O MARAJÓ É VASTO MUNDO DE RESILIÊNCIA, ENCANTARIA E VIVÊNCIAS FORA DE SÉRIE.

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Mestre Juvêncio da Tapera (Soure - Ilha do Marajó, 1905 - 2008) 103 anos de vida digna de memória: símbolo do Vaqueiro Marajoara corajoso e dedicado ao seu ofício tradicional.




Como diria o outro, confesso que vivi! Não sou Pablo Neruda, masporém também faço confissões autobiográficas e conto histórias dos outros... Começo por dizer no blogue da Criaturada que o que eu mais queria era escrever romance, que nem Dalcídio Jurandir e Guimarães Rosa. Até, paresque, alguém me apelidar de "Dalcídio Guimarães", síntese de dois monstros sagrados... Doce ilusão! Um chefe de repartição incomodado de me ver passar horas a fio com livro à mão anotando coisas no caderno, para encher meu saco, lembrava que os burocratas não são pagos para pensar, chamando-me às vezes de "Guimarães Rosa". 

Passei muitos dias e noites num louco exercício de Sísifo: escrevi uns dois calhamaços de pretensão literária, mas por fim deixei o palimpsesto de lado, fui cantar noutra freguesia e me arvorei a defensor da Criaturada grande de Dalcídio (índio, preto, mameluco, carafuz, curiboca, brancarana, caboco), patuleia rasa na qual me acho com orgulho é fé natural de pajé metido a doutor em tudo que é humano. Claro que eu me "desconverti" da vaidosa civilização acidental anti-cristã. A santíssima colonialidade com seus pés de cabra aparecendo fora do manto. Caíram-me as escamas dos olhos, que nem a Saulo de Tarso brabo como o Cão chupando manga a caminho de Damasco, a fim de arrancar pela raiz a heresia primitiva igualitária da Galileia. 

A diferença é que o Cristo libertador que eu vi no caminho para o cativeiro de Belém do Grão-Pará, a me falar das águas profundas do Inconsciente coletivo, em figura de pescador panema; este senhor Jesus de que os crentes falam não é, de modo nenhum, inimigo de Jurupari, nem de Tupã, nem de Oxalá, nem de Buda, nem de Javé, nem de Maomé, Lao-Tsé, Confúcio, Sócrates ou Zoroastro. Muito pelo contrário, o divino Espírito filho do Homem, que nem Brama, o ser cósmico; abraça todos mundos e fundos passados, presentes e futuros. 

A vida e a morte são os dois lados da única ponte para o eterno vir a ser. O deus de Espinosa. Mas, será que as mestras matriarcas da cerâmica marajoara já não sabiam? Ou somos nós que ainda não aprendemos a ler o recado ancestral dos "cacos de índio" e a compreender a memória negra da escravatura que, por acaso, o Museu do Marajó se tornou fiel depositário em favor das futuras gerações como o padre Gallo manifestou em seus escritos? 

Esta estupenda coisa me aconteceu quando dei fé - por necessidade e acaso -, de que os brancos da família somos todos farinha do mesmo saco: ralé judia dispersa pelos caminhos do mundo desde o cativeiro da Babilônia, massagada árabe fadada a tornar-se Midas deportado nas caravelas dos Turcos encantados na sina do Purgatório tropical nas colônias, a fim de procurar sem fim tesouros ocultos enterrados... A coisa se me deu na telha quando minha avó postiça Sophia Tautonila (a verdadeira foi a índia Antônia Silva, nascida na aldeia da Mangabeira; que morreu de parto de gêmeos no dia 22 de agosto de 1904, da tragédia familiar sobreviveu aquelezinho que viria ser meu pai caboco, seu Rodolpho Antonio Pereira). 

Vovó Sophia, na verdade tia, irmã mais velha e mãe adotiva de meu pai; um belo dia na hora da sesta me emprestou, com grande solenidade e recomendação, um exemplar da primeira edição do romance Marajó, dizendo-me: "pega e lê, foi escrito pelo teu tio Dalcídio"... Deste tio quase eu não sabia a existência, ele morava no Rio de Janeiro com seus irmãos do segundo casamento de meu avô Alfredo Nascimento Pereira (Benfica, 1849 - Ponta de Pedras, 1955) e a finada dona Margarida Ramos. O capitão Alfredo emplacou um terceiro casamento, este último com dona Isabel Trindade uma senhora negra que ao se referir ao pai de seus filhos o chamava de "branco velho". O branco velho terminou seus dias na vila de Ponta de Pedras com a avançada idade de 106 anos, de uma maneira como se ele tivesse parado no tempo ao comemorar o aniversário dos 61 anos, cercado de todos seus filhos, dona Margarida e diversos amigos na vila de Cachoeira, dia 30 de abril de 1910. Esta foi, paresque, a primeira e derradeira vez que o capitão Alfredo Nascimento Pereira festejou seu aniversário.

Por coincidência, grande devoto de Santa Rita de Cássia e fiel zelador da imagem da santa que seu pai Raymundo Pereira, voluntário da Pátria, trouxe da guerra do Paraguai; o capitão fazia aniversário no mesmo dia de emancipação do município de Ponta de Pedras. Mas a gente não sabia nem comemorava aqueles dois aniversários: o do capitão por haver esquecido e  o da vila por que não se conhecia a data... Meu avô paterno teve três mulheres em sucessiva viuvez e casamentos, uma índia e duas negras: com a índia ele teve sete filhos, com primeira preta seis e com a segunda cinco. Ou seja, dezoito filhos no total, noves fora outros que ele houve antes de casar na Igreja (no Civil consta que ele nunca casou), diz-que na mocidade o estudante de Direito arranjou amásia na ilha do Mamão, arquipélago do Guajará às ilhargas da Tatuóca, Cotijuba e Arapiranga, segundo a história oral da família. 

Por acaso, conheci duas venerandas senhoras da fina flor da elite de Cachoeira e Ponta de Pedras, respectivamente, que me disseram ter sido apaixonadas pelo meu avô Alfredo. A primeira era filha de fazendeiro coronel da Guarda Nacional e a segunda moça família dos fundadores da vila de Ponta de Pedras, aluna do professor Alfredo e colega de minha avó índia Antonia "magra e de canela piririca" com cicatrizes de piodermite, é claro. Por que motivo o moço bonito cobiçado das donzelas brancas não deu golpe do baú casando-se com alguma rica herdeira dos Contemplados do Marquês de Pombal? É certo que, de outro modo; eu não estaria aqui contando história nem nenhum dos filhos e netos da índia Antônia e das negras Margarida e Isabel... Assim é a vida. Passa de bubuia na correnteza do rio de Heráclito. Havia um mistério na vida deste meu avô nascido na vila de Benfica, na antiga Colônia de Benevides; talvez a alma peregrina de um descendente de Moisés na pele de um discreto cristão-novo. Quem sabe? E quantos outros cripto-judeus na diáspora entre chuvas e esquecimentos da Amazônia colonial?

O capitão Alfredo Pereira viveu tranquilo e honestamente como professor nas vilas de Muaná e Ponta de Pedras, secretário da Intendência e editor da folha miúda O Arary em Cachoeira, rábula considerado e membro do Apostolado da Oração na paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras, cercado de livros e filhos como se ele tivesse, a exemplo de Josué na Bíblia; parado o tempo no dia 30 de abril de 1910, ao completar 61 anos de idade: a lua fixa sobre a baía do Marajó e o sol parado que nem o olho que tudo vê, sobre os campos de Cachoeira nas bandas do Araquiçaua, onde o astro rei ata rede e dorme o sono profundo da lenda da primeira noite do mundo. 

Era, paresque, como se o avô que eu via todos os dias a caminhar na vila ali vivesse perto de nós, porém ausente. Ele mesmo e seus parentes mais próximos perderam a conta dos aniversários que passaram em brancas nuvens. Eu descobri tardiamente a data natalícia avoenga pelo álbum Dalcídio Jurandir - Romancista da Amazônia (2006), no qual se vê fac-símile de recorte de jornal de Cachoeira do Arari, edição de 30/04/1910, festejando ao aniversário do capitão Alfredo Nascimento Pereira, no mesmo dia que ele fez 61 anos de idade. Ponto final... Então é isto, no dia 30 de abril de 1910, o tempo parou para o capitão. Aparentemente, ninguém percebeu... 

Seu filho caçula, meu tio Adeflorindo Belassi Pereira, é alguns anos mais novo que eu, que eu nasci em 1937. Portanto, no meu nascimento meu avô contava 88 anos de idade. Calcule, então, um velho de 90 anos ainda fazendo filho! Incrível, porém eu não duvido da honra de dona Isabel Trindade, comadre de dona Othilia Varella, minha querida mãe. Foi assim, suavemente, como um milagre de Santa Rita de Cássia e magia dos pajés sacacas, que o capitão chegou aos 106 anos, íntegro; sem ninguém prestar atenção inclusive ele mesmo. 

O capitão Alfredo ultrapassou três anos de vida a mais que o preto Juvêncio, festejado com merecendência na cidade de Soure. Mas, em Ponta de Pedras não se comemorou o derradeiro natalício do capitão. Tal qual o aniversário do município, que nós muito distraídos só soubemos dois anos depois do Centenário (1978), comemorado com atraso em 1980. A festa do Centenário aconteceu graças ao documentarista Jessé Dantas de Feitosa, o qual guardava cópia autêntica da ata de instalação da nova Vila de Ponta de Pedras desmembrada da jurisdição da Vila da Cachoeira, que lhe teria confiado o prefeito Pedro Boulhosa Sobrinho, na fundada esperança de que, no futuro, haveria de servir a alguma coisa. Assim a gente soube que o município teve autonomia em 30 de abril de 1878: mesmo dia em que o professor Alfredo fez 29 anos de idade, quanto talvez as alunas da escola da vila suspiravam por ele. 

Lembro-me dele em poucas ocasiões, havia voz rouca e falava baixo como um homem de 90 anos, num discurso na Prefeitura subiu e desceu a escada sem ajuda, paletó e gravata desalinhados... De tamancos, como costumava ir trabalhar na Intendência de Cachoeira? Não me lembro... Não usava óculos, mas certa vez deduziu que o sol parecia enfraquecer a luz, posto que antes ele não podia mirar o astro solar diretamente. Todavia, nos últimos tempos podia fazê-lo. Acho que o velho não se deu conta do passar do tempo, nem de uma provável catarata devida à idade avançada.  

Estas coisas me vem à mente quando me lembrei de Juvêncio a dizer, com simplicidade, ao branco francês que no Marajó já não há pajés sacacas (verdadeiros), que os que restam são curandeiros e querem dinheiro... O preto velho não imaginava estar diante do famoso Jack Lang, ministro da Cultura de Mitterrand... Teria ouvido falar de Mitterrand? Viu aquela foto formidável na qual o presidente da França aparece fascinado olhando de soslaio o batoque labial de cacique Raoni? Mundos paralelos. Em Soure, o francês midiático ficou pasmo ao ver aquele velho vaqueiro preto tirar chapéu para rogar a Deus que tivesse seu patrão latifundiário em bom lugar no céu. Pas possible, inacreditável! Como monsieur Lang de retorno a Paris iria contar uma coisa dessas? Mundo mundo, vasto mundo se eu me chamasse Carlos Drummond de Andrade talvez o mundo entendesse o que eu queria dizer.


-- Missunga, ó Missunga!
    A terra parecia subir pelos homens, bichos e árvores com o calor.
    Solidão.
    Famaleal farejava entre as folhas moídas. Missunga voltou. O casarão do Paricatuba, com seu escuro telhado entre coqueiros e bacabeiras, lhe dava impressão de fadiga e de quase ressentimento. 
(Dalcídio Jurandir, Marajó, 4ª ed., 2008, 31).





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Os amigos Sourenses devem conservar seu patrimônio invisível revelando a memória da terra: poderiam fazer parceria com o Ecomuseu da Amazônia / Escola-Bosque Eidorfe Moreira (ilha de Cararateua, Distrito do Outeiro, município de Belém), organizar por exemplo um "ecomuseu dos Maruanazes" pelo qual falará o rio Paracauari, o Pesqueiro, Cajuúna e tudo mais aos jovens e as crianças pela boca dos mais velhos.

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