ROTEIRO DE PEDRO TEIXEIRA NO CAMINHO DO MARANHÃO: ensaio geral para a grande entrada ao Alto Amazonas e Quito (Equador).


 Fundação de Belém do Pará, 12 de Janeiro de 1616 (ilustração de Jacy Correa Neto). A 7 de Março Pedro Teixeira segue por terra levando esta notícia a Jerônimo Albuquerque Maranhão, em São Luís.




estátua de Pedro Teixeira em Cantanhede, Portugal.
(Cantanhede, 1570 ou 1587 -- Belém do Pará, 4 de Julho de 1641).
réplica à entrada do porto de Belém do Pará.


DEDICATÓRIA
a José Ubiratan da Silva Rosário (1938-2009), historiado bragantino.

Este comentário recorda a jornada de Pedro Teixeira ao Maranhão levando notícia da fundação de Feliz Lusitânia e pretende chamar atenção dos leitores sobre o desenvolvimento da canoagem no Pará com suas interessantes excursões, onde se mesclam esporte, lazer, educação ambiental e conhecimento histórico-geográfico de rios e lugares visitados. A equipe MARENTEZA CANOAGEM, após recentemente excursionar ao Alto Guamá com sua flotilha de caiaques, se prepara para descer as cabeceiras do rio Caeté até Bragança, a Princesa do Salgado. 






Varadouro por terra na floresta, estimado em cerca de cinco léguas (mais ou menos, 33 km) entre Ourém e Arraial do Caeté, interliga os rios Guamá e Caeté fazendo parte do velho Caminho do Maranhão, que vinha de São Luís em direção a Belém do Pará. Também chamado, na crônica colonial, "caminho dos Tupinambás", esta ligação pioneira entre as duas regiões foi, basicamente, guia de construções viárias posteriores como, por exemplo, a estrada de ferro Belém-Bragança e por fim a rodovia Pará-Maranhão. A ver como a apropriação do espaço natural pelo homem se transforma em história através do trabalho e da memória.

Ótima oportunidade de exercício da "universidade da maré": quem quer aprende, quem pode ensina e quem não se importa vai embora sem olhar pra trás... Já tivemos oportunidade neste blogue ribeirinho de lembrar a importância do "rio de Guamá" -- isto é, rio do cacique dos Aruã e Mexiana nas ilhas do Marajó em suas costumeiras incursões guerreiras à terra-firme -- para história do Pará velho de guerra. 

Vale frisar que Nheengaíbas (povos das ilhas de tronco cultural e linguístico Aruak, tidos e havidos dentre tapuias em geral) e Tupinambás eram inimigos hereditários entre si: estes últimos chegaram através do Nordeste, depois de longa caminhada pelo Peabiru, dos contrafortes dos Andes ao litoral de Piratininga, em busca da famosa Yvy marãey (terra sem mal). "Roteiros... roteiros... roteiros..." (Oswald de Andrade, "Manifesto Antropofágico", 1928).

O rio de Guamá ligado umbilicalmente ao Salgado conecta o extremo Norte ao Nordeste brasileiro desde tempos remotos e também nos leva ao Caribe, através das Guianas, por uma linha histórica de muita antiguidade a qual se acha inserida a milenar Cultura Marajoara. Pela qual se costuram à Amazônia as memórias de Hatuey e Guamá em luta contra os cariuás, conquistadores espanhóis desde a primeira hora (ver http://academiaveropeso.blogspot.com.br/2014/03/porto-caribe-escala-para-o-futuro-das.html). 

Evidentemente, os Tupinambás em aliança com franceses e depois portugueses contra os ditos "falantes da língua ruim" (nheengaíbas) e holandeses e ingleses acamaradados a estes índios "malvados" [marãyu / marayo, Marajó], franquearam aos seus "cunhados" de armas o Caminho do Maranhão e outras passagens secretas de sua saga na Tapuya tetama (terra Tapuia). Na margem esquerda do Pará, inversamente, os belicosos insulanos davam passagem e guarida a traficantes holandeses e ingleses vindos das Antilhas e Guianas praticar comércio de escambo, trocando "gados do rio" e "drogas do sertão" por miçangas e armas eventualmente. 

Cumpre notar que os antigos marajoaras eram guerrilheiros inatos, temidos sobretudo pelo poder mortífero de seus dardos envenenados de curare (segredo de velhas matriarcas), atirados de emboscada por sopro com certeiras zarabatanas enfeitiçadas sob inspiração totêmica da Jararaca (Bothropos atrox). Então já se sabe que aqui era fronteira de guerra -- antes da chegada dos brancos --, por acaso coincidente com a linha de partição do mundo achado ou por achar (o "testamento de Adão", tratado de Tordesilhas), entre os reinos de Castela e de Portugal.

Pouca gente tem semelhante informação e quem sabe raramente tem chance de compartilhar conhecimento. Todavia, muita gente no caminho anda nele sem saber por onde vai ou como fazer as devidas ligações de espaço e tempo. Mas, em tempo de globalização, fronteiras se fazem e desfazem pela cúpula do mundo em infovias mil e ao rés do chão lugares se integram por caminhos, pontes e estradas.

De modo que aqui na popular academia do peixefrito se espera estimular, sobretudo entre estudantes e pesquisadores de geografia, história e turismo; trabalhos que possam culminar em reconhecimento de titulo de patrimônio natural de relevante interesse histórico ao "rio de Guamá": caminho de água de fundamental importância a roteiros integrados da Paisagem Cultural do Ver O Peso ao Salgado e Reentrâncias Maranhenses. Uma histórica região costeira dotada de impressionante sucessão de rias e baías da Amazônia Atlântica, de alto interesse para gerenciamento costeiro e conservação do bioma oceânico com inclusão socioambiental das comunidades tradicionais.

Mestre Sergio Buarque de Holanda em "Caminhos e fronteiras" ensina como a ocupação territorial procede da lenta evolução biogeográfica dos lugares fazendo a história dos processos e procedimentos cotidianos desde os povos nômades através da caça e da coleta, da lavoura, viagem e exploração de novos espaços abertos. E antes da antropização, o carreiro incipiante da caça em busca de comedia e bebedouro, guiou o índio na abertura de trilhas que ao longo do tempo se transformaram em caminhos. Com isto, as vastas transformações ocorridas desde tempos pré-colombianos no país até o século XIX adquirem agora contorno de coisas vividas.

Como nos diz Saramago, na "Viagem a Portugal", o viajante aprecia na paisagem aquilo que ele vê e também o que imagina. Como seria, afinal de contas, este já esquecido caminho do Maranhão falado pelos antigos e tão importante para compreender a conquista territorial do Pará e invenção da Amazônia? Quem o abriu e o trilhou pela primeira vez? Quando? E por que? ... 

Segundo o historiador Capistrano de Abreu, teve início a viagem ao Maranhão com a notícia de fundação da Feliz Lusitânia, no dia 7 de março de 1616. Os alferes Pedro Teixeira e Antônio da Costa partiram por terra acompanhados de dois soldados e trinta índios. Podemos deduzir que esta missão histórica excedia a uma simples mensagem de fundação de Belém, pois neste caso seria mais prático despachar uma das três embarcações vindas do Maranhão de volta para avisar a respeito dos acontecimentos. 

Sabe-se que saindo por terra tal caminho, a partir do forte do Presépio à margem da baía do Guajará, não subia imediatamente o rio. Primeiro entraria mata adentro, provavelmente em canoa a remo, devido aos alagadiços e igapós que separavam a Cidade que ainda não existia e a Campina através do Igarapé do Piry (do qual resta hoje apenas a doca do Ver O Peso e o aterro que se tornou avenidas Portugal e 16 de Novembro, antes pavimentadas de paralelepídos de pedra extraída de pedreira do Guamá e depois asfaltas). 

Na confluência do Piry com o igarapé que ali havia e também foi aterrado para ser estrada das Mungubas (hoje Beco do Cano e canal Tamandaré), as águas se bifurcavam no chamado igarapé Juçara e o Lago do Piry. Desta maneira, o centro histórico na Cidade Velha era uma ilha perfeita: daí nasceria, na segunda metade do século XVIII, a supimpa ideia do major engenheiro alemão Gaspar João Geraldo Gronfelts de fazer de Belém uma Veneza amazônica. O Lago do Piry terminava num teso de terra que veio a dar lugar à construção da igreja da Santíssima Trindade. 

Por aí poderia ter início a caminhada de Pedro Teixeira por terra, naquilo que seria depois estrada do Murutucu e também estrada de Nazaré rumo ao Una (hoje Parque Estadual do Utinga) para, então, cair nas águas do Guamá e ir subindo a remo até às alturas do lugar, mais tarde, de Ourém, e "varar" por terra para cabeceira do rio Caeté a fim de pegar canoa e sair ao mar costeando até o Maranhão. Devemos ter em mente que em seus primórdios o caminho era caminho dos Tupinambás, que o percorriam desde muita antiguidade antes dos brancos vir à terra dos Tapuias. 

Quer dizer, terreno de fronteira e luta de conquista: o segredo da aliança dos Tupinambás com os franceses e depois com os portugueses, devido à cobiça das armas e igaras (caravelas) para vencer a guerra contra invencíveis e malvados Nheengaíbas... Lembremo-nos que, já em torno de 1723, decorridos mais de cem anos desta viagem um certo cacique bandoleiro aruã de nome "Guayamã" ainda assaltava aldeias de índios "mansos" (cativos) dos portugueses às ilhargas de Belém. Chegava o guerreiro aruã com seus camaradas ao Aurá, por onde saltava para atravessar por terra rumo ao Furo das Marinhas e capturar índios Murubira, levando-os para traficar armas e munição. Desta velha guerra o sargento-mor da Vila da Vigia, Francisco de Mello Palheta, saiu ao encalço de Guayamã, Guaiamar ou Guamá e voltou com o café que todo mundo sabe como veio parar aqui e foi fazer riqueza em São Paulo. Donde retornou para fazer contrabando com as Guianas pelos anos de 1960.

Portanto, a jornada de Pedro Teixeira naquele tempo carecia caminhar com cautela e as diversas historiografias baseadas nela devem ser agora consumidas com moderação. Assim, precisamos compreender que os mensageiros não saíram pelo mato bruto adentro, direto ao Maranhão, abrindo trilha a golpes de facão... Pelo contrário, já se encontravam provavelmente antigos sendeiros e paragens ao longo do caminho, alternando trechos de água e de terra. Em certos pontos habitados por parentes próximos destes índios andejos viajantes amigos e "cunhados" deveriam repousar, contar com canoas, remos e comida para continuar a viagem conforme costume de ajuda mútua entre povos tradicionais.

Convém o leitor acompanhar o alferes Pedro Teixeira e seus companheiros naquela viagem inaugural com a notícia de fundação de Belém do Pará, pela imaginação, aproveitando na retrospectiva viagem para ver como o espaço da antiga terra dos Tapuias, que é o país que se chama Pará - ele mesmo -, caminhou ao longo do tempo. Aquela boca de mato na cabeceira do Juçara ou Lago do Piry, por exemplo, mais de cem anos depois ainda era um matagal, porém ali teria lugar a construção da igreja da Santíssima Trindade: marco de contato, desta vez, com as ilhas dos Açores... Portanto, Bragança de ultramar, à beira do Caminho do Maranhão plantada com seus índios catecúmenos e casais açorianos.

Cem anos depois, Belém ainda era uma burgada meio indígena onde colonos e missionários viviam às turras pelo controle dos "negros da terra" (índios escravizados). E o iluminismo português produziu uma revolução lá e cá. Para o bem e o mal... O Marquês de Pombal no uso do costumeiro nepotismo, mandou seu irmão Mendonça Furtado ao estado do Grão-Pará e Maranhão, ao Amazonas um sobrinho doido para retornar à metrópole. O conflito com os Jesuítas se alastrava e chegou ao Vaticano... Em plena ofensiva o capitão-general e governador solicitou ao reino envio de casais e homens solteiros para povoar a Vila de Sousa do Caeté,  em seguida denominada vila de Bragança, em dezembro de 1753. 

Mas a migração só começou em 1755 e aumentou em 1759, trazendo gente de Angra do Heroísmo, nos Açores. Dentre estes chegou a Belém José Antônio Abranches com 16 anos de idade, acompanhado de três irmãos menores, órfãos de pai e mãe. José Antônio chegou no mesmo ano em que daqui partia o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que lhe concedera a mercê de ficar em Belém e trabalhar na lavoura. Os irmãos Abranches como os açorianos em geral eram lavradores e devotos do Espírito Santo, tendo eles ganho terras situadas além e aquém do Lago do Piry onde fizeram promessa de construir uma igreja à Santíssima Trindade caso ficassem ricos com a horta e pomar que fizeram naquela sorte de terra. Dito e feito. Podemos ver que poderia ter sido no porto depois da rocinha dos Abranches, de acordo com que foi dito antes, que o alferes Pedro Teixeira pôs os pés em terra firme no início da jornada ao Maranhão. 

Não levavam pressa, mas necessidade de conhecer a floresta ("caaeté", mata densa, a "verdadeira floresta"), atravessando rios, sempre seguindo as trilhas dos Tupinambás. Chegaram em São Luís em abril, depois de um mês de viagem. Após entregarem a missiva do capitão-mor Francisco Roso Caldeira Castelo Branco ao governador Jerônimo Albuquerque Maranhão, regressaram desta vez por via marítima trazendo a bordo o capitão Custódio Valente e mais trinta arcabuzeiros, grande número de índios de arco e flecha, mantimentos, fardas e artigos destinados à troca entre índios e colonos. Ficava assim demarcado o território na Amazônia portuguesa entre Belém e São Luís, mais uma possessão portuguesa na região.

pondo o pé na planície amazônica

A primeira missão de Pedro Teixeira no Grão-Pará foi ensaio para a formidável entrada até Quito (Equador), que levaria dois anos (1637-1639). A 25 de Julho de 1637 (dia de Santiago) o idoso capitão partiu do Maranhão onde foi receber instruções secretas. Eram 45 canoas, setenta soldados e mil e duzentos flecheiros e remadores indígenas, inclusive mulheres e crianças para subir o rio Amazonas. Buscava confirmar a comunicação entre os oceanos Atlântico e Pacífico terra adentro, passando pelos Andes. O espanhol Francisco de Orellana, que veio a falecer segundo consta, nas águas da pororoca do rio Capim, tributário do Guamá (1544), havia feito a primeira viagem do "rio das amazonas" (1542) em sentido inverso.  Até aí levaram antecedentes de vida de Jerônimo de Albuquerque, "Adão pernambucano" e patriarca do Maranhão e Grão-Pará. Em cuja descendência se inscrevem Jerônimo Albuquerque Maranhão, Paulo Maranhão, famoso jornalista panfletário da "Folha do Norte"; o romancista Haroldo Maranhão e outros mais ilustres descendentes do "Adão pernambucano". Sem nos esquecer do intendente Antônio Lemos, que não era parente desse "Adão", mas natural do Maranhão e colocou Belém na berlinda da "belle époque".

Se as silentes águas do Guamá falassem, elas diriam fortes coisas à cidade desmemoriada que cresceu de costas para o rio. Porém como elas não falam, o visitante da cidade universitária que às suas margens se encontra ou o viajante que segue seu curso poderia suscitar importantes questões, tais quais as que aqui vão misturadas a emendar águas de rio e mar. Ou seja, confundindo as Amazônias verde e azul. 

Misturar o Mar-Oceano português com a Pátria grande latino-americana. E não se pode esquecer que toda esta velha história de procura ao extremo ocidente do país do Brazyl, ilhas Afortunas e Antilhas é comparável às cismas do rei mandinga Abubakari a querer saber o que havia na outra margem do grande "rio Salgado", como o Atlântico se lhe parecia. 

O Rei Sabá a beira mar em Pirabas quer nos dizer alguma coisa preciosa pela boca de pajés e rezadores. Por acaso, a partição do mundo entre Espanha e Portugal - deus escrevendo certo por linhas tortas? - teve como ponto de partida o golfo da Guiné com as ilhas de Cabo Verde a servir de base. E que dizer da corrente da contracosta africana que forma a corrente equatorial marítima, para vir se dividir entre as correntes brasileira e guianense? Tudo isto há de vir ao pensamento de um visitante da cidade universitária do Guamá. Ou a um canoeiro sem pressa que sobe lentamente o dito rio até seu alto curso e varadouro para costa do Salgado.

Pedro Teixeira levou ao Maranhão a primeira notícia do Presépio na terra dos Tapuias, logo chamada Grão-Pará e assim o capitão-geral da Amazônia lusitana, Jerônimo de Albuquerque Maranhão foi informado do bom sucesso da missão. Porém, àquelas horas uns e outros não poderiam saber o que sabemos agora e também não saberiam o que se perdeu para sempre. Como, por certo nós não sabemos ainda muita coisa que há de se revelar depois. 

Mas, eu não darei mais nenhuma remada adiante sem antes comentar com meus camaradas canoístas que este caudilho maranhense, a quem ia endereçada a boa nova; era filho de uma índia tabajara, chamada Tabira; amancebada com o português Jerônimo Albuquerque, apelidado o "Adão Pernambucano". Patriarca luso-nordestino da nossa amazonidade. Não se pode botar tudo no mesmo paneiro e jogar fora ao lixo colonialista. 

Há muitos, não apenas lusos; que vieram enterrar seus ossos neste chão depois de dar seu sangue em tributo à mestiçagem de corpos e mentes do orgulhoso país do futuro. Uma coisa é querer daqui o ouro e outra muito diferente e vir buscar riquezas terminando a história por se naturalizar ao país e servir aos mesmos conquistados e escravizados dos quais pensava expropriar, sem mais nem menos. Toda história tem consequência... Somente agora estamos a ver com quantos paus se faz uma canoa. E perguntar com Fernando Pessoa: "valeu a pena?". Tudo vale a pena se a alma não é pequena...

O dito "Adão" nasceu em Lisboa no ano de 1510 e veio entregar o corpo à terra fria em Nova Lusitânia (Olinda, Pernambuco) no dia de natal de 1584. Era ele cunhado do primeiro donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho. Começa aí a poderosa mistura de nepotismo português e cunhadismo indígena, donde a tradicional família nordestina é nossa matriz e modelo. Recém chegado ao Nordeste, o cunhado do donatário meteu-se em contendas contra os Tabajaras e levou a pior, com uma flechada que lhe tirou um olho, ferido e abatido acabou ele sendo prisioneiro dos índios que em sua soberba juvenil foi acossar. Então, naquela mísera condição humana entre bárbaros dos trópicos, Jerônimo estava predestinado, segundo o costume, para os índios o comerem depois de luta ritual no terreiro à vista de muitos convidados ao festim antropofágico. 

Já sabemos que os nossos índios não comiam ninguém que fosse covarde. Isto pelo bom motivo que medo pega mais que andaço de sarampo e catapora, fazendo gente "panema" que é a maior desgraça das tribos do sertão. Mas o português em apreço era valente, pois se não fosse os bravos tabajaras já o teriam enxotado para longe. De modo que ele pudesse fugir ou morrer sozinho deixando o corpo ao relento para dar de comer aos bichos do mato e aos vermes da terra.

Na situação em que o nobre Jerônimo de Albuquerque se achava, era costume do dono do cativo dar-lhe completa hospitalidade, inclusive concedendo-lhe mulher para o tratar e alimentar do bom e do melhor até o prisioneiro estar em condição de enfrentar uma morte gloriosa lutando no terreiro com seu captor. Do contrário, seria um desastre oferecer à mãe Jacy (lua) uma vítima estropiada e tremendo de medo. A morte de um guerreiro inimigo atraia para taba além de fama, vigor e boa sorte a todos que comessem da carne e bebessem o sangue do herói. Mas, o matador não comia nem bebia nada, entretanto era o único com direito exclusivo de tomar o nome e da fama do guerreiro morto para si. 

Havia orgulhosos guerreiros tupis com dezenas de nomes tomados a seus inimigos mortos em combate justo. Consta que para iniciação dos guerreiros, a captura e morte de um jaguar no terreiro diante de todos era excelente prova de coragem. Mas, ninguém comia carne de onça nem bebia de seu sangue sob risco de se tornar animal. Modernos antropólogos ensinam que o nome "Tabajara" teve conotação ambígua entre diversas etnias, podendo ser entendido como "cunhado" (amigo) ou "inimigo", não como nome de uma etnia específica. Pode ser traduzido vagamente como o "dono da taba" confundindo-se, em diversos momentos, grupos de Tabajaras propriamente ditos, Potiguaras e Caetés todos da grande nação Tupinambá espalhada desde o Nordeste até o Amazonas.

Seja como for, ficou para a história o fato de que Jerônimo foi salvo da antropofagia pela paixão que ele despertou à filha do cacique Arco Verde ("uirá ubi"), a jovem Tindarena ou Tabira. Não se pode excluir a hipótese de que, levando a hospitalidade dos Tabajaras às últimas consequências; Jerônimo "conheceu" Tabira como diz a Bíblia. E Tabira amou Jerônimo por toda vida. Com o surpreendente enlace da índia Tabira e o português Jerônimo, segundo o direito natural do cunhadismo, a paz foi selada entre tabajaras e portugueses. Tabira foi batizada católica como Maria do Espírito Santo Arcoverde, homenagem ao dia de Pentecostes e deu ao bem amado oito filhos mamelucos, dentre estes, Jerônimo de Albuquerque Maranhão, primeiro governador do estado do Maranhão e Grão-Pará, fundador duma das principais famílias da região.

O Adão caolho teve mais cinco filhos além dos oito de Tabira, com mulheres brancas e índias. Sua fama de garanhão chegou à corte onde, em 1562, a rainha de Portugal Dona Catarina de Áustria o mandou intimar a se casar com Felipa de Mello, filha de Dom Cristóvão de Mello. Pois, segundo a rainha, sendo ele fidalgo sobrinho de Dom Afonso de Albuquerque, descendente de reis, não deveria dar mau exemplo seguindo a "lei de Moisés" que teve "trezentas concubinas". Com o casamento com Felipa, Jerônimo teve mais onze filhos, fazendo 24 em total. De suas terras perto de Olinda surgiu o primeiro engenho de açúcar de Pernambuco, depois chamado Forno da Cal.

Esta nossa paragem na viagem serve para situar a linhagem do destinatário da carta de fundação de Belém do Grão-Pará. Por ela fica-se sabendo que o Presépio foi construído num outeiro junto à aldeia indígena de nome Mairi. Os tupis chamavam aos franceses de "mair" (louro) e assim esta aldeia às ilhargas do forte -- por certo, nos primórdios da Cidade Velha -- pode sugerir algo a ver com a recente passagem de Daniel de La Touche, o colonial francês que fundou São Luís do Maranhão, em sua subida ao Rio Pará até Camutá (Cametá), no rio Tocantins. Donde ele voltou depressa com aviso de que portugueses vindos do Ceará estavam prestes a atacar a fortaleza de São Luís (1615), como sucedeu de fato. As trilhas do Adão pernambucano e seus descendentes mamelucos se emendaram ao roteiro de outro aventureiro famoso, Martim Soares Moreno, marido da índia Paraguassu, filha do cacique de Jaguaribe (Ceará).


a grande jornada de Pedro Teixeira


No início de janeiro de 1637, dois frades chegaram no forte de Gurupá em uma pequena canoa, eram os franciscanos Domingos de la Brieda e frei André de Toledo com seis soldados espanhóis procedentes do vice-reino do Peru. Dali foram a Belém. O governador, capitão-mor do Pará, Francisco Azevedo decidiu encaminhá-los ao governador do Estado do Maranhão Jácome Raimundo de Noronha. Em São Luís eles relataram que em 17 de Outubro de 1636 haviam partido de Quito com o capitão João Palácios, caudilho espanhol, a fim de encontrar o El Dorado e a Casa do Sol. 

Todavia, a fama dos hispânicos era péssima e os índios Encabelados reagiram massacrando membros da expedição. Os que escaparam voltaram a Quito e eles optaram por descer o rio das Amazonas até a foz. Perguntados o que pretendiam fazer, disseram que poderiam voltar, desde que tivessem condições para isso. Então o governador Jácome Noronha pensou em aproveitar a ocasião para mandar conquistar o Alto Amazonas alargando a posse portuguesa para além da linha de Tordesilhas (1494-1750) na bacia amazônica. 

Uma decisão extremamente ousada, visto que pelos termos do tratado luso-castelhano de 1494, nem mesmo a ilha grande do Marajó se encontraria dentro das capitulações de direito dos portugueses. Contudo, pela real conquista portuguesa alcançada em 1623 contra posições holandesas nos limites espanhóis (Xingu, Baixo-Amazonas, Marajó e costa do Amapá) se havia criado precedente sob consentimento de Castela durante a União Ibérica (1580-1640). 

Deste modo, a célebre viagem de Pedro Teixeira de Belém a Quito (1637-1639) iria dilatar, praticamente, a Amazônia lusitana até os confins da Amazônia brasileira após a Adesão do Pará (1823) à independência do Brasil. O sebastianismo, alma popular portuguesa pulsando nas trovas de Bandarra para restauração da soberania perdida com a morte de El-Rei Dom Sebastião no campo de batalha no Marrocos; também urdia a expansão da futura fronteira Norte do Brasil no seio da União Ibérica. E, portanto, restaurada a independência do reino de Portugal (1º/12/1640) a ocupação lusitana para além da linha tordesilhana - base para tese de uti possidetis real, defendida com sucesso por Alexandre de Gusmão nas negociações em Madri do tratado de 1750; já estaria plantada no imenso chão. 

Foi nesta fase histórica que prevaleceu de maneira insuperável a catequese das populações tapuias ou a pacificação de povos inimigos dos Tupinambás aliados aos portugueses, como foi o caso dos Nheengaíbas (marajoaras). Com a paz dos Nheengaíbas tendo os portugueses por amigos, segundo Antonio Vieira em carta escrita à Dona Luísa de Gusmão (1660); colocava-se termo à quarenta e tantos anos de guerra desde a conquista do Maranhão (1615) e talvez antes, ficando o Pará seguro de invasão estrangeira.

Para o arriscado cometimento, o governador Jácome de Noronha nomeou o experimentado capitão Pedro Teixeira como emissário do estado do Maranhão e Grão-Pará à Audiência de Quito, no vice-reino do Peru. Promoveu-o a capitão-mor da Entrada e general-de-estado. O governador entregou o Regimento da missão a Pedro Teixeira onde se destacam reconhecimento do rio das Amazonas até suas nascentes; levantamento de lugares onde se pudessem levantar fortificações; disciplina da tropa portuguesa em relação aos indígenas de maneira a não causar atritos entre uns e outros e instrução secreta para abrir somente no regresso da viagem (refere-se à implantação do primeiro marco na fronteira amazônica entre Espanha e Portugal).

Foram nomeados auxiliares, o capitão Pedro da Costa Favela (mameluco que viria a se notabilizar, mais adiante, como terrível exterminador de índios no rio Urubu, por exemplo, onde ele à frente de tropa de resgate destruiu e queimou mais de seiscentas malocas capturando centenas de escravos obrigados a descer para Murtigura (Vila do Conde), onde jesuítas preparavam operários em regime de "encomenda" a fim de atender aos colonos). 

O coronel Bento Manoel de Oliveira foi escolhido pelo governador para 2º comandante, imediatamente às ordens de Pedro Teixeira (outro mameluco famoso por conhecer os costumes dos índios seus parentes por lado materno e falar tupi fluentemente; foi Bento de Oliveira quem, com sua enérgica liderança, dominou motim de mais de mil tupinambás na fase mais crítica da incursão ao Alto Amazonas). O capitão Bento da Costa, piloto-mor da navegação; capitão Antônio de Azambuja, mestre-de-campo; Filipe de Matos Cotrim, sargento-mor; Pedro Baião de Abreu, Ignácio de Gusmão e Domingos Pires da Costa, capitães de infantaria; Fernão Mendes Gago, Bartholomeu Dias de Matos e Antônio de Oliveira, alferes; Maurício de Heliarte, ajudante; Diogo Rodrigues e Domingos Gonçalves, sargentos; Manuel de Matos Oliveira, almoxarife; João Gomes de Andrade, escrivão; frei Agostinho das Chagas, capelão da Armada. 

O frade espanhol Brieda e os seis soldados, que meses antes haviam descido o rio Amazonas, regressaram como guias. Frei Toledo seguiu a Madrid e Lisboa para dar ciência da viagem de descida do rio Amazonas e da expedição que os portugueses iam fazer subindo o grande rio ainda quase desconhecido. O referido religioso foi portador da carta e do mapa da viagem de Pedro Teixeira que Jácome de Noronha enviou em 29 de maio de 1637 ao rei Filipe de Espanha. 

No dia 25 de Julho de 1637, Pedro Teixeira partiu de São Luís à frente da expedição e ao chegar em Belém iniciou imediatamente os preparativos da grande jornada. Todavia, na Câmara e Senado de Belém surgiu oposição ao empreendimento. Pediram ao capitão-mor do Pará Aires de Souza Chichorro, que cancelasse ou adiasse a viagem considerada muito onerosa e arriscada. Mas Jácome de Noronha mostrou-se inflexível e Pedro Teixeira prosseguiu a jornada para ocupar seu lugar na História. 

Nos começos de agosto de 1637, Pedro Teixeira partiu de Belém e a 5 de Setembro rio Pará acima passou ao Tocantins para alcançar Cametá, onde conseguiu mais canoas e seguiu para Gurupá concluindo preparativos da expedição. Organizou a flotilha com setenta canoas, sendo quarenta e cinco grandes, com vinte remeiros cada uma; o efetivo militar era constituído de setenta soldados portugueses e mil e duzentos índios de arco e remo, aproximadamente, acompanhados de mulheres e filhos perfazendo total de dois mil integrantes.  

No que tange, a mulheres e crianças indígenas na expedição cumpre observar o papel do general mameluco Bento Manoel de Oliveira e seu acurado conhecimento da cultura tupinambá. Sabedor talvez das grandes expedições que estes índios fizeram no passado em busca da mítica "terra sem males". Em 1538, por exemplo, o mameluco Diogo Nunes relatou uma migração de 14 mil tupinambás de Pernambuco que chegou ao Peru através do Alto Amazonas numa marcha de doze anos, aproximadamente... 

Pode-se imaginar o entusiasmo dessas populações, remanescentes das grandes migrações anteriores à colonização, quando ouviam falar de preparativos de viagem destas proporções para ir aos confins da terra onde o sol adormece no horizonte. Terá sido a viagem de Pedro Teixeira (talvez percebido vagamente como um caraíba ou melhor, neste papel, mais depressa Bento Manoel de Oliveira) a derradeira tentativa dos Tupinambás em encontrar o paraíso selvagem (lugar mítico onde não existe fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte).

A 28 de outubro de 1637, a histórica entrada de Pedro Teixeira partiu de Gurupá, rio acima, para a viagem que daria ao Brasil sua mais extensa região. No início de janeiro de 1638 descobriu o Rio Negro. Cerca de 27 de fevereiro, devido à demora da viagem e à força contrária das águas do rio Amazonas, a tripulação dava mostras de fadiga e desobediência. O capitão Pedro Teixeira manda o coronel Bento de Oliveira, com oito canoas, vinte soldados e cento e cinquenta índios, se adiantar para servir de guia. 

Rapidamente o destacamento precursor ultrapassou o Aguarico, o Coca e o Payamino até dez léguas acima do Napo. Enfim, a 3 de julho deu-se encontro entre as duas turmas e Pedro Teixeira ordena que Bento continue seguindo em frente com seus homens reconhecendo o caminho (quantos velhos mateiros tupinambás guiaram esta viagem pode-se imaginar, mas nunca ninguém saberá ao certo). 

A 15 de agosto, seguindo sinais deixados por Bento de Oliveira, Pedro Teixeira chegou a Payamino, em terra firme. Daí em frente prosseguiu a expedição ora a cavalo, ora em mula ou a pé subindo o contraforte para atravessar os traiçoeiros Andes. Demorou-se com Pedro Favela e Pedro de Abreu mais quarenta soldados e trezentos índios, deixando-os à retaguarda no preparo do regresso, próximo da Aldeia dos Pujas, uma povoação de castelhanos onde o aguardava Bento de Oliveira com sua tropa já no dia 14 de outubro de 1638. Então, desta aldeia partiram com guias juntos para Quito e logo ao chegar, no Santuário de Nossa Senhora de Guápulo, foi oficiado Te-Deum em ação de graças pelo êxito da viagem. À frente de cortejo no meio de festejos, Pedro Teixeira fez sua entrada em Quito. 

O Vice-Rei do Peru, Conde de Chicon, Dom Luiz Jerónimo de Cabrera y Bobadella, em grande audiência, no dia 10 de novembro de 1638, recebeu Pedro Teixeira. Este lhe ofereceu a sua Relação e o piloto Bento da Costa um Roteiro da viagem no qual evidencia vários pontos do percurso do grande Rio, com notáveis conhecimentos da região, de caráter etnográfico e principalmente geográfico. 

A manifestação de simpatia dos peruvianos ao receberem Pedro Teixeira inquietou as autoridades espanholas, que escolheram Frei Cristóvão de Acuña e Frei André de Arthieda para se encarregar de um diário descritivo de navegação, com ordens de examinar o curso do rio e seus afluentes, bem como os povos que habitavam as suas margens. Em Sevilha, o Conselho das Índias sugeriu ao monarca que punisse Pedro Teixeira por haver entrado no Peru sem consultar previamente aquele órgão. Todavia, Felipe ao ler a Relação compreendeu a importância da viagem significava para a Coroa Ibérica, optando por uma atitude compreensiva.

No dia 24 de janeiro de 1639, Pedro Teixeira requereu ao vigário provincial de Nossa Senhora das Mercês, em Quito, que lhe cedesse religiosos da ordem Mercedária para fundar convento em Belém e São Luís. E em 16 de fevereiro foi iniciado o regresso da expedição, escolhendo caminho mais curto, por Archidona, buscando as margens do Napo ciente de que era chegada a hora de cumprir o item do Regimento de Jácome de Noronha. Assim, tomou posse da margem esquerda do Rio do Ouro (Aguarico) em nome da Espanha, mas ressalvando direitos da Coroa Portuguesa. Ali colocou um Padrão e fundou a povoação de Franciscana, em memória dos franciscanos mortos na revolta dos Encabelados

O "Auto de Posse" foi transcrito no dia 16 de agosto de 1639, por João Gomes de Andrade, escrivão da jornada. Documento considerado como um dos maiores feitos da viagem do capitão Pedro Teixeira, de grande significado político para Portugal e, posteriormente, para o Brasil. Ao deparar com o grande tributário do Amazonas, que comunica com o Pantanal e a bacia do Prata, de grande profundidade e inumeráveis cachoeiras, batizou-o de rio da Madeira. 

No início do mês de dezembro de 1639, a Armada esteve na nação dos Tapajós, sendo recebida com agrado pelos indígenas que o chamaram de Curiua-Catu ("senhor poderoso"). Fizeram várias ofertas que Pedro Teixeira retribuiu com artigos que trouxera do Peru. Ali permaneceu durante três dias com sua tropa refazendo as forças. No dia 12 de dezembro, após viajar vinte e sete meses, Pedro Teixeira chegou de regresso a Belém do Pará, onde calorosa recepção de autoridades e povo o aguardava. 

Em seguida partiu, por via marítima, a São Luís para dar conhecimento ao governador do sucesso da expedição. Estava demarcada, pela primeira vez, a distância entre Quito e Belém do Grão Pará nos dois sentidos, com vasto território a ocupar. Dia 28 de fevereiro de 1640, como 21º capitão-mor do Pará, Pedro Teixeira assumiu a Capitania do Pará. A 28 de novembro nomeado Governador, cargo que exerceu até 26 de maio de 1641, ano em que passou os poderes ao novo Governador Francisco Cordovil.
Filipe IV, em 1640, ordenou ao Governador Bento Maciel Parente que fossem dados a Pedro Teixeira trezentos casais de índios, até aos seus herdeiros, assim como terras das Aldeias Faustino.
Pedro Teixeira preparava-se para visitar Portugal, mas faleceu no dia 6 de junho de 1641. Havia apenas pouco mais de cinco meses da Restauração da soberania de Portugal. O insigne conquistador português foi sepultado na Igreja matriz de Nossa Senhora das Graças, Catedral de Belém do Pará.

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