A Educação pelo Barro
A Educação pelo Barro
Entre chuvas e esquecimento,
há 1500 anos, em páginas concretas de cerâmica; o Marajó velho de guerra mandou
escrito seu grito às margens plácidas do Ipiranga. Tributo amazônico da
invenção coletiva de um país do futuro chamado Brasil, sito abaixo da
constelação do Cruzeiro do Sul, então conhecido ou imaginado pelas muitas
gentes do equador da América do Sol pelo sagrado nome de Arapari: isto,
paresque, se passava durante diversas migrações ancestrais do circum Caribe. Hoje nós sabemos que
aquilo foi a primeira manhã ao fim da primeira noite do mundo. Mito fecundador
da amazonidade que existia encerrado dentro de um caroço de tucumã no fundo do Rio
babel das amazonas amazônicas, ditas então icamiabas...
Aí, menina! Vai por mim: o
que dá pra rir dá pra chorar... Então, começaram a chegar feios caraíbas,
comedores de gente; pelas bandas do setentrião do mar Salgado e também pelo
lado do meio-dia do Pará grande d’água doce... Até hoje em dia essas
corporações transnacionais famintas de matéria-prima e trabalho barato. Naquele
tempo, o socorro da gente eram as matriarcas. As velhas tinham lá os seus
arcanos de vida e morte com que aprenderam da cobra jararaca a fazer remédio e
veneno conforme a necessidade e acaso, segredos da nossa mãe Lua transmitidos
às mulheres com os mistérios das águas e a força das marés. Com isto os
guerreiros eram guiados pela sabedoria certa do tempo das safras e da piracema.
Na guerra ou na paz as mulheres e suas crias estavam em primeiro lugar: para o
valente fazia sentido a poesia de Pessoa: navegar é preciso, viver não é
preciso... Criou-se assim a dialética da dança do peixe: a pirapuraceia. Com
isto, veio a furo a resistência marajoara. Luta vital que haveria de perdurar
até o fim dos tempos da guerra antropofágica global.
Deste modo, sempre em busca
do de comer nosso de cada dia chegou-se ao manejo dos gados do rio e fabrico do
bom vinho de açaí com pirão de farinha d’água. Evoluiu-se da arquitetura
aruaque de palafitas do mangal à engenharia nuaruaque dos tesos com o divino barro
dos começos do mundo (lembrando a saudação do turco encantado Jorge Amado da
Bahia ao índio sutil do Pará Dalcídio Jurandir...). E, portanto, não careceu
pagar patente de invenção à civilização do delta do Nilo para inventar a civilização
do estuário amazônico: tudo, afinal de contas, a mesma Terra sem males
procurada por males infinitos seja neste novo mundo ou no velho continente da
gente. A universidade da maré requer consciência através do olhar marajoara
para ver o peso da educação ribeirinha.
O mundo precisa saber que o
maior país amazônico do mundo é o Brasil: porém, sem a Amazônia lusitana não
existiria o país gigante da América do Sul. Foram precisos 44 anos de guerra a
partir da conquista do Maranhão (1615) para inventar a Amazônia e 127 anos de
ocupação depois da tomada de Gurupá, mais ou menos pacífica, para Alexandre de
Gusmão sair vitorioso das negociações do Tratado de Madri de 1750. Mas, é certo
que a escola historiográfica imperial passa ao largo das pazes com os índios do
Marajó, em 1659. Certamente, devido à vetusta doutrina do jurisconsulto Ginés
de Sepúlveda da “guerra justa” pela qual era dever cristão submeter os povos
mulçumanos e escravizar os índios... Que, portanto, estando destinados ao limbo
não tinham direito nenhum.
Sobre o pensamento deste
nobre eunuco da cristandade foi fundado o edifício da jurisprudência colonial
ibérica. Não espanta que seus herdeiros espirituais até hoje ainda relutem em
aceitar os direitos humanos universais e a convenção da diversidade cultural.
Curiosamente, contra ele outro dominicano, frei Bartolomeu de Las Casas;
proponha um processo colonial com inclusão dos índios que deveriam ser
protegidos e gradualmente integrados ao cristianismo: o mesmo que Antonio
Vieira propunha aos reis de Portugal com referência às suas colônias...
A biografia deste pilar da
Civilização ocidental-cristã é reveladora de um grave transtorno bipolar
agravado por acidente de equitação que o levou à castração. Desde então, ele
foi alcunhado de “Ginés, o amputado” e alimentou um complexo de compensação que
a psicologia de Adler explica. Um dos traços mais curiosos da personalidade de
Ginés foi sua dieta alimentar, fazendo leitura de Aristóteles ele associava
virilidade física ao vigor intelectual. Para ele força peniana era justa medida
do intelecto. Propunha a seus seguidores uma alimentação para virilidade onde
havia cabeças de peixe (referencia à glande), leite, testículos de animais e o
hábito de beber a própria urina. Isto virou moda entre clérigos e intelectuais
de Bolonha, Sicília e Florença no século XVI. E como Sepúlveda outros mentores
alucinados forjaram a História e o Direito civilizatórios dos “povos
inferiores”...
Sendo assim, não é só o
Brasil e o mundo que tem que salvar a Amazônia por causa da floresta e a pureza
de seus rios. É Marajó que precisa ser restaurado e revitalizado em suas raízes
humanas primogênitas para os brasileiros do Oiapoque ao Chuí voltarem ao futuro
do Brasil brasileiro. Uma utopia brasílica capaz de apontar a saída que o novo
mundo pós-colonial carece. A fim de dar passo avante com toda humanidade
libertada de seus próprios fantasmas.
Já não se há de procurar mais
o velho caminho da Índia nem buscar com avidez negócios da China. Mas, as
Índias orientais e ocidentais a se encontrarem numa Terra única: e o caminho do
meio, transformado pela antropofagia filosófica, da arcaica zona tórrida das
Antípodas no espaço plano; há de ser a ponte internacional da segurança
alimentar pelo laboratório dos Trópicos no espaço curvo. Que, por acaso, trouxe
Colombo com seus demônios a inventar e destruir as Índias ‘acidentais’...
O primeiro passo na
recuperação da velha universidade antropofágica para inaugurar a nova
universidade do Marajó pós-moderno será a libertação da Antropologia dos dogmas
naturalistas do “Homo sapiens”: onde o olhar velhaco da Europa investe-se de
uma missão autocomplacente de civilizar o mundo e se apropriar dele contra os
Outros... Então, este novo caminho de Damasco dos nossos catequizadores deverá
lhes fazer cair as escamas dos olhos. E lhes curar a cegueira de que falou o
Padre Antônio Vieira, no Maranhão em 1654, no “Sermão aos Peixes”. Que não são
os civilizados a salvar os bárbaros. Mas, bem ao contrário os bárbaros que no
fim da história da infâmia hão de salvar os civilizados de si mesmos.
Aí serão as mulheres –
sobretudo mulheres indígenas e quilombolas – as nossas mestras e educadoras
nessa Universidade do futuro da humanidade. Pena que o filósofo luso-brasileiro
Agostinho Silva, talvez, não curtiu tanto as pazes dos Nheengaíbas:
antepassados dos cabocos ribeirinhos nas ilhas da Amazônia Marajoara, no rio
dos Mapuá (Breves, Marajó) urdidas com realismo mágico pelo seu idolatrado
“imperador da língua portuguesa”, Vieira (segundo o poeta Fernando Pessoa). Pois,
destarte, o sebastianismo revivido ainda no “rio Babel” (rio das “almazonas”)
proclamaria o “menino”, que vive eternamente na espécie “Homo sapiens”, imperador do quinto império. Ou quiçá o
Desenvolvimento Sustentável. Esta utopia ambiental perseguida pela ONU através
de diplomacia e pompa. Como, por exemplo, na RIO+ onde mais uma vez as
populações tradicionais (“Criaturada grande de Dalcídio”, no Marajó, Baixo
Amazonas e Ilhas) darão eco daquele antiqüíssimo grito indígena perdido entre
chuvas e esquecimento na boca do maior rio da Terra.
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