ODISSEIA MARAJOARA: RETORNO DO HOMEM DO PACOVAL AO PAÍS NATAL.



capa de livro de Raimundo Morais, escritor paraense da Societé des Americanistes de Paris, autor da célebre obra "O Homem do Pacoval" (1939) sobre a Arte Cerâmica Marajoara datada do ano 400, aproximadamente, achada pela primeira vez no teso do Pacoval do rio Arari, em 20 de novembro de 1756. 

Raimundo Morais nasceu em Belém do Pará em 15 de setembro de 1872 e faleceu na mesma cidade em 3 de fevereiro de 1941. Ele poderia ser lembrado, em razão de sua obra de divulgação, patrono de campanha para repatriamento da cerâmica marajoara: isto a cabo de um longo processo. Hoje em esquecimento e longe do razoável para recepção pelo público, sobretudo, por que se fosse simplesmente para trazê-la de volta ao Brasil por patriotismo e não levar no Marajó, donde foi tirada entre chuvas e esquecimento desde o século XIX, empregando-a no desenvolvimento sustentável da "Criaturada grande de Dalcídio", melhor será deixar lá onde está em ostracismo guardada e conservada no exílio.


Porém, se for para despertar o maltratado povo marajoara, é melhor começar logo a fazer barulho. Reconhecer como Reserva da Biosfera a Área de Proteção Ambiental do Arquipélago do Marajó. Declarar a Arte Marajoara patrimônio imaterial brasileiro, com a data de 20 de Novembro do achado do sítio arqueológico do Pacoval pelo fundador da Vila da Cachoeira do rio Arari sendo o DIA NACIONAL DA CULTURA MARAJOARA. Organizar rede de ecomuseus e museus comunitários para instruir e informar a gente a respeito do conjunto de obras de Raimundo Morais, Dalcídio Jurandir, Giovanni Gallo e outros defensores e divulgadores do nosso ancestral Marajó a fim de preparar o retorno de seu patrimônio exilado.

A hora é esta, enquanto a UNESCO se inclina a favorecer o repatriamento de acervos e a França adota abertura neste sentido: amanhã poderá ser tarde e os grandes museus de primeiro mundo arrependerem-se da boa ação com o terceiro mundo para nunca mais mudar.


"O Sr. Raymundo Moraes (…) conseguiu, de um ponto remoto da selva amazônica, impor-se ao país inteiro”. (Humberto de Campos).


BASES PARA UMA DEMANDA POPULAR EM FAVOR DO REPATRIAMENTO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO MARAJOARA.


O primeiro Centenário da Independência do Brasil foi festejado com a chegada do Modernismo: em 1922 estalou o Tenentismo e a Semana de Arte Moderna de São Paulo, oito anos mais tarde a Revolução de 1930, começava finalmente a descolonização do extinto Império do Brazil. Na Amazônia, o movimento nacionalista vinha a bordo dos navios da Costeira... Belém do Pará e Manaus dormiam ainda o sono da Belle Époque e reclamavam dos vândalos e iconoclastas da Academia do Peixe Frito; mais tarde, das peraltices literárias do Clube da Madrugada também.

Nos anos 30, não era comum escritor brasileiro diletante - ainda mais fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo -, fazer parte da célebre Société des Américanistes de Paris. Prestigiosa academia francesa de estudos americanos. A Amazônia estava na ordem do dia graças ao ciclo econômico da borracha e o florescimento da belle époque em Belém do Grão-Pará e Manaus, influenciadas pela moda Paris n'América.

Sem a invenção da Amazônia por força de sua própria gente e da utopia da Terra sem Males tupinambá impregnada ao inconsciente coletivos de nossas populações nativas; o Brasil ficaria para sempre "caranguejando" pelo litoral: foi a navegação interior do São Francisco, a conquista do Grão-Pará e a penetração da Bacia do Prata, que juntas conquistaram o coração do continente e desembocaram na aventura sem par da construção de Brasília. Mas o Distrito Federal carece ainda ser ocupado pela brava gente brasileira sob signo das águas profundas do Rio-Mar, do São Francisco e do Rio da Prata, remontando as Águas Emendadas, as quais por terras, mares e ares levam o gigante Brasil ao vasto mundo.

Em parte, o regime das águas e ventos do Mar-Oceano determinaram as duas colônias portuguesas na América - o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará -, aquilo que a prazo deu azo à belle époque amazônica. Não foi sem assim que a navegação do Amazonas confluiu com rios e portos da civilizada Europa. 

A criação da Sociedade dos Americanistas de Paris, por Ernest Théodore Hamy, a primeira do gênero, em 1895, irradiou-se no mundo inteiro com Paul Rivet, a partir de 1908. A indústria da borracha ia a todo vapor e a Sociedade dos americanistas franceses conquistou prestígio internacional através do Journal de la Societé des Américanistes. Por certo, Raymundo Morais cursou a universidade da maré a bordo do navio-gaiola Rei Lear singrando o Rio-Mar. Ainda jovem ele se tornou piloto prático de navegação fluvial nos rios Purus e Madeira. O gaiola em apreço, segundo a professora Célia Bassalo, na apresentação de “Os Igaraúnas” (1938), era um “antigo transatlântico, que na época transportava carvão em um afluente do Purus”. 

Que escola magnífica, na Amazônia das águas, para formação acadêmica de um ilustrado membro da Societé des Américaniste de Paris! Se ele já havia granjeado admiração do Presidente da República do Brasil e do país inteiro, a bordo de sua invejável universidade flutuante; logo chegaria a conquistar aplausos às margens do idolatrado Sena: quem sabe agora a navegar na memória rumo a 2030, nas águas aquecidas da Mudança climática - transformado em navio encantado - o gaiola Rei Lear, com Raymundo Morais ao timão; vá então aportar simbolicamente no Quai de Branly, junto ao Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas; a fim de repatriar à grande ilha do delta-estuário do gigantesco Amazonas, as peças de cerâmica marajoara que, no passado distante, fora confiada aos cuidados do Museu do Homem, como fiel depositário delas.

O escritor Raimundo Morais (Raymundo Joaquim Moraes), era filho do prático de navegação do rio Amazonas Miguel Quintiliano de Moraes e de Lucentina Martins Moraes. Ele concluiu apenas o curso primário, deixou a escola para seguir o pai, prático de navios no rio Madeira. Abeberou-se precocemente do fascínio e magia de navegar pelas artérias vivas da Hileia amazônica chegando a comandante de ‘gaiolas’. O amor pela leitura veio a par das viagens. Autodidata dotado de invulgar inteligência e sensibilidade, Raimundo Morais aliou conhecimento científico e literário passando a anotar e comentar sua experiência durante inúmeras viagens. 

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navio gaiola típico da navegação fluvial amazônica dos inícios do século XX.


A abertura do rio Amazonas à navegação internacional (1866) , com o Império do Brasil sob pressão da Inglaterra e Estados Unidos para entrar na guerra no Paraguai (1864-1870) e endividar-se no conflito sul-americano, foi contexto histórico de "descobrimento" da Amazônia pelo mundo industrial emergente. Assim abriram-se também sítios arqueológicos da ilha do Marajó à especulação e curiosidade estrangeira, como por exemplo a Exposição Universal de Chicago de 1893, aonde foram levadas cerâmicas marajoaras tiradas do teso do Pacoval, segundo a obra As Regiões Amazônicas, de José Coelho Gama e Abreu (Barão de Marajó). E mais coleções de que trata o importante livro Cultura Marajoara, de Denise Schaan: SENAC, São Paulo, 2010.

Iza Vanesa Pedroso de Freitas Guimarães, professora da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutora em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos faz conhecer melhor Raimundo Morais em sua trajetória de jornalista e escritor, iniciada em 1908 com Traços a Esmo e encerrada com Um Eleito das Graças, em 1941. Note-se que nosso escritor maior, Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909 - Rio de Janeiro, 1979), um ano mais novo que o autor de O Homem do Pacoval; começou sua carreira literária com Chove Nos Campos de Cachoeira lançado pela editora Vecchi no mesmo ano em que Raimundo Morais findou a carreira.

Raymundo Joaquim Moraes (seu nome de batismo) nasceu em Belém a 15 de setembro de 1872 e morreu em 3 de fevereiro de 1941 na mesma cidade. Tornou-se prático e depois comandante do navio “Rei Lear”, foi autodidata e autor de uma vasta obra. Iza Guimarães observa "surpreendente coincidência" entre o nome do gaiola que ele comandava e a vida do autor: a metáfora do “homem desacomodado” de William Shakespeare (1564-1616), na tragédia Rei Lear (1608). Iza Guimarães cita Marshall Berman (1986), na obra Tudo que é sólido se desmancha no ar, na qual ele analisa imagens da vida moderna presentes no Manifesto do Partido Comunista (1848), obra de Karl Marx (1818-1883) e Friderich Engels (1820-1895). Segundo o autor citado, uma dessas imagens é a “nudez” e sua dialética. O sentido da nudez em Marx, diz Iza Guimarães, está muito próximo do “homem desacomodado” de William Shakespeare, na obra Rei Lear (1608), que transcorre em torno da figura de um rei, o qual perde tudo. É desta maneira que a pesquisadora vê a tragédia do escritor.

A saga literária de Raimundo Moraes, na década de 1930, ampliou-se com a publicação de notas e artigos no jornal A Província do Pará e obras famosas como País das Pedras Verdes em 1930, Meu diccionario das cousas da Amazônia, em dois volumes, em 1931, Amphiteatro Amazônico e Ressuscitados em 1936, Alluvião, um ano depois em 1937, Os Igaraúnas em 1938, O Homem do Pacoval, Machado de Assis, À margem do livro de Agassiz e Histórias Silvestres do tempo em que animais e vegetais falavam na Amazônia em 1939, Cosmorama em 1940 e Um Eleito das Graças, em 1941, ano de sua morte.

Ele se reconhece "caboclo", o tipo social mais relevante da Amazônia, o vale amazônico é o “Paraíso Verde, fecundo, abundante, delicioso” (MORAIS, 2000: 111), critica “maus brasileiros”, os “viajantes pernósticos”, os “falsos naturalistas”, os “escritores escandalosos” (Ibid.) que caluniaram a região. Iza Guimarães avança: "Das Amazonas ao seringueiro e ao índio, do Paraíso Verde à Cidade de Far-west e à Atlântida, Raymundo Moraes, o flâneur da Planície afirma: “Os defuntos vão para a cova embarcados, embarcados vão os noivos, os padeiros, as procissões, os caçadores, os comerciantes, os trabalhadores, os eleitores, os namorados, os músicos. O rio é a rua” (MORAIS, 2000: 33). 

"O rio foi a rua de Raymundo Moraes por longos anos de sua vida como comandante do navio “Rei Lear” e mesmo depois de abandonar o ofício nos gaiolas e tornar-se escritor continuou a singrar os rios na Amazônia através de sua literatura. Na tentativa de definir a paisagem natural e cultural da região, Raymundo Moraes na primeira metade do século XX construiu os maiores símbolos da planície amazônica: a natureza e o caboclo". Ao finalizar Iza Guimarães, cita Martha Abreu (1998) no desafio de pensar o livro mais famoso de Alexandre José Mello Moraes Filho (1844-1919), na obra Festas e tradições populares do Brasil (1901), para ela “autor e obra não se encaixam em nenhum modelo, rótulo e definição estreita” (ABREU, 1998, p. 182). "Da mesma forma, nem a obra – Na Planície Amazônica (1926) nem o autor –  podem ser pensados como arquétipos fixos e estanques". Iza Guimarães faz prognóstico de que pensar a obra de Raimundo Moraes "só está no começo".  

Mas por que tudo isto agora? Para motivar uma reflexão que leve a um consenso visando repatriar a cerâmica marajoara existente em museus estrangeiros, constante relação na obra de Denise Schaan. Com uma séria advertência: começar a sensibilizar e conscientizar o público brasileiro através de redes sociais com a maior urgência e veemência.

Porém, não ter pressa nenhuma em remover donde se encontra o patrimônio que, se estivesse no mesmo lugar onde estava há mais de mil anos; hoje não haveria nem notícia! Consta que, em anos passados, o FBI apreendeu no estado do Texas peças de cerâmica marajoara e o governo dos Estados Unidos as teria devolvido ao Brasil através de canal diplomático. No país descoberto por Pedro Álvares Cabral não se soube aonde foram parar...  

Portanto, quando se aventa possibilidade de fazer voltar ao Marajó seu patrimônio cultural material, a primeira coisa a pensar é a criação de projeto de cooperação internacional, sob assistência da UNESCO e do IBRAM, aberto às instituições estrangeiras detentoras de cerâmica marajoara arqueológica. Mais importante que o repatriamento propriamente dito, será a criação na cidade de Cachoeira do Arari de uma extensão da Estação Científica Ferreira Penna (ECFO), do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG); em parceria com o Museu do Marajó a fim de realizar amostras permanente e/ou temporárias abertas ao público dos municípios da mesorregião. 

Museu comunitário de vocação socioambiental, O Nosso Museu do Marajó deve ser conservado de acordo com o “testamento” de seu idealizador - que são seus livros. Eu mesmo, após a morte de Giovanni Gallo, cheguei a pensar na “federalização” do MDM como forma de evitar sua destruição e perda. O tempo se encarregou de mostrar que seria uma emenda pior que o soneto. E a comunidade de Cachoeira do Arari provou que pode dar conta do recado contanto que a iniciativa privada e o setor público façam sua parte. 

O círculo de amigos de Giovanni Gallo pode desde já sensibilizar parceiros no sentido da elaboração do projeto supracitado, contemplando o fortalecimento do museu comunitário e construção de estrutura do MPEG em Cachoeira do Arari vinculada à Reserva Técnica já existente naquela sede municipal. Oportunidade especial para a AGENDA 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Graças a amigos franceses, notadamente Maurice André Gey que colaborou imensamente para vinda do antigo Ministro da Cultura Jack Lang a Marajó, em 2005; o Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas foi sensibilizado sobre oportunidade de intercâmbio contemplando, a longo prazo, possível repatriação.

Agora a surpresa do presidente francês, Emmanuel Macron, em sua turnê pela África Ocidental, declarando desejar "um retorno da herança africana para a África". Na Amazônia Marajoara, o “maior arquipélago fluviomarinho do mundo”, com território dez vezes maior e população mais que o tripulo de um país africano como São Tomé e Príncipe, por exemplo; não está na África, porém sua população afrodescendente será quase como a do país insular do golfo da Guiné.

O presidente Macron proferiu uma frase que dá esperança ao Benim depois de meses de negociações. "A herança africana (...) deve ser destacada em Paris, mas também em Dakar, Lagos, Cotonou", afirmou o presidente francês. O povo pobre do Marajó merece escutar iguais palavras vindas de Paris, declarando que a herança marajoara que lá se encontra deve ser mostrada na França, mas também no Brasil: especialmente em Belém do Pará seguindo para Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Cachoeira do Arari, Chaves, Curralinho, Gurupá, Melgaço, Muaná, Ponta de Pedras, Portel, Salvaterra, Santa Cruz do Arari, São Sebastião da Boa Vista e Soure.

"Esta será uma das minhas prioridades. Nos próximos cinco anos, quero que as condições sejam reunidas para um retorno da herança africana à África", afirmou Emmanuel Macron. Pronunciado no final de seu discurso na Universidade de Ouagadougou, esta frase ressoou especialmente em Benin, cujo presidente Patrice Talon, em julho de 2016, fez um pedido oficial para retorno de parte do patrimônio de seu país.

O sonho do Gallo estaria concretizado. Ou, pelo menos, assim como Dalcídio em sua luta para despertar a consciência da Criaturada grande, esta gente teria certeza de que o mundo não a esqueceu.


MEMÓRIA DO PRIMEIRO ECOMUSEU BRASILEIRO: O NOSSO MUSEU DE SANTA CRUZ DO ARARI (1973-1983).


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Padre Giovanni tem em grande conta o cidadão do mundo, solitário, desamparado, que é o habitante de Jenipapo”. (Dalcídio Jurandir, in “Marajó, a ditadura da água”, Giovanni Gallo: 2ª ed. Edições “O Nosso Museu”, Santa Cruz do Arari - Pará, 1981).

Quantas vezes o casamento da necessidade com o acaso fez história? Naquele dia distante à margem do ancestral lago Arari, o “caboclo” Vadiquinho não havia ideia do que o padre Gallo poderia fazer com aqueles desprezíveis “cacos” (ver “Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara”, Giovanni Gallo, 3ª ed. Edições O Museu do Marajó, Cachoeira do Arari, 2005), o povo em sua simplicidade chama aos fragmentos de cerâmica marajoara “cacos de índio”: um nome bem apropriado sob todos pontos de vista.

Com os tais “cacos” em mãos, Giovanni começou aquilo que viria a ser a obra definitiva de sua vida: um museu em um lugar inacreditável para as mentalidades de 30 anos atrás. Havia tempo que a cerâmica marajoara pré-colombiana era retirada para coleções de museus distantes, sem que os marajoaras tivessem noção do que isto representava para a humanidade e, principalmente, para os remanescentes dos antigos nativos do Marajó. Exatamente neste ponto crucial, o padre teimoso colocou o dedo na memória ferida do povo.” (Apresentação: Ima Célia Guimarães Vieira, Presidente, O Museu do Marajó, Belém, 27 de abril de 2005). 

Um museu em um lugar inacreditável, que certamente poderia recordar a inverosímel carta-patente enviada pelo padre Antônio Vieira - precursor da teologia da libertação -, em missão de paz aos caciques Nheengaíbas ameaçados de “guerra justa” (cativeiro e extermínio) acusados de pirataria contra canoas das “tropas de resgate” (caçadores de escravos) e “drogas do sertão” (extrativismo florestal). Ver carta de 29/11/1659 - publicada em Lisboa em 11/02/1660. 

Mas essa fusão do passado e presente, essa apropriação da herança cultural por parte das populações contemporâneas não deve ser vista como uma traição às origens. Ao contrário, a interpretação da Arte Marajoara é o maior sinal de que o vínculo entre o presente e o passado foi estabelecido, e que a tradição, agora reinventada, finalmente cumpre seu papel de produzir identidade e história (frisei). Giovanni Gallo era, mais do que um agente da fé, da cultura e da ciência, um visionário”. (obra citada, Prefácio - Denise Pahl Shaan, Belém, fevereiro de 2005).

Não raro, fragmentos de material arqueológico semelhantes àqueles podem ser recolhidos, inclusive por contumazes ladrões de gado vagando em horas mortas pelos entornos de sítios arqueológicos de costumeiros saques ilegais tais quais o célebre teso do Pacoval, por exemplo. O teso do Pacoval, situado no igarapé do Severino, que sai em frente da vila do Jenipapo, no outro lado da boca do Lago; foi o primeiro sítio arqueológico mencionado na crônica colonial portuguesa (cf. Notícia da Ilha Grande de Joannes...”, autor anônimo, dado como achado no dia 20 de novembro de 1756; e Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó (1783), do naturalista de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira, famoso pela Viagem Philosophica, explorando a Amazônia entre 1783 e 1792).

No histórico conflito entre pecuária e pesca artesanal vem, incontornavelmente, o caso do tradicional roubo de gado. Precisa lembrar que a resistência dos “índios bravios, desertores e escravos refugiados” (cf. Notícia Histórica) retardou a ocupação das sesmarias concedidas pelo donatário da capitania da Ilha Grande de Joanes até 1680, quando Francisco Rodrigues Pereira levantou o primeiro curral de gado na ilha... Até hoje, a Jebre insalubre e mal afamada lembra aqueles temidos “centros” da ilha ainda selvagem. Giovanni Gallo (Turim, 1927-Belém do Pará, 2003) não poderia evitar o espinhoso assunto que se apresenta, evidentemente, como uma das causas da tumultuada mudança dele e do museu para Cachoeira do Arari, em 1983. Momento em que o singelo “ecomuseu” avant la lettre se tornou de fato o museu comunitário de Cachoeira do Arari que hoje se conhece, transformado da falência da fábrica Oleica e salvo dos desvios da política federal de desenvolvimento econômico da Amazônia.

Gallo escreveu, enfaticamente: Eu defendo o povo de Jenipapo! (Marajó, a ditadura da água, página 69). A acusação de roubo de gado, por certo, era muito antiga: desde os mocambos de índios bravios, desertores e escravos refugiados nos centros da ilha, no século XVII, que dificultaram os primórdios da criação de gado na ilha... “O roubo organizado não é manifestação da pobreza, é uma típica forma de exploração da pobreza, realizada por quem pobre não é” (Giovanni Gallo, obra citada, página 70).

A data que o fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari, Florentino da Silveira Frade - provável autor anônimo da Notícia da Ilha Grande de Joannes -, disse ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira ter achado o teso do Pacoval do rio Arari; mais tarde viria coincidir com o Dia Nacional da Consciência Negra (dia 20 na primeira Notícia, 26 na segunda) bem poderia ser considerada também DIA NACIONAL DA CULTURA MARAJOARA. Inclusive pelo bom motivo de que, em 1500, o espanhol Pinzón assaltou uma aldeia indígena da “ilha Marinatambalo” e arrastou da dita os 36 primeiros “negros da terra” (escravos indígenas) da América do Sul...

Na vila de Salvaterra, então fazendo parte do município de Soure, em 1939, após concluir o romance seminal Chove nos campos da Cachoeira, Dalcídio Jurandir escreveu seu segundo romance com título de Marinatambalo... Título tirado da viagem do piloto de Cristóvão Colombo, é claro. Este romance foi publicado com título de Marajó, o primeiro romance sociológico brasileiro, talhado sob temática do romance medieval ibério Dona Silvana, segundo Vicente Salles.

Quantas coincidências? Tampouco o criador de O Nosso Museu em Santa Cruz do Arari, ano de 1973, não imaginaria estar a inventar o primeiro ecomuseu brasileiro, contemporâneo do primeiro desta mesma modalidade museal revolucionária, o Ecomusée du Creusot Montceau-les-Mines, na França.

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