O TIPIPI E OS GADOS DO RIO



o tempo da memória tem caprichos particulares, Freud explica. As tais associações de ideias. Andei conversando em casa sobre a eleição do brasileiro José Graziano da Silva para a FAO e pensei na "Geografia da Fome" do mestre de nós todos na academia do peixe frito Josué de Castro. Meu filho estudande de geografia começou a ler o sábio do Recife e ambos nos demos conta de que o ponto de partida para a obra foi a alimentação na medicina.

uma conversa leva à outra. Agora, por causa da Fome planetária, o exilado e discriminado Josué alcançou renome e Graziano foi eleito com arrojo diplomático do Brasil para direção geral da FAO, a agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Nunca dantes um tupiniquim do patropi havia chegado tão alto assim. graças a luta diária de achar o de comer desque que o mundo é mundo. Desde quando, talvez no desespero da madre Fome, a velha animalidade se converteu em humanidade... Não é café pequeno, não: por esta via de recordação dolorosa me lembrei também de meu falecido tio Rita (doutor Ritacínio Ramos Pereira), autor de um curioso livro de pesquisa sobre hábitos alimentares da gente amazônida, entitulado "O tipiti e os gados do rio". 

Escolha feliz do tema da sobrevivência e inventividade gastronômica desta gente do trópico úmido sul-americano; que teve e sempre terá no 'pão da terra' - a utilíssima mandioca de cada dia, que a Ciência e Tecnologia já deu a ela centenas de utilidades para indústria, inclusive com lubrificante para broca de extração de petróleo, imaginem! - a maior justificativa de seu capital humano e do nome da Capital desta nossa região no Brasil e no mundo, a cidade de "Belém", raínha da tapioquinha e do tucupi. Descendente da velha "casa do pão" da Palestina; plantada à margem meridional do "rio das almazonas" por terríveis matabugres cristãos-novos, vindos de Nova Lusitânia (Pernambuco), levantar o forte do Presépio com os reis magos a fundar Feliz Lusitânia (Pará) e buscar o país de Ofir ou do El-Dorado em memória da velha e dispersa Judéia.

chegamos a outubro em Belém do Pará da Virgem de Nazaré e do inseparável carnaval devoto. Com que, na procissão do Círio a revolução popular proclamasse a paz universal. O sagrado e o profano ficam vizinhos, este dia eterno enquanto dura a romaria quando ricos caminham descalços pelas ruas com o povo: uma trégua milagrosa na luta de classes e verdadeira anistia da Cabanagem... 

décimo mês do ano no calendário gregoriano, que tem ainda de fazer concessão local ao regime da Lua e ao clima equatorial. Outubro é mês o mais 'terruá' e universal da Amazônia-Pará ao mesmo tempo: não por acaso, Natal dos paraenses... Vésperas anciosas de corrida à feira do Ver O Peso para comprar tucupi, pato, jambu, maniva, farinha d'água e tudo mais que faz a mesa do Cirio; complemento indispensável da própria romaria que veio de Portugal um dia lendário e, dantes, com a diáspora da Galileia foi parar em terras lusas. No Pará, a mestiçagem de corpos e almas do interior do imenso vale do Amazonas e várias partes do mundo exteior... Eis aí uma simples leitura do Círio que a bordo da academia do peixe frito se pode fazer.


donde viemos e aonde vamos podemos não saber, mas seguramente sabemos que é a Fome nossa senhora desde o nascimento até a morte. Fato vital que, se não está consciente na cabeça da gente, adormece no coração e no fundo do rio da memória... Eis que a pesca seja de rede ou anzol não apenas puxa filhote, pescada gó, taínha... Há quem acredite que a filosofia nasceu em horas de espera na pescaria ou na beira do moquém assando peixe para a gente comer. Talvez a história do rio de Heráclito tenha algo a ver com isto. Tudo tem história oral ou escrita, lembrada ou esquecida. Para gente ribeirinha, antigamente, eram Gados do rio o peixe-boi, tartaruga e pirarucu. Levados à extinção pela fome e ignorância da população, hoje é verdadeiro milagre quando se come um naco desse 'gado' e não leva multa do IBAMA. Que era antes para ser instituto de proteção ao meio ambiente e virou polícia sem conseguir dar termo, de verdade, à devastação.


Claro, sem querer liberar geral - isto sim que seria o maior milagre da Virgem Mãe natureza, com certeza! -, se polícia e cadeia fossem solução não existiria crime organizado ou bagunçado nestas paragens e, principalmente, no resto do mundo dito civilizado. Cada vez estamos mais aprisionados atrás das grades da própria morada, reféns do consumo e do crédito insano; aterrorizados por arsenais insustentáveis e famintos de carne de canhão. 

como sempre, dei voltas demais. O caso é como "O tipiti e os gados do rio" levou sumiço, tal qual o peixe-boi que outrora vinha pastar nos lagos da Cidade através de canais naturais ditos a "Comedia do Peixe-Boi". Toponímia histórica morta em Belém do Pará em conluio da alienação ambiental e patrimonial urbana, que faz a gente esquecer e dizer - com ironia, por acaso - 'a comédia do peixe-boi'... De verdade seria cômica se não fosse trágica. A antiga comedia ou pastagem aquática, como todos igapós e igarapés condenados pelo urbanismo neoclássico importado da Europa; virou Praça Amazonas; fronteira ao antigo convento e presídio de São José, hoje convertido em pólo joalheiro São José Liberto da ruina da "belle époque", por milagre contemporêneo da arquitetura da revitalização urbana. 


O autor andou de seca a meca em busca de meios para imprimir e distribuir a pesquisa. Pelo menos dois reitores da UFPA, colegas de classe ao tempo da faculdade de Medicina; juraram que o haviam de publicar nem que fosse a última coisa que eles fariam na reitoria. Não se sabe que forças ocultas agiram contra a prublicação do livro. O mais interessante, que qualquer um poderá investigar se quiser, nos anais do Conselho Estadual de Cultura por onde a obra passou, é que o trabalho do doutor Ritacíio Pereira teve parecer altamente favorável do mesmo para publicação.


A última vez que falei com meu tio, o irmão dele Dalcídio José Ramos Pereira [Dalcídio Jurandir] já havia falecido. Perguntei sobre a publicação da obra, ele já estava conformado e cansado de atualizar as informações. Por fim tio Rita morreu e, por simples curiosidade, perguntei a meus primos se havia encontrado entre os pertences do morto "O tipiti e os gados do rio". Não foi encontrado, como se a gastronomia tradicional do Ver O Peso, nomes de lugares de memória de Belém do Grão-Pará, os animais e as plantas e tudo mais da região estivessem marcados para morrer de morte matada ou morrida. Entre chuvas e esquecimento a espera do milagre do Círio a academia do peixe frito apenas pode fazer o elogio fúnebre d"O tipiti e os gados do rio". Paciência? A FAO talvez por intermédio da Cátedra da UNESCO junto ao NAEA/UFPA pudesse motivar jovens cientístas a prosseguir na Amazônia os esforços do Dr. Ritacínio Pereira sob inspiração do genial Josué de Castro. E viva a Virgem de Nazaré com seu manto bordado de lendas de Yemanjá e mitos das icamiabas, em sua berlinda barroca enfeitada pela teoria holística de Gaia puxada pela corda da mestiçagem. Glória! Aleluia! Peixe frito no prato e farinha na cuia!

melhor que isto, só se a Virgem fizesse os governos desta antiga terra dos Tapuias levar avante projeto e construção de parque aquático amazônico onde o pacífico e benfeitor Peixe-Boi possa nos curar da cegueira congênita do colonialismo. Conforme o padre grande dos índios, Antônio Vieira, alertou no "Sermão aos Peixes" (S.Luís-MA, 1654). São Luís em 2012 comemora 400 anos e poderá abrir um novo ciclo para reinvenção da Amazônia até os 400 anos de Belém do Pará, 2016. Fé no avenir da capital do Pará (lembrando Henri Coudreau) com a expressão geográfica de Belém (obrigado mestre Eidorfe Moreira). Abram os olhos, esta gente, pra ver o peso da verdadeira riqueza desta região do Planeta Água!







Fonte: http://seewolf.biz/Manatee.jpg

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