SIMULTÂNEO AO PRIMEIRO ECOMUSEU DO MUNDO NASCEU POR ACASO NA ILHA DO MARAJÓ O PRIMEIRO ECOMUSEU DO BRASIL.


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foto: Giovanni Gallo / arquivo do Museu do Marajó

"A obra começou quando Giovanni pretendeu despertar a consciência histórica e social daquele empobrecido povo. Os pescadores, acostumados em suas incursões diárias aos sítios arquelógicos, dando sequência à costumeira destruição do passado, reagiram de maneira insólita, levando como oferta ao irrequieto padre aquilo que diziam ser "cacos de índios". - Apresentação / Ima Célia Guimarães Vieira, Presidente do Museu do Marajó, Belém, 27/04/2005, página XV, in "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", Giovanni Gallo: Cachoeira do Arari, 3ª ed. O MUSEU DO MARAJÓ, 2005.





O Museu do Marajó é ecomuseu comunitário.

É atrevido afirmar uma coisa destas, comparando sem mais nem menos a supimpa invenção de Hugues de Varine evadindo-se do Louvre a fim de tomar ar fresco na civilizada e envelhecida França e a bárbara aventura por acaso de um padre italiano teimoso que 'impodiu' sob o pesado carma da grande ilha-mundo, chamado Giovanni Gallo (Turim, 1927 - Belém do Pará, 2003). O padre queria ser santo (autobiografia O homem que implodiu). Todavia, após sua morte ele foi solenemente declarado reincarnação de um grande cacique marajoara das antigas nações indígenas, por um visitante misterioso do Museu do Marajó que chegou e partiu de repente. Ninguém soube dizer quando ele chegou e saiu da cidade de Cachoeira do Arari. Quando um amigo me deu esta fantástica notícia eu não me abalei e até pensei dos sete caciques que, há 358 completos no próximo dia 27, celebraram as pazes com portugueses e inimigos tupinambás no rio dos Mapuá, segundo a missão pacificadora do padre Antônio Vieira.

Acho eu que por esta o Gallo velho não esperava: espírito caruana é fogo e com pajé não se brinca. "Graças a Deus eu tive sorte. Se o pajé tivesse dito que eu sou um safado, ninguém, nem o Papa com uma carta encíclica, teria força bastante para reabilitar-me." (Giovanni Gallo, Marajó, a ditadura da água, citado, página 62).  "O pajé no Marajó é uma realidade. Quem quiser negá-lo é cego ou mentiroso." (Idem, página 207).


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O marajoara que veio de longe para estremecer as raízes marajoaras do escritor da Criaturada grande, Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909 - Rio de Janeiro, 1979), no purgatório amazônico em busca de salvar a missão. De longe, do Rio de Janeiro onde vivia, o premiado escritor agnóstico viu logo a raridade daquele padre italiano:"... Que qualidade de sábio e repórter! O povo, os bichos, as águas sabem convier com ele. O padre enfrenta a realidade, não simplifica. Tem uma dose de compreensão da mais alta. Lendo-o fico com as minhas raízes marajoaras estremecendo.
     "Que o padre tire uma coleção de reportagens e faça um livro que será retrato da terra e da gente de Jenipapo." (Dalcídio Jurandir, Correspondência com Maria de Belém Menezes). 

Então, de fato, naqueles sete anos passados entre chuvas e esquecimentos a comunidade do Jenipapo foi propriamente dito o ecomuseu do lago Arari com o povo todo, os bichos e as águas a que o autor do primeiro romance sociológico brasileiro - Marajó - se referiu em carta sobre as reportagens de Giovanni Gallo. O livro acabou saindo com título de Marajó, a ditadura da água, edições "O Nosso Museu" Santa Cruz do Arari - Pará, 1980. O prefaciador da primeira edição Afonso Kautau, datando de Belém em agosto de 1980, refere-se à reunião na redação do jornal (provavelmente O Liberal) onde "Giovanni me fez ver a necessidade da publicação de um artigo seu, com a máxima urgência, com o seguinte argumento:
     - Esse texto, publicado no jornal, é o meu passaporte para as autoridades

Na mídia da capital o padre de Santa Cruz e Jenipapo encontrou não apenas veículo para chamar atenção sobre sua gente esquecida, mas também o amigo e irmão das horas difíceis, o operário gráfico Antônio Smith, bragantino de nascença. Podia-se dizer, respeitosamente, que Quixote encontrou Sancho nas oficinas do jornal, dali em diante Giovanni teria com quem dividir parte de seus problemas: sim, o Gallo estava arranjando encrenca e sem querer prestes a suceder Dalcídio no papel principal de zelador da Criaturada... 

Pena que ele não leu Dalcídio como seria preciso a fim de entender melhor a Criaturada grande, confessou isto em público no auditório da Fazendola (Museu do Marajó), em novembro de 2001, durante o Colóquio Dalcídio Jurandir: 60 anos de Chove nos campos de Cachoeira. Já era um tanto tarde, pois o romancista havia falecido em 1979 e o padre insubmisso viria a morrer menos de dois anos depois, em março de 2003, sem que os dois maiores mestres da gente marajoara tivessem se encontrado pessoalmente algum dia na vida. Imagina, então, se aqueles dois conversassem amiúde? 

O afrodescendente filho de dona Margarida Ramos se fez voz de uma gentinha à margem da história que ele transformou em Criaturada grande, aquele menino saiu de Cachoeira aos treze anos de idade para ir estudar na capital (ler Primeira Manhã, um dia na vida do autor e mais de trezentas páginas contando o desencanto de Alfredo com o ensino no ginásio e a vida na cidade grande). Dalcídio José Ramos Pereira (Dalcídio Jurandir) teve sua escola na redação dos jornais e na militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB) seguindo o Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes. Pouco a pouco, ele se tornaria intelectual orgânico, consagrando-se a sua criaturada grande das Ilhas, Baixo Amazonas e ilha do Marajó... 

Sem saber, tal qual aprendiz de feiticeiro; o padre estava sendo 'descatequizado' pela dita Criaturada do "índio sutil" (discurso de recepção proferido por Jorge Amado para outorga do Prêmio Machado de Assis de 1972 a Dalcídio Jurandir pelo conjunto da obra em onze romances). Antigos conflitos de classe e tensões sociais do momento afloram no pequeno município de Santa Cruz do Arari: Gallo era daltônico e um pouco ingênuo no jogo político...

Dalcidio começou a rascunhar o romance seminal Chove nos campos de Cachoeira na distante Gurupá, na função de secretário da prefeitura sob gestão do interventor Rainero Marajó, amigo e protetor que lhe doava livros da literatura clássica com que o filho da preta descendente de escravos e do branco da pequena burguesia do Marajó aprendeu a jogar o jogo. Saiu da prefeitura e foi alfabetizar os filhos de um dono de seringal no rio Baquiá (certamente, ele gostaria de saber que hoje aquelas paragens são terras públicas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS Itatupã-Baquiá), administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio.  

O jovem escritor marajoara iniciou em Gurupá sua carreira literária e o derradeiro romance, Ribanceira, escrito no Rio de Janeiro viria ser o fim da odisseia entre as ruínas idílicas da belle époque da Borracha, no dizer de Pedro Maligo. A fiel Penélope figura a Criaturada a esperar o herói na ilha de Ítaca-Marajó. Naquele tempo é claro que Dalcídio José não era ainda Dalcídio Jurandir, e Giovanni Gallo, filho de operário italiano sob o fascismo de Benito Mussolini; sequer havia nascido. A herança dalcidiana é pesada, mesmo para padre jesuíta aculturado no Marajó velho de guerra... relembrando o padre grande dos índios Antônio Vieira, há mais de trezentos anos. 

Com o Estado Novo (fascista) de Getúlio Vargas a outrora província do Pará caçou e meteu no xadrez conhecidos comunistas da capital, entre estes o filho do capitão Alfredo Nascimento Pereira, rábula e devoto de Santa Rita de Cassia na pacata vila de Ponta de Pedras. Um escândalo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, onde o tio Manoel Ramos, irmão de sua mãe; era sacristão e o viu nascer numa modesta barraca coberta de palhas de sua propriedade no bairro do Campinho... Dalcídio saiu do Presídio São José lugar mal afamado onde se castigavam ladrões de gado e outros marginais ou criminosos, reassumiu cargo de inspetor da educação pública e foi servir no município de Soure, morou de fato na vila de Salvaterra distrito daquele... Pobrezinha, Salvaterra em 1929 era uma vila de pescadores: foi aí que Dalcídio, finalmente, escreveu o Chove nos campos de Cachoeira, dizendo ele que não sobrou nada do calhamaço iniciado em Gurupá... Guiomarina sua mulher vergada sobre a máquina datilográfica que ele cometeu a loucura de comprar a prestação, fiado nos magros ordenados mensais quase sempre atrasados. Ficou devendo na taberna do amigo em Salvaterra e dormiu no chão quando a velha rede puída pelo uso se rompeu. Em Salvaterra salvou o primeiro romance da mocidade. Escreveu também o segundo, Marinatambalo, que foi publicado com título de Marajó por sugestão do editor. Vicente Salles, no artigo Chão de Dalcídio enxergou neste o primeiro romance sociológico brasileiro e viu ainda na obra o paradigma do romance medieval ibérico Dona Silvana, com o tema do incesto sugerido no drama da desejada Orminda e os remorsos de Missunga, herdeiro do fazendeiro coronel Coutinho.

Toda vez que penso como poderia ser um ecomuseu com a cara marajoara, eu me lembro da música A Casa, de Vinícius de Moraes: "Era uma casa muito engraçada / Não tinha teto, não tinha nada"... Vou desenhando no ar a imaginária casa de Alfredo, alter-ego do escritor Dalcídio Jurandir, tirada das páginas do romance "Chove nos campos de Cachoeira": o famoso chalé na beira do rio, batido de vento e chuva; que na realidade na irônica baixada de Petrópolis foi residência de meu avô paterno Alfredo Nascimento Pereira, secretário da intendência e editor do jornalzinho cachoeirense O Arary, impresso manualmente na própria casa, com quintal aos fundos onde a família criava vacas e ovelhas, dando para o largo campo e que na cheia do rio flutuava sobre as águas do dilúvio que nem a arca do velho Noé bíblico.

Então, eu me recordo da curiosa invenção que o padre Giovanni Gallo fez sem nada entender de ecomuseu ou de qualquer outra coisa digna de se chamar museu, em 1973, em Santa Cruz do Arari - na ilha do Marajó, à margem do grande lago onde a ancestral Cultura Marajoara nasceu-, ao mesmo tempo que na gloriosa França era criado, na comunidade de Creusot Montceau; o primeiro ecomuseu do mundo. Com certeza, uma belíssima revolução da memória coletiva dos lugares da Terra!

Quarenta anos depois, Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo já morreram e a revolucionária criação de Hugues de Varine e outros inovadores alastrou-se pelos quatro cantos do mundo: mas o Brasil ainda não sabe de verdade da história do museu do Gallo, nem o povo marajoara descobriu as potencialidades de um museu comunitário ao ar livre onde o acervo são as pessoas que sabem a história do lugar, as vilas, rios, florestas, mitos, o folclore, as danças, a cultura popular, artesanato e a memória do povo passada de geração a geração.

Então, quando a gente aprende a história social da gente marajoara e o motivo pelo qual, no exílio do fim do mundo, o jesuíta italiano se decidiu pela loucura daquilo que ele chamou O Nosso Museu em Santa Cruz do Arari, centros da ilha do Marajó (ler Marajó, a ditadura da água, de Giovanni Gallo) arrostando a incompreensão do bispo diocesano e malquerença de políticos e poderosos da região. Ao mesmo tempo que se tem uma pequena noção do que seria razoavelmente um "museu" naqueles ermos; fica-se deveras impressionado que, até hoje, os museólogos em geral não se tenham dado conta de que por necessidade e acaso das ruínas "invisíveis" da mais antiga civilização amazônica haja surgido, por necessidade e acaso, o primeiro ecomuseu brasileiro. 

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