Parte dos esforços brasileiros de mostrar na região ultramarina francesa outra imagem diferente do tráfico ilegal, imigração selvagem, prostituição, narcotráfico. Encontrei ajuda da igreja católica e da igreja Assembleia de Deus junto aos imigrantes, mas principalmente da maçonaria republicana francesa, a qual o irmão Christian Piat franqueou-me as portas. 

Operário na Europa, inclusive Alemanha; Christian era um sábio crioulo muito orgulhoso de sua Guiana: um pedreiro-livre exemplar que acreditava que, depois da simbologia da pedra e dos metais; a velha instituição medieval dos maçons operativos construtores de catedrais chegaria ao século XXI pronta a trabalhar a metafísica da madeira (para não dizer a matéria orgânica) e do barro (reciclagem da pedra bruta).

Eu com minha esposa e nossos filhos fizemos bons amigos na Guiana, aprendemos uma maneira diferente de ver o mundo que afinal de contas não nos era estranha, exceto no que diz respeito à língua. Posso dizer que me tornei um brasileiro melhor junto a compatriotas refugiados econômicos, haitianos, latino-americanos e metropolitanos saturados da Europa. Ciro Flamarion Cardoso teve razão em considerar a Guiana francesa como espelho da colonização. Michel Lohier, que, postumamente, me foi apresentado por Christian como um sábio da sua terra não era apreciado pelos independentistas; amava o Brasil e a França ao mesmo tempo. Ele tinha saudades de seus amigos brasileiros, como o poeta Serge Zaou que morou e Belém e Soure, eses guianenses era solidários aos brasileiros pobres explorados por guianenses ricos e insensíveis. Conheceram a Guiana francesa do tempos das vacas magras durante o regime de Vichy, quando Hitler ocupou a França e isolou a Guiana. Foi quando o cônsul do Brasil em Caiena, Doutor Pacheco (dentista, pai da família Chalu Pacheco de Belém do Pará) viabilizou o abastecimento e sobrevivência da Guiana. Getúlio Vargas preocupado com a possibilidade alemã de invadir a Guiana francesa mandou reforçar a fronteira. Começou assim o famoso "contrabando" das Guianas e também projetou-se na imaginação dos guianenses o primeiro pilar da Ponte do Oiapoque. No tempo das vacas gordas, com a construção da base de Kuru, primeiro os trabalhadores foram aliciados para baratear a mão de obra, depois foram mandados embora com a cumplicidade do governo militar de Brasília, com o repatriamento em massa dos brasileiros de Caiena. De volta ao país natal, os repatriados foram despejados nos acampamentos insalubres de construção da Transamazônica.

No imaginário popular do Pará não se fala em Guiana, mas em Guianas plural. Reciprocamente, um guianense raramente dirá sobre o nosso lado da fronteira o nome local, mas quase sempre Brasil; mesmo que esteja se referindo à cidade do Oiapoque ou Clevelândia, por exemplo. As "Guianas", em Belém do Pará, por volta dos anos 60 e 70 eram sinônimo contrabando.

Já do outro lado da fronteira, na Guiana francesa, o fluxo de mercadorias proveniente do Brasil (Belém e Macapá) era aparentemente inconveniente pela concorrência aos produtos metropolitanos, mas não configuravam contravenção. O que as autoridades francesas declaravam combater era a imigração e os garimpos clandestinos. Para normalizar as relações de fronteira Brasil e França resolveram entre outras coisas abrir consulados em Belém, Macapá e Caiena.

Embora sendo eu nativo do Marajó e tendo notícias frequentes de Abaetetuba e Vigia onde é corrente viagens de pessoas e embarcações "pro Norte" (Oiapoque, Caiena e Paramaribo) o tema "contrabando" só começou a me interessar, efetivamente, quando ingressei no Jornal do Dia, era a época de contrabando de cafe: raramente alguém se daria conta de que, em busca "vivo ou morto", do bandoleiro Guamá, cacique dos Aruã e Mexiana; em 1723 a tropa de guarda costa comandada pelo sargento-mor Francisco de Mello Palheta, nascido na vila da Vigia, trouxe furtado o café de Caiena que havia sido furtado de Paramaribo e foi produzir cafezais em São Paulo...

Ora os paraenses cantamos belamente a canção de Paulo André Barata e Ruy Barata, Porto Caribe, que diz: Sou de um país que se chama Pará / Que tem no Caribe o seu porto de mar. Pois a licença poética parece subverter a geografia para explicar o contrabando de ritmos musicais que animam as noites de Belém. Não sabe o campus e cidade universitária do Guamá que o nome do rio se deve ao dito cacique bandoleiro. E Cuba, provavelmente, inspiração dos autores, pai e filho, tem lá o seu Guamá como em Belém um bairro em Santiago e um parque ecológico. Nome do guerreiro taino que levou a guerra de guerrilhas contra o conquistador espanhol sucedendo ao primeiro rebelde da América, o índio Hatuey.
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forte Ceperu (Caiena, Guiana francesa), do nome do cacique galibi que segundo a tradição teria cedido o lugar para França em troca de comércio e amizade. Daí, cerca de 1604, o calvinista Daniel de La Touche, senhor de La Ravardière, seguindo o aventureiro Charles Des Vaux que havia camaradagem com os Tupinambás do Maranhão, fundou, em 1612, o forte de São Luís na França Equinocial, entrando em guerra com portugueses vindos do Ceará perdeu a colônia no ano de 1615. Desde então a disputa entre França e Portugal, este sucedido pelo Brasil, pelo controle do rio Amazonas; envolveu populações indígenas, colonos e escravos que se acham à origem da fronteira do Oiapoque.

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