O tempo da vela de jupati: em busca da ancestralidade da arte naval.

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Joaquim José Codina. Tab. 1a. Original Aquarela. Barcelos, 1787, in Viagem Filosófica. Iconografia. Antropologia e Geografia, Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1971 número 36, vol. 1 - CAIANA  

Revista 
de Historia del Arte y Cultura Visual 
del Centro Argentino 
de Investigadores de Arte




"Nesta arqueologia poética, a carpintaria naval transformadora da primitiva ubá em igarité e a mutação colonial do apagamento de aldeias para dar lugar a vilas portuguesas como esta Bragança mestiçada ao sol do equador na “zona tórrida” das Antípodas, sem jamais perder o norte da utopia brasílica: pensamento descolonial, expressado por José Ubiratan dentre outros amazônidas insubmissos aos ditames de Pombal e sucessores, nos mostra que lugar de índio na Amazônia é na história. Por aí, a par do negro acorrentado à mesma história e de pobres casais povoadores do ultramar, somos todos descendentes dessa gente pelo empoderamento permanente do território do Norte brasileiro." -- José Varella Pereira, "Tributo a Ubiratan Rosário" 



MINHA AVÓ SOPHIA

Na verdade tia, vovó Sophia adotou o irmão recém nascido que veio a ser meu pai caboco, batizado Rodolpho Antônio e o gêmeo Manuel natimorto sepultado como anjo no cemitério da vila de Ponta de Pedras; órfãos de mãe durante o parto de minha verdadeira avó paterna: a índia Antônia Silva, nativa da aldeia da Mangabeira, em Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. Naquele tempo, quando alguém precisava viajar para fora da ilha fazia ladainha e promessa à Nossa Senhora do Tempo: despediam-se dos parentes de casa em casa, pois podiam não retornar devido os perigos das águas e terras a percorrer na jornada.

Sophia era filha mais velha do casal, para criar o irmão caçula ela e tia Lodica ficaram solteironas. Às vezes, aquelas duas pareciam ser a mesma alma em duas pessoas diferentes. Lembro minha avozinha baixinha muito sisuda, por necessidade e acaso ela ficou sendo chefe da família e herdeira principal do chalé de seu pai viúvo capitão Alfredo Nascimento Pereira, um terrenão e tanto no centro da vila, todo plantado de árvores frutíferas e ervas medicinais de variadas espécies e utilidades. No fundo do quintal havia um covão que, durante as chuvas, se transformava em lagoa do meu pavor noturno com a cantoria dos sapos e ao amanhecer, levado pelas mãos carinhosas de vovó, terminava sendo encantamento do menino ao ver centenas de jias e rãs de todas cores e tamanhos. 

Vovó Sophia era a memória viva da família, filha de índia tapuia casada no católico com o professor primário da vila, meu avô. Este um, rábula afamado, provável descendente de cristãos-novos dentre casais dos Açores atraídos ao Maranhão e Grão-Pará, em priscas eras, com falsas promessas do paraíso na terra dos Tapuias (Tapuya tetama) conquistada pela brava nação Tupinambá sob a coroa de Portugal durante a União Ibérica (1580-1640). Vovó não sabia nada destas histórias estúrdias, mas foi a partir de suas lembranças que eu me fiz ao mar da aventura, levado pela curiosa vela de jupati e o navio encantado; a fim de saber quem inventou o mundo...

Segundo ela, sua mãe contava que a avó da avó lá dela quando se referia a tempo de grande antiguidade, usava sempre a expressão que rezava: "no tempo da vela de jupati"... A vela de jupati, pois, parecia ser marco temporal entre antiguidade e modernidade. Divisão técnica entre canoas igarités, caravelas e navio a vapor. Improviso da sobrevivência ribeirinha e a arte naval das grandes navegações. E lá estava a palma utilíssima das viagens, na beira do rio de minha infância bem debaixo do meu nariz, o precioso Jupati (Raphia taedigera), palmeira de várzea formando abundantes touceiras nas margens sob influência da maré. Como, então, os índios faziam vela de canoa com jupati? Eu não conseguia entender.

Ao ouvir minha avó repetir, tantas vezes, aquela estória passada ao longo de gerações, eu embarcava na canoa da imaginação levado a esmo pela vela de jupati. E não é que a Raphia taedigera viceja em toda faixa tropical do mundo? O jupati tem mil e uma utilidades para populações tradicionais ribeirinhas, desde a construção de paredes divisórias de rústicas barracas cobertas de palha de ubuçu (Manicaria saccifera) ou inajá (Attalea maripa), esteios de tucumanzeiro (Astrocarium vulgare) ou siriúba (Avicennia schaueriana), com assoalho feito de juçaras de açaizeiro (Euterpe oleracea) ou tábuas de paxiúba (Socratea exorrhiza); ao fabrico de paneiros, pari para pesca de tapagem de igarapé; cacuri (curral de peixe), matapi para pegar camarão... Ouvindo aquilo eu ficava imaginando como poderia ser uma vela de jupati para canoa. 


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Jupatizal na beira do rio: paisagem amazônica típica; palmeira encontrada em toda faixa tropical da América, África e Ásia.


Era assim, portanto, na história oral desta gente a vela de jupati uma preteridade enorme. Também puderá! Enquanto a invenção histórica da nossa Amazônia tem só 400 anos e a América grande chegou há pouco aos 500; nas terras baixas da velha Tapuya tetama cinco mil anos contemplam nossa geral ignorância das coisas nativas deste país. Dos quais, mil e seiscentos anos da Cultura Marajoara, dizem os arqueólogos, primeira cultura complexa das regiões amazônicas nascida diretamente do modo de pesca primitiva de gapuia! E se a gente se lembrar que a palafita é evolução natural do tapiri do paleo-índio aruaque sobre as ramas do mangal, que se transformou por necessidade e acaso em cabana do arteiro caboco ribeirinho?

A velha aldeia da Mangabeira sito à meia légua de distância acima da aldeia nativa dos arredios Guaianá agora extintos, na margem ocidental da baía do Marajó, há 330 anos foi criada pelos padres jesuítas com índios mansos trazidos de canoa à vela da aldeia Samaúma (Barcarena) para dar início à lavoura na primeira sesmaria que a missão da Companhia de Jesus teve na ilha do Marajó. Todo povoamento indígena das ilhas do Pará e Amazonas está ligado umbilicalmente às ilhas do mar do Caribe e às antigas navegações a remo e velas de jupati. 

Dizia a avó Sophia que a avó lá dela, em certa ocasião, viajou com parentes até a Cidade do Pará atravessando a baía em curicaca, isto é, canoa de pesca. Naquele tempo, na maré seca a gente saltava da canoa ao porto passando por cima de estiva de troncos de miritizeiro (Mauritia flexuosa). As ilhas do Marajó faziam parte da área cultural guianense, envolvendo a grande ilha das Guianas, que ia do Amazonas até a ilha de Trinidad atravessando do delta do Orinoco. A multidão aruaca desenhou na própria terra virgem o Circum Caribe ao sair do oco do mundo, no Rio Negro, em canuá (canoa, palavra Taino através do espanhol) a remo. Esta piroga, batizada com as águas do mar salgado, criou velas como as asas da borboleta-amarela (Phoebis philea philea) que os índios do Pará chamavam marapanim, e, às vezes, o vento leva para o largo da beira mar.

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vela do Mucuripe

Neste vasto mundo de águas grandes, dizia o padre Antonio Vieira que os homens andavam mais com braços e remos que com as próprias pernas: 

"... navegando-se sempre por entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças de água, que a natureza deixou descobertas e desempedidas do arvoredo. E posto que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se este destroço e roubo, que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele vastíssimo Arquipélago do rio chamado Orelhana e agora das Amazonas..."  (História do Futuro, Padre Antonio Vieira, Lisboa 1718, Belém: SECULT, 1998, p. 301)

A supimpa invenção da vela pelos índios parece ter sido evolução da ubá ou canuá nativa, onde ocorreu corrente e ventos favoráveis com a sugestão de improvisar com ramagens de mangue o descanso dos braços e remos... Daí para a vela do jupati foi só um aperfeiçoamento. Depois, provavelmente, com fio de algodão e tear já por imitação das velas das igaras chegamos nós aos novos tempos das curicacas, vigilengas e igarités. Todavia, eu não conseguia entender como se faz a tal vela de jupati até, muitos anos depois, folhear um exemplar da Viagem Philosophica, do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, e ver o desenho duma antiga igarité com a dita cuja (ilustração supra), pela pena fidedigna do desenhador Codina. 


Por outra parte de minha história de família, o casarão de meus avós maternos mais parecia um museu da navegação. Ali respirava-se ares de velha marinhagem. Pelo chão em desordem, âncoras, ferragens, moitões, cabos, enxárcias, o cheiro do zarcão dos calafetos espalhado na varanda há anos e anos desde a quebra da Borracha. E, na beira do rio, num estaleiro arruinado junto ao trapiche cambaleante sob o peso do tempo e das marés, jazia o sonho do imigrante de Pontevedra na construção falhada do barco veleiro "San Thiago".  

Histórias e fantasmas ultramarinos seguiam imigrantes na ilha do Marajó. Meus avós galegos moraram no rio Curral Panema, a uma maré de distância entre os rios Arari e Marajó-Açu. Vizinhos a eles uma comunidade afrodescendente e outra notavelmente açoriana completavam o ambiente cujos meios de comunicação eram canoas a remo e igarités à vela: a igarité se apresenta como evolução da canoa montaria, que no passado foi ubá e nós chamamos "casco", feito de um tronco de árvore escavado. Com duas falcas de lado a lado, o casco passa a ser montaria, por imitação talvez do cavalo ou boi de sela nos campos. 

Com certeza, a presença de brancos e negros naquelas paragens amazônicas precisou da navegação de navios veleiros de alto mar. A construção naval primitiva evoluiu lentamente. As primeiras evidências arqueológicas do uso de barcos remontam de há 50 a 60.000 anos, na Nova Guiné. No Antigo Egito já conheciam técnicas de uso de tábuas de madeira para formar o casco das embarcações. No velho Portugal, no século XV, mudavam o termo medieval de "Tercenas" para Ribeira das Naus, abreviado para Ribeira, onde faziam estaleiros... Tão importantes estas beiras de Belém Ocidental, que el-rei Dom Manuel, para estar mais perto do sonho do comércio das Índias, mandou fazer seu palácio às ilhargas, o Paço da Ribeira. E em Belém do Grão-Pará também, não distante do Palácio do Governo, houve a Casa das Canoas que hoje é um dos mais importantes patrimônios invisíveis da Amazônia. 


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