UMA HISTÓRIA DA SANTA DAS CAUSAS IMPOSSÍVEIS NA ALDEIA DOS SAPARARÉ ELEVADA EM VILA DE BENFICA (1758).


imagem de Santa Rita de Cássia achada em campo de batalha
na guerra do Paraguai pelo voluntário da Pátria Raymundo Pereira,
morador da Vila de Benfica, avô paterno do romancista Dalcídio
Jurandir, do doutor Ritacínio Pereira que teve seu nome em louvor
à santa e de outros filhos do capitão Alfredo Pereira. Hoje sob guarda 
de José Maria Varella Pereira, bisneto de Raymundo.
foto: João Victor Noronha.



Nesta data, quando eu completo 80 anos de idade, manifesto por este meio intenção de doar formalmente à comunidade do distrito de Benfica, município de Benevides, estado do Pará; a imagem de santa Rita de Cássia (foto em epígrafe) que se encontra em meu domicílio e residência no conjunto Médice, bairro da Marambaia, Belém-PA; objeto deste registro histórico. 

Se possível, havendo interesse e consenso da comunidade local, a dita imagem histórica de Santa Rita de Cássia poderá permanecer sob responsabilidade de entidade zeladora do patrimônio da Vila de Benfica ou depositada na igreja de Nossa Senhora da Conceição da mesma vila, em acordo com entidade local interessada em promover diálogo entre crentes e não-crentes para a cultura da paz.

Declaro ainda meu desejo pessoal em ver este ato servir como primeiro passo para organização comunitária de ecomuseu dos Sapararé (ou outra denominação proposta democraticamente pela comunidade local, esta sendo meramente ilustrativa do fim a que se propõe) destinado a promover a educação, resgatar a história e preservar o patrimônio natural do lugar em conexão com a área metropolitana de Belém e as mais regiões amazônicas.

Para constar, faço breve relato a seguir sobre as circunstâncias pelas quais o referido ícone católico oriundo do Paraguai -- num espaço de tempo de 128 anos, entre 1864 e 1992 --, acabou imprevistamente chegando às minhas mãos na linha de sucessão a partir do achado de meu bisavô Raymundo Pereira em campo de batalha durante a guerra do Paraguai (1864-1870). É claro que o artesão da imagem de Santa Rita de Cássia permanece anônimo, ignoro quem tenha sido o dono da imagem (um outro brasileiro? Soldado paraguaio caído na luta? Uruguaio ou argentino?). 

É evidente que a devoção à patrocinadora das causas impossíveis, àquela altura ainda beata Rita de Cássia, ao contrário da propaganda bélica revela a carência de paz e o medo daqueles pobres soldados, de parte a parte; forçados a matar e morrer numa guerra por motivos estranhos aos povos irmãos envolvidos no conflito. Gente pobre arrastada de seus pagos sob peso de poderes que não lhes dizia respeito. 

Tratava-se, sobretudo, do contexto global da época de interesses imperiais da Inglaterra na bacia do Prata confrontados pela França que apoiou e estimulou o nacionalismo do Paraguai em busca de uma saída marítima no rio da Prata em prejuízo da posição estratégica do Uruguai e Argentina: nesta ambição expansionista, o ditador Solano Lopes alimentou o nacionalismo do povo paraguaio com o justo propósito de uma nação moderna e independente desafiadora do imperialismo inglês na região platina. 

Escolheu a via militar para ocupação do território brasileiro do atual Mato Grosso do Sul e por extensão parte dos Pampas argentino e uruguaio. A aventura saiu mal para todos, menos para os bancos da Inglaterra que lucraram com a Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai); e muito mais para o temerário Solano Lopes que morreu na guerra deixando desamparado o bravo povo do Paraguai vítima de terrível genocídio liderado pelo Império do Brasil. 

A Guerra do Paraguai deixou o Brasil endividado, forçado a ceder às pressões geopolíticas dos Estados Unidos para Abertura do Rio Amazonas à Navegação Internacional (07/12/1866); a monarquia mal vista pelo povo levou à Abolição da Escravatura (1888) e imediatamente ao fim do Império brasileiro (1889). Quanto à Província do Pará viu-se obrigada a fornecer tropas quando ainda se ressentia da guerra-civil conhecida por Cabanagem (1835-1840) e a falta de mão de obra; restou o trabalho das mulheres nas famílias e a má lembrança dos recrutamentos forçados dos chamados "voluntários da Pátria".

Devo advertir, antes de prosseguir a exposição, que não me move interesse de me eximir da responsabilidade em conservar comigo esta relíquia sentimental de família. Pelo contrário, como sabem os que me conhecem; sou um agnóstico que respeita todas religiões e crenças tradicionais. Amigo da paz, encomendei ao meu pranteado amigo artesão, Ismaelino Ferreira, a confecção da imagem holística de São Francisco Marajoara ornado de vitórias-régias, jacarés, em meio à avefauna, com um cordeiro no colo levando um macaco pela mão... Obra genial do querido Ismael que guardo com lembrança e afeição. Pois a imagem de Santa Rita faz companhia a São Francisco dentre o pequeno acervo incluindo estatueta de Dom Quixote e de Buda... Toda a "fortuna" de meu mini museu particular. Portanto, a intenção em doar a imagem da santa só se justifica pelo desejo meu em compartilhar com a comunidade de origem desta história o objeto que considero antes que tudo de cunho histórico. Aduzindo a oportunidade de dar início à organização de ecomuseu comunitário.

Isto posto, prossigo. Com o fim da Guerra o voluntário da Pátria em apreço retornou a sua casa na vila de Benfica (Benevides), para morrer em paz. Pois ele estava doente de tuberculose tendo ainda sobrevido algum tempo que não sei dizer. Portanto, este é um pequeno recorte histórico dentro do grande espaço cultural da Amazônia e América do Sul no contexto geral da história de guerra e paz, que remonta ao século XVII com a França Equinocial (1613-1615) e o estado colonial português do Maranhão e Grão-Pará (1621-1751), depois Grão-Pará e Maranhão (1751-1823).

Sabemos da grande, contraditória e complexa importância que teve a Companhia de Jesus na colonização e contra-colonização da América Latina. Cinco séculos depois estas contradições da formação latino-americana estão presentes: a Amazônia e o Paraguai são as duas culturas sul-americanas que mais receberam influência jesuítica. 

Contam que durante pausas de combate, quando a noite caía sobre campos de batalha ouviam-se vozes de lados opostos da trincheira a conversar numa certa língua "estranha" aos oficiais do exército brasileiro. Que era aquela língua estúrdia? Soldados paraguaios "inimigos" e "voluntários" da pátria recrutados no Pará conversando em Nheengatu, a língua-geral amazônica ensinada pelos padres jesuítas aos índios com base no tupi-guarani, "abolida" por ordem do Marquês de Pombal, no regime do Diretório dos Índios (1757-1798). Foi durante o Diretório de Pombal que aconteceu a expulsão dos Jesuítas, então a Aldeia dos Sapararé, catequizada pelos padres, teve mudado seu nome nativo pela Vila de Benfica portuguesa, dentre uma mudança geral da toponímia da Amazônia (tratei do assunto em meu ensaio Novíssima viagem filosófica, na REVISTA IBERIANA: Belém do Pará, 1999).

A imagem da Santa passou das mãos do falecido voluntário da Pátria Raymundo Pereira a seu filho capitão da Guarda Nacional, Alfredo Nascimento Pereira. Em seguida foi zeladora da dita imagem a filha mais velha do capitão, Sophia Tautonila Pereira que foi minha tia e por morte desta, o papel de zelador da Santa coube a meu pai Rodolpho Antonio Pereira (Ponta de Pedras, 1904 - Belém, 1992), filho adotivo e irmão cacula de Sophia para, finalmente, com falecimento deste último a referida imagem ficar sob minha responsabilidade e guarda.

Há grandes lacunas nesta história familiar. Sabemos que a família Pereira deste ramo, aparentemente cristão-novo, chegou ao Pará com o suposto patriarca Domingos Pereira de Moraes, sargento-mor egresso dos Açores cerca de 1752 e que este português foi contemplado (donatário) da fazenda São Francisco (Malato), expropriada aos Jesuítas (ver Alexandre Rodrigues Ferreira, Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, 1783). O nome Domingos Pereira de Moraes aparece quatro vezes nesta mesma família: no século XVIII, o dito sargento-mor contemplado da fazenda São Francisco ( sesmaria de origem da Aldeia das Mangabeiras em 1686 (Vila da Mangabeira) e do município de Ponta de Pedras emancipado em 1878); no século XIX, diretor da Santa Casa de Misericórdia do Pará; e no século XX, o avô paterno de minha mulher e irmão mais velho desta Domingos Pereira de Moraes Neto. 

Seguramente, Raymundo Pereira está inserido na família radicada na ilha do Marajó e por motivos não explicados aparece ele na vila de Benfica, talvez fosse descendente de algum diretor dos índios (funcionário substituto dos padres catequistas nas aldeias indígenas). As origens do município na Amazônia portuguesa se acham nas aldeias das missões substituídas pelo Diretório dos Índios, regime colonial que transformou os indígenas em "caboclos"... Raymundo Pereira e os seus sobreviveram à Cabanagem (1835-1840) ele era morador de Benfica quando foi recrutado como voluntário da Pátria. Todos estes fatos ligados a Benfica ocorreram anteriormente à Colônia de Benevides (1875). A morte de Raymundo pode ter acontecido nos inícios da Colônia de Benevides. Com a construção da Estrada Belém-Bragança a sua família se espalhou para João Coelho (Santa Isabel) e depois veio a se reunir em parte em Ponta de Pedras, onde Alfredo se radicou inicialmente como professor primário: a história de Benevides, entretanto, marcou esta família e o Engenho Santa Sophia provavelmente serviu de inspiração para nome da primeira filha de Alfredo com a índia Antônia, Sophia Tautonila Pereira.

Isto posto, peço a meus parentes presumidos herdeiros do capitão Alfredo Pereira e a meus descendentes acatarem esta singela manifestação de vontade minha. Aos amigos agradeceria apoio para realizar a singela ideia, examinando possibilidade de se criar conjuntamente ecomuseu dedicado à memória dos antigos habitantes da Aldeia Sapararé e depois Vila de Benfica a par da doação prometida, servindo à educação socioambiental do referido distrito e município de Benevides, na região metropolitana de Belém.

Belém, 30 de outubro de 2017
José Maria Varella Pereira (José Marajó Varela).



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"Amigo da paz, encomendei ao meu pranteado amigo artesão, Ismaelino Ferreira, a confecção da imagem holística de São Francisco Marajoara ornado de vitórias-régias, jacarés, em meio à avifauna, com um cordeiro no colo levando um macaco pela mão... Obra genial do querido Ismael que guardo com lembrança e afeição. Pois a imagem de Santa Rita faz companhia a São Francisco dentre o pequeno acervo incluindo estatueta de Dom Quixote e de Buda... Toda a "fortuna" de meu mini museu particular."





COLÔNIA DE BENEVIDES


A colônia agrícola que deu origem ao município de Benevides é posterior à Vila de Benfica originada da Aldeia dos Sapararé catequizados pelos Jesuítas. Por certo, depois da expulsão dos jesuítas a vila foi administrada pelo regime do Diretório dos Índios. Ante da estrada Belém-Bragança a comunicação e abastecimento de Benfica com o resto da província era feita basicamente pelo rio Sapararé através da vila do Pinheiro (Icoaraci). Acredito que existia antigo ramal do velho Caminho dos Tupinambás, chamado também Caminho do Maranhão: primitivo traçado da estrada de ferro sobre a península Guamá-Guajará. 

A Colonia de Benevides remonta ao Império do Brasil (1822-1889), foi criada a 13 de junho de 1875 por decreto do presidente da província do Grão–Pará, Francisco de Sá e Benevides, tendo o sobrenome do presidente com a finalidade de colonizar a Zona Bragantina instalada às margens do antigo dos índios Tupinambás, estrada do Maranhão ou de Bragança vindo do Utinga


O início do povoamento da zona Bragantina deu-se a partir de 04 de junho de 1877, quando chegaram 180 imigrantes na maioria franceses. Grande parte destes não permaneceu em Benevides, mas os remanescentes fundaram engenhos de açúcar com destaque ao Engenho Santa Sophia, dos Fanjas franceses e de São Francisco, dos Begot também franceses. Todo engenho precisou cana de açúcar e onde houve canavial precisou de escravo. 

Todavia este foi um empreendimento colonial tardio, pois em pouco mais de uma década ocorreu a Abolição da escravatura (1888) e a proclamação da República (1889). Outras colonos que deram origem a famílias do município de Benevides foram os Solon (Turquia), Sampaio (Portugal), Dickson (Inglaterra), Dax (Alemanha), Rossi (Turquia), outros como Vieira, França, Ferreira, Gomes, Mendes, etc. O município teve prefeitos destas famílias como Nagib Salomão Rossi, Osmar França, Claudionor Begot, José Begot e Luiz de França Solon. Importantes comerciantes do município são descendentes destas famílias que ajudaram na formação histórico-cultural e econômica de Benevides. Porém, inúmeros brasileiros do Nordeste flagelados pelas grandes secas do final do século XIX encontraram na região refúgio e aqui se instalaram na esperança de melhores tempos. 

O assentamento desses novos colonos ficou a cargo do empreiteiro Capitão Valentim José Ferreira, que já vinha prestando serviços na estrada de Bragança desde 1866. Ou seja, em plena Guerra do Paraguai, no governo do então presidente provincial Pedro Leão Veloso. No início era agricultura familiar para consumo de subsistência. Logo mais as maiores propriedades produziam para o mercado da Capital Belém. Com a volta da chuva no Nordeste, alguns proprietários voltar à terra natal, abandonando suas terras ou vendendo a preço barato. Mesmo assim remanescentes e outras famílias chegadas mais tarde desenvolveram o centro urbano baseado no comércio local e funcionalismo público municipal e estadual. Benevides foi o primeiro núcleo colonial da antiga Estrada de Ferro de Bragança com uma parada no km 33. 


A Estrada de Ferro teve grande influência sobre Benevides, sobretudo, porque sua primeira parte ligava a localidade à Capital do estado num total de 29 km, inaugurada no dia 09 de novembro de 1884. Posteriormente foram instaladas outras paradas e estações como Entroncamento e Ananindeua. Porém, no ano de 1964, por determinação do governo federal (cem anos depois do início da Guerra do Paraguai), a ferrovia foi extinta sob alegação de ser ineficiente. Hoje a antiga estrada tem trechos preservados, fazendo parte da Rota Turística Belém-Bragança e existem propriedades que preservam trilhos de ferro, como no sitio da dona Lia Parente, antiga moradora e outras construções que remontam a época da velha estação de Benevides, em frente aos Correios, que abrigou a Biblioteca Municipal. Até 1961 a Colônia Agrícola pertenceu ao município de Ananindeua tendo antes pertencido ao município de Belém. No dia 29 de dezembro de 1961, a colônia de Benevides foi desmembrada do município de Ananindeua, através da Lei Estadual nº 2.460 e partir daí passou a se chamar Município de Benevides, composto pela sede Benevides (centro e bairros arredores) parte dos distritos de Ananindeua (Marituba já emancipada) e os distritos de Benfica e Santa Bárbara (emancipada) e parte do distrito sede de Santa Isabel do Pará. 

No dia 12 de março de 1962, data da instalação do Município, tomou posse o 1º Prefeito, Moacir Cabral, funcionário do IBGE, no cargo de agente de Estatística e chefe da AME do Município de Ananindeua, nomeado pelo então governador do Estado Aurélio do Carmo, visto ter sido posto a disposição do Governador do Estado do Pará. O município de Benevides é também é conhecido como “Terra da Liberdade”, pois quatro anos antes da Princesa Izabel abolir a escravatura no Brasil, esta foi abolida no Pará, em Benevides precisamente. A festa da libertação se deu no dia 30 de março de 1884 quando General Rufino Galvão (Visconde Maracajú), partiu de Belém com destino a Benevides para presidir a Sessão Magna da libertação dos escravos desta Colônia. 



O Dr. Pinto Braga, presidente da Associação Libertadora de Benevides abriu a sessão, sendo apresentadas ao presidente da província seis cartas de alforria que depois foram entregues aos escravos Maurício (29 anos), Quitéria (24 anos), Macário (20 anos), Luiz (14 anos), Florência (26 anos) e Gonçala (40 anos). Este acontecimento atraiu para Benevides número expressivo de escravos fugitivos de outras localidades sendo essa mão-de-obra empregada atividades agrícolas em pequenas propriedades mediante trabalho assalariado dando desenvolvimento a Benevides. Porém a campanha abolicionista atraiu perseguição por parte de proprietários escravagistas, embora o escravismo já estivesse dias contados.



UM CERTO VOLUNTÁRIO DA PÁTRIA

Desde pequeno tive grande curiosidade para saber a história de minha família e do lugar onde nasci (Belém) e me criei (Ponta de Pedras, na ilha do Marajó), além de meu país; minha fonte principal na história oral foi minha avó postiça Sophia Tautonila Pereira (1886-1972). Ela aos dezoito anos de idade adotou seu irmão órfão de mãe, Rodolpho Antonio Pereira, filho do capitão Alfredo Nascimento Pereira e da índia Antônia Silva. Antônia nasceu na aldeia da Mangabeira, em Ponta de Pedras; foi aluna de Alfredo e se casou com ele tendo três filhas, Sophia Tautonila, Laudelina Diva (Lodica) e Ambrosina; e quatro filhos, Raimundo, Otaviano Celso, Rodolpho Antônio e Manuel, sendo este último natimorto gêmeo de Rodolpho em cujo parto minha avó índia morreu.

Quando me recordo em tenra infância, meu avô Alfredo já estava casado pela terceira vez após a viuvez com a minha avó Antônia e de dona Margarida Ramos, com a qual teve meus tios Flaviano Ramos Pereira, Dalcídio José Ramos Pereira (Dalcídio Jurandir), Ritacínio Ramos Pereira, Lindinha, Mariinha (morreu afogada em Cachoeira do Arari) e Alfredina Pereira Rodrigues. Dona Isabel Trindade foi a terceira e última esposa do capitão Alfredo, com a qual ele viveu até a avançada idade de 106 anos, vindo a falecer em 1955. O capitão Alfredo ainda teve mais três filhos e duas filhas do seu último casamento.

Durante este tempo a imagem de Santa Rita de Cássia esteve no chalé de residência do professor Alfredo e sua mulher Antônia, em Ponta de Pedras, onde permaneceu depois que minha avó morreu, em um pequeno oratório sob guarda de Sophia e Lodica; Foi lá que a vi a primeira vez e ouvi a história do achado na guerra do Paraguai e o retorno de meu bisavô a Benfica até sua chegada em Ponta de Pedras com Alfredo. Vovó Sophia já esquecera boa parte da história, dizia que o nome do avô dela (Raymundo Pereira) era "João", da mulher de Raymundo eu nada sei: deduzo que ela fosse de uma família Nascimento, dado que o filho do casal assinava Alfredo Nascimento Pereira (protótipo do Major Alberto no romanceiro de Dalcídio Jurandir, casado como dona Amélia, mãe de Algfredo, alter-ego do romancista; supostamente a mãe do autor de Chove nos campos de Cachoeira, Margarina Ramos). Um traço marcante da personalidade algo enigmática do capitão meu avô foi o fato dele registrar todos seus filhos apenas como nome de família Pereira. Exceto os filhos de dona Margarida Ramos, todos registrados com nome de família materna e paterna, "Ramos Pereira", exigência da mulher pontapedrense descendente de escravos.

Voluntários da Pátria é a denominação dada às unidades militares criadas em 7 de janeiro de 1865, pelo Império do Brasil, para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870); com que se buscava reforçar o Exército Brasileiro. Foi assim que Raymundo Pereira foi alcançado na Vila de Benfica. Inicialmente formado para tomar proveito do patriotismo do início da guerra, reunindo voluntários alistados espontaneamente. Para estimular o alistamento militar voluntário,  o governo assegurava vantagens como bônus de trezentos mil reis; lotes de terra com vinte e duas mil braças em colônias militares; preferência nos empregos públicos; patentes de oficiais honorários; liberdade a escravos; assistência a órfãos, viúvas e mutilados de guerra. 

Com o passar do tempo, porém, e a diminuição do entusiasmo popular, o governo imperial passou a exigir dos presidente das províncias cotas de "voluntários", que eles deveriam recrutar. Cada província foi mandada prover, no mínimo, 1% da sua população. Por outro lado, havia várias formas de escapar da convocação: os aquinhoados faziam doações de recursos, equipamentos, escravos e empregados para lutar em seu lugar. Os de menos posses alistavam seus parentes, filhos, sobrinhos ou agregados; aos despossuídos só restava a fuga para o mato. Também participaram da guerra índios de várias províncias. 

Guarda Nacional era uma força paramilitar organizada por lei no durante a Regância, em agosto de 1831. Como uma instituição de caráter civil, a Guarda Nacional era subordinada aos Juízes de Paz, aos Juízes Criminais, aos presidentes de Província e ao Ministro da Justiça, sendo somente essas autoridades que podiam requisitar seus serviços. O único cenário em que os guardas nacionais passariam a fazer parte da estrutura militar de 1ª linha era no caso dos corpos destacados para a guerra, quando deveriam atuar como auxiliares do Exército. A convocação da Guarda Nacional foi feita de acordo com os artigos 117 e 118 da Lei nº 602, de 1850, e, de início, teve boa acolhida. Os Corpos de Polícia das Províncias, atuais polícias militares estaduais, contribuíram formando ou complementando diversos Corpos de Voluntários da Pátria. 

Ainda em 1865 os voluntários da pátria passaram a contar com recrutamento forçado, instituído por chefes políticos locais e a oficiais da Guarda Nacional, que forçavam o alistamento de seus opositores. O uso de escravos para lutar em nome de seus proprietários virou prática corrente. Além disso, sociedades patrióticas, conventos e o governo passaram a comprar escravos para lutarem na guerra. O império, então, passou a prometer alforria para os que se apresentassem para a guerra. 

Isto fez com que escravos fugissem das fazendas individualmente ou em bandos, e se apresentassem aos recrutadores com nomes falsos, para despistar seus senhores, mesmo com o governo fazendo vista grossa. Dom Pedro II deu exemplo, libertando todos os escravos das fazendas imperiais para lutar na guerra. O jornalist Manuel Dutra conta a história de Pedro, "tinha apenas 18 anos nos idos de 1865, vivendo com a mãe, conhecida na redondeza como Tia Rosa, morando ambos num vilarejo do interior de Alenquer. Ela tecia redes de dormir e ele pescava, caçava e se embrenhava nas matas à procura de cupuaçu, pupunha e outras frutas." 

"Lá um belo dia chega a notícia de que o Brasil declarara guerra ao Paraguai e, o Imperador precisava com urgência de voluntários para combater a fera chamada Solano López, ditador do país vizinho, que estava ameaçando invadir e tomar um bom pedaço do mapa do Brasil. López era descrito por todo o interior do Pará como uma fera, a figura humana do diabo. Era o satã a ser combatido para a salvação do mundo e derrota definitiva dos infiéis."

"MOVIMENTO DIFERENTE Numa tarde de dezembro daquele ano tumultuado, o jovem Pedro, ao voltar da pesca, notara um movimento diferente do habitual. Olhando bem, ele percebeu a aproximação de Manuel de Andrade e dois ou três soldados, de farda e baioneta, coisa que nunca se vira por aquelas paragens. Era apenas um aviso do que aconteceria nos dias seguintes: o capitão Fabrício fora nomeado recrutador de jovens para a guerra em todo o termo de Alenquer e tinha ordens do presidente da Província do Pará para encher o navio que logo passaria por ali, embarcando “voluntários”, isto é, jovens para a guerra do Paraguai. Essa história é contada por um dos melhores escritores brasileiros, Herculano Marcos Inglês de Sousa, nascido em Óbidos em 28 de dezembro de 1853, autor de diversos outros romances que enobrecem a literatura brasileira, embora seja Inglês de Sousa pouco conhecido no Pará, por razões que só os professores de Português e Literatura podem explicar. Ele foi amigo de Machado de Assis e de outro grande obidense, José Veríssimo, com os quais contribuiu para a fundação da academia Brasileira de Letras, da qual participou da primeira diretoria." 

"O livro onde se encontra essa história tem como título Contos Amazônicos e eu o encontrei numa livraria dentro do campus da Unicamp, em Campinas-SP. Trata-se de nove contos sobre a vida no interior paraense do final do século 19, revelando que, em um século e meio, muito pouco mudou no interior do mundo amazônico".

"Finalizando a história: a comissão de recrutamento chegou ao vilarejo onde Pedro e Rosa moravam e foram pegando “voluntariamente” os jovens que eles achavam aptos para os treinamentos em Belém e no Rio de Janeiro, antes de partirem para o front, lá longe no Sul. Obviamente, ninguém queria ir, aquela guerra era longe demais, tudo era diferente. A garotada tentava se esconder, mas era agarrada a unha e posta no barco que os levaria primeiro para Santarém, onde um navio os apanharia."

"ARRIMO DE FAMÍLIA Pedro e a mãe, já instruídos por algum amigo mais esclarecido, argumentaram que ele não poderia ser recrutado por ser arrimo de família, conforme dizia a lei do Imperador. Ocorre que o jovem Pedro era o mais forte de todos e os recrutadores fizeram da lei letra morta, levando-o também para Santarém. Colocados num casarão que Inglês de Sousa chama de quartel, os rapazes amontoavam-se à espera do navio que os levaria a Belém. Pedro entre eles. Sua mãe, já idosa, viajou para Santarém. Conta Inglês de Sousa que, ele próprio advogado, entrou com um pedido de habeas corpus em favor do jovem, mostrando ao juiz o benefício da lei de recrutamento relativa a pessoas que eram arrimos de família."

"Quando o delegado de polícia soube do tal habeas corpus, mandou algemar Pedro e, na calada da noite, o despachou de canoa, na véspera da chegada do navio, levado por soldados até mais ou menos a boca do Rio Ituqui. Quando o navio aportou em Santarém, mães e pais dos jovens agarrados à força, estavam naquela cidade, implorando pelos filhos. Inutilmente." 

"Pela tarde, sol escaldante, sai do quartel a fila dos “voluntários”, todos algemados, acompanhados por uma banda de música chamada justamente para impedir os parentes e a população em geral de ouvir o choro da garotada. Inglês de Sousa olhava aquele desfile que mais parecia um cortejo fúnebre. Não viu Pedro, em nome do qual pedira ao juiz o cumprimento da lei de recrutamento, e fora atendido. Num instante, imaginou ter obtido êxito, porém logo foi informado do paradeiro do rapaz, que lá longe esperava a passagem do navio para ser embarcado. Sabendo disso, foi ao juiz e reclamou verbalmente. O juiz então lhe disse: colega, você ainda é muito moço, não queira ser a palmatória do mundo. E acrescentou: sabe de uma coisa? Vamos tomar um café…







Voluntários da pátria é o nome dado aos corpos de soldados criados pelo governo brasileiro no início da Guerra do Paraguai.
LOAS AO IMPERADOR E assim foram aqueles “voluntários”, algemados, para as quintas da guerra. Quem ficou perambulando pela praia foi a velha tapuia, a Tia Rosa, que enlouqueceu diante da brutal arbitrariedade que lhe retirou o único filho e a única pessoa a quem amava. Foi como se ela tivesse assistido ao enterro de Pedro vivo. Assim termina Inglês de Sousa a sua história:
“Ainda há bem pouco tempo vagava pela cidade de Santarém uma pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, cantando com voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular:
Meu anel de diamantes
Caiu n’água e foi ao fundo;
Os peixinhos me disseram:
Viva Dom Pedro Segundo!
Nos versinhos repetidos pela Velha Rosa, chorando a perda do filho único, talvez repouse a essência de uma ditadura permanente contra os pobres, para os quais a lei é sempre a do mais forte, do alfabetizado, do endinheirado, da “autoridade” que faz da lei o que bem quer." (Manuel Dutra).


Imagem relacionada
igreja de Nossa Senhora da Conceição, vila de Benfica (Benevides-PA).

https://pt.wikipedia.org/wiki/Benfica_(Benevides)

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