PRA NÃO DIZER QUE DALCÍDIO NÃO FALOU DOS PRADOS VERDES DA HOLANDA






É irônico o fato de que, nas primeiras páginas do romance "Chove nos campos de Cachoeira", o autor contraste imagens de campos queimados e a lembrança do verde voltando com as chuvas comparado aos prados verdejantes da Holanda. E, agora, depois de um enorme descuido nacional com a obra do grande romancista da Amazônia; os campos verdes que se apresentam em Cachoeira são de arrozais banidos de Roraima por transgressões aos direitos humanos de povos indígenas para "redenção", diz-que, da Criaturada grande do chamado "índio sutil".


 
Paulo Cesar Quartiero, o perseguidor dos indios da Raposa Serra do Sol






"Quando as chuvas voltavam, então era que d. Amélia sentia mais desejos de levar Alfredo para Belém. Já está crescido, ele, mas tudo pode acontecer com aquelas águas que iam e vinham, mornas e silenciosas. Os jijus vinham na enchente e para Alfredo não pareciam peixes, pareciam filhos de sapo e de cobra. No chalé não se comia daquele peixe porque era como se comesse lama. Mas Alfredo gostava das grandes chuvas. Podia ter medo mas era enorme a sensação de ouvir, uma noite, o ronco dum jacaré debaixo da casa. As montarias andavam pelos campos. Didico ia com o seu pequeno barco pegar porfia com o barco do Roldão, na lagoa atrás da casa do Dr. Adalberto. Aqui, deste lado de Cachoeira, não se andava mais a pé, se navegava. 
Alfredo sentou-se na escada. O caroço nos campos, perdido. Agora tem que ir ao tanque escolher outro que fale, lhe mostre os prados da Holanda, o arranque destes escampados mormacentos.
A vila caía num sono como uma menina doente. Por que sua mãe não resolvia logo o caso do colégio? Alfredo não sabia que voltava com a escura solidão dos campos queimados, estava mole, com um indefinido esmorecimento. Ouve sempre Major Alberto dizer a d. Amélia:
– Uma gente que não se corrige. Não se convencem que não devem queimar os campos. Por que... Ouviste? Psiu. – Major puxa pela manga da blusa de d. Amélia. – Por que... Esteriliza... Ouviste? – Major explica, e Alfredo ouve a explicação, meio sonolento. Quando está em sua rede, à noite, sempre ouve os dois conversarem, e a conversa toma um ar misterioso, um ar de histórias que eles contassem para o adormecer. D. Amélia pouco fala. A voz dela vai para o quarto naquele mesmo tom com que pediu a ele que não contasse a queda no poço. E naquela noite, última noite em que Major Alberto falou dos campos comidos pelo fogo, lá fora, o clarão era grande e Alfredo sonhou que o fogo também queimava o chalé e via as mãos de sua mãe como carvões. Alfredo tem um sono como aqueles campos ardendo, como aquela noite queimada. E quando o vento cresce sobre o chalé ouve-se gemer a terra e a noite que o fogo queimou."

José Varella: Caminhos do menino Alfredo

*
Do rio Arari, na vila da Cachoeira, ilha do Marajó; o filho de dona Amélia com major Alberto ganhou o mundo, paresque. Esse camarada está me saindo um andarinho e tanto, com o tal caroço de tucumã na mão à modo de talismã. Está parando agora no Rio de Janeiro, na casa de Rui Barbosa, em Botafogo. O José Roberto Pereira me escreveu dizendo que o menino dalcidiano gosta de flanar pela Barra da Tijuca, onde demora contando estórias do extremo-norte ao pessoal que passa pela Rua Dalcídio Jurandir, não muito longe da Avenida das Américas.


P'ra você ver, como o avô Bibiano acertou em cheio quando viu o neto dele calçando botas ao lhe seguir os passos descalços na trilha encharcada dentro da mata, a ver como se escolhe miritizeiro e corta braço de miriti p'ra tirar tala e tecer paneiro, disse o preto velho ao Alfredo, de passagem ao inocente dos males desta gente: “esse teu pé no bostoque, vai é que vai”... E foi longe. Alfredo fez amizades interessantes. Primeiro ele acompanhava o Dalcídio feito carrapicho pregado à roupa. Aonde o escritor de Marajó fosse era sinal de que o menino do caroço de tucumã estava por perto. Diz-que ele foi até Moscou e andou uns dias por Santiago do Chile. Imagine dona Amélia, coitada, preocupada com o filho dela achacado de febres naquele frio danado abaixo de zero! Alfredo, paresque, carregava todo paludismo das crianças das Ilhas filhas da chuva com o esquecimento...



Acho eu que o Dalcídio levava o pirralho a tiracolo, certo de que com o tempo ele acabará sendo nomeado pelo governo da República Brasileira embaixador das crianças amazônicas creditado perante a ONU, em Genebra. Pois é aí que funciona a missão do desarmanento mundial e Alfredo é militante da paz e da justiça, como todas as crianças da Terra antes que seus pais lhes façam filhos da luta biruta. Crianças carecem de futuro e não se cansam de brincar e esperar o dia universal da felicidade. Por isto aquele jogo mágico do carocinho de tucumã, arte de abrir caminho em direção à Escola e ao futuro. Onde se faz forte o desarmanento da ignorância e desmonte da feia pobreza de espírito, estas maiores injustiças do mundo que fomentam a violência sem fim, desde a noite dos tempos. O negócio do Alfredo é o Futuro! Ele vai e volta sobre os caminhos que Dalcídio traçou no mapa da criaturada grande, a fim de pegar o fio da meada e cortar o mal pela raíz: desde a primeira noite do mundo, quando a mãe Natureza, ou a Cobragrande mítica, mãe dos homens; pariu a Cultura para abolir o império do trabalho escravo, findar aquele infinito dia com o sol por testemunha caduca. Logo se vê que a liberdade é o nome desse adorável futuro, que grelou com a noite e o sonho do fundo do rio, de dentro de um caroço escuro.


Pois, exatamente, a primeira noite do mundo morava naquele caroço negro pelo tempo imemorial. E o tempo do mito queria sair do escuro e trazer a lua e estrelas, o amor e a poesia para virar estória de gente e história decente. Alfredo sonhava que o encantamento daquele amuleto achado por acaso lhe abriria a porta da escola na Cidade grande.


Dito e feito! Agora Alfredo flanava pela Rua Dalcídio Jurandir, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro; estava com o pé nas estradas do mundo... Sempre pensando em tantos outros Alfredos, que não puderam ainda sair do degredo por medo de perder o lugar na terrinha ribeirinha; e tantas meninas Alfredinas enganadas pelo boto safado de rios e igarapés da maternidade precoce, sem leite no peito ou dinheiro para comprar outro e dar de mamadeira ao filho; que não seja a troco daquilo que a moral e os bons costumes mandam não dizer em público. Ou, se quiser, esperar pelo leite ralo da seringueira barriguda da beira do rio, em fim de safra da borracha. O cenário cruel que se esconde na rede rasgada dentro da barraca na paisagem fotográfica p'ra inglês ver.


Andreza ficou atrás das recordações de Alfredo, pelos caminhos do mundo, a  menina colhia frutos de tucumanzeiro p'ra fazer a divina canhapira de Cachoeira por toda eternidade... Alfredo em suas andanças havia aprendido muitas coisas, até que aquela palmeira de espinhos que dá o tucumã, tem nome científico; chama-se Astrocarium vulgare... Mas, com tal nome científico Andreza não faria o manjar dos deuses pagãos do Arari. Claro, canhapira só presta se for mesmo de sumo de tucumã maduro e perfumoso, assim no dito popular.


Alfredo achou no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, vindo já da Real Biblioteca do Porto (Portugal) um relato anônimo com título de Notícia da Ilha Grande de Joannes, metade do século 18; lá estava a canhapira em príncípios. Ou seja, o óleo de palma tucumã como comida da pobreza... Olha só! A divina canhapira no berço do acaso inventada pela mão da necessidade do povo marajoara. Mais uma vez, este misterioso casamento que pariu a primeira cultura da Amazônia na maior ilha flúvio-marinha do mundo. Alfredo se destinava talvez a levar à frente a tremenda novidade amazônica!


Depois que Dalcídio morreu, no Rio de Janeiro, no dia 16 de junho de 1979, Alfredo estava lá e morava em Laranjeiras com o escritor. O cara ficou desesperado, também não era p'ra menos. Os parentes e amigos do escritor consternados lembravam de Dalcídio e o pequeno se refugiu, então, com as traças e os romances do ciclo extremo-norte encolhido em estantes de biblioteca. A herança que restava ao menino marajoara eram os prêmios que o romancista ganhou. Então, Alfredo criatura imortal, mas obrigado a se eternizar como criança; teve que se virar para sobreviver ao ostracismo, que já vinha do exílio de Laranjeiras e da enfermidade que vitimou seu criador.



Alfredo pegou o Ita de volta a Belém do Pará: pouca gente aí o conhecia, embora o nome de Dalcídio estivesse sempre lembrado. Mas, pela magia do mítico carocinho ele não estava só e conhecia o caminho do Marajó até Gurupá, Baquiá e adjacências: subindo o Amazonas ele acertava o rumo do Tapajós até a altura de Itaituba; baixando, de Breves adiante estava em casa... Pois, se ele na Cidade se encontrava na pele de muitos meninos e meninas de rua, mais ainda estava na companhia solidária de crianças ribeirinhas nas Ilhas...



Tomou canoa à vela na doca do Ver-o-Peso e foi rever a antiga Vila de Ponta de Pedras onde o escritor nasceu. Ninguém sabia mais de Dalcídio, e muito menos desse Alfredo sem eira nem beira: nem mesmo parentes do escritor sabiam o porquê dele ter ficado ausente da terra natal, por necessidade ou fado. O pirralho pegou montaria a remo e subiu o rio Marajó com colegas de trabalho infantil, foi apanhar açaí (com a peconha de folhas torcidas, ele já não tinha mais aos pés as botas sete léguas, que o avô profetizou iriam lhe levar ao mundo), cortou palmito, tirou madeira por trinta dinheiros obrigado a devastar a floresta; morto de fome e com sede tomou água barrenta do rio, sem tratamento... O carapanã da malária por perto achou sangue novo naquele “carioca” esperto de volta à roça e lhe flechou... Foi tiro e queda: toma-lhe febre! 40 graus à sombra do jirau, na beira do igarapé fazendo teré-teré de ardido frio no inferno verde.



Correu no rumo de Cachoeira, que nem teve tempo de parar em Santana ou no Araquiçaua à espera da maré e da noite. Foi pedir colo de dona Amélia no chalé, escutar os ralhos do major: “Psiu! Por onde andava este pirralho? Vê como está de cabeça quente!... Rio de Janeiro? Dalcídio? Quem é esse um? É a febre, o delírio do paludismo...”. Era a zanga do pai como fora o de sempre no caso do irmão Eutanazio, morrendo calado como um carneiro sofrendo os males do mundo. A febre e o medo, e a chuvarada enorme! Os campos alagados e o desconforme desamparo que sofria com o desaparecimento de Dalcídio, morto e enterrado no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. O marajoara que havia ganhado prêmio de literatura na Academia Brasileira, amigo de Jorge Amado, viajado, premiado, nome de rua na Barra da Tijuca... Era a febre, a malária papa-anjo; os passarinhos abandonavam os ninhos na árvore folha-miúda se assustavam com o delírio de Alfredo e voavam p'ra longe do chalé! Alfredo passava mal. Chovia à beça. Era o dilúvio nos campos de Cachoeira... O Arari invísível extravazava sobre o teto do mundo como o Gânges cósmico inunda a Terra sem males.


Sorte dele, todavia! O professor Paulo Nunes encontrou-se com o professor Gunter Pressler, que vinha da Alemanha via São Paulo descobrir com Willi Bolle a árvore das letras da Amazônia. Disse o primeiro, perito na narrativa das águas. ao segundo, iniciado ao espírito das viagens; se você quer saber neste mundo o que é que a chuva tem além do arco-íris e das nuvens, leia Dalcídio Jurandir e vá até Cachoeira do Arari, pelo menos. Gunter aceitou o desafio na hora e foi embora por Salvaterra. Ao chegar na terra de João Viana, finalmente; e passar pelo Museu, lhe pareceu ver a Ponte do Galo, no bairro do Choque era talvez uma passagem dos inocentes, donde ele contemplou os habitantes, vizinhos ao Chão dos Lobos, Ribanceira estava além de Marinatambalo, alíás Marajó... Para ter certeza de que estava próximo de três casas e um rio: foi em frente, até o risonho bairro de Petrópolis da irônica baixada marajoara e bateu à porta do chalé. O viajante constatou, chove nos campos de Cachoeira a cântaros da antiga era de Aquário... Mas, não tinha mais jeito, era sua primeira manhã neste novo mundo descoberto, Belém do Grão-Pará estava na outra margem da civilização... Não demorou um minuto, Alfredo atendeu.



Vinha muito cansado, os campos queimados o tinham levado para longe... “Nossa! – exclamou o viajante teuto-marajoara – Alfredo, como está você?”. O menino, então, falou de suas conversações com Benedito Nunes e Vicente Salles: a revelação do mito da primeira note do mundo... A filha da Cobra grande era a cultura, ela ia se casar com quem? Com Dalcídio Jurandir? Aquele dia enorme... Os três escravos quebraram o caroço de tucumã que estava escondido no fundo do rio: a noite boiou do fundo das águas e pintou de negro os campos-gerais, trouxe com ela as estrelas e a lua, o canto da curuja, do bacurau, os vagalumes que vagavam pelos campos como os olhos mortos de Eutanazio à procura de Irene... Alfredo contava a respeito de suas viagens com Dalcídio pelas Ilhas...



Gunter foi num pé e voltou noutro: em Belém do Grão-Pará assistiu o Círio passar com o carnaval devoto pelos olhos acesos de Alfredo, correu à internet e passou e-mail ao Ruy Pinto Pereira dizendo a este, urgente: “achei Alfredo! Ele está aqui no norte.” Ruy respondeu imeditamente, Alfredo está aqui no Rio de Janeiro, no Instituto Dalcídio Jurandir. Aliás, foi visto antes em Portugal passeando em Lisboa com o Ferreira de Castro... De parte a parte, era pura verdade! Alguém anunciava que o ministro Jack Lang tencionava convidar Alfredo para ir a Paris e confidenciara o projeto a seu amigo ministro da Cultura Gilberto Gil. Alfredo estava preocupado, não o fossem confundir com um imigrante clandestino: queria ir em companhia do Maurice Gey, que entendia como ninguém do pôr do sol e das crianças do Marajó. Gunter corfirmava que amigos seus na Alemanha e Suíça também queriam convidar Alfredo a dar uma espiada no velho mundo. Então, todos compreenderam a mensagem do Ruy do Rio, quando Vicente Cecim que vinha de viagem a Andara montando seu Rocinante alado trazendo o pássaro Curau à garupa, sentenciou: minha gente, Alfredo está no mundo. É embaixador das Ilhas no Planeta!

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