TUDO VALE A PENA SE A ALMA NÃO É PANEMA

O autor que mora em Palmas aprendeu a escrever com a ajuda de pessoas do Projeto Rondon (Foto: Bernardo Gravito/G1)
Agostinho Quirino Batista, Agostinho da UMA, autor da atrevida "História de um Juricaba".



Agostinho é poeta nato do meio do mato. Ele é um genuíno caboco marajoara, filho de Muaná, que foi no passado uma das raras aldeias indígenas catequizadas e transformadas no Diretório dos Índios (1757-1798) -- forja da caboquização -- em vilas sem perda do nome original e da identidade territorial. O contista se assume nheengaíba, um Juricaba danado (descendente espiritual do célebre cacique dos Manaus, Ajuricaba; que se imortalizou na luta contra a escravidão dos índios do Rio Negro capturados pelas chamadas "tropas de resgate" do Pará). Ajuricaba está para os povos indígenas assim como Zumbi dos Palmares está para os afrodescendentes e ambos se encontram, na Amazônia, dentre a Criaturada grande de Dalcídio.

Todo mundo sabe que a palavra "caboco" significa "saído do mato": na acepção de tirado da barbaridade (Nheengatu ou língua geral amazônica, "caa", mato, floresta; e "boc", saído, tirado, etc.). Civilizados nos chamam "caboclos", mas a gente fala, corretamente, caboco... Também eles escrevem ilha "de" Marajó, coisa que nenhum caboco jamais dirá, posto que a ilha em questão vem do guerreiro nativo, que habitou no passado pré-colonial o grande rio Marajó, que banha Ponta de Pedras ou Itaguari, terra do índio sutil chamado Dalcídio Jurandir. Caboco assumido tem orgulho em ser descendente de índio... Enquanto "caboclo" panema sente vergonha dos avoengos indígenas e quer distância da maloca ancestral.

Aqui está o pulo do gato: o caboco, por conta própria, revoga antigas postulações imperiais pombalinas. Funda-se no princípio supimpa de que a história não anda pra trás feito caranguejo no buraco, masporém a gente sabendo onde, como e quando cortaram a corda da evolução natural das coisas próprias da nossa terra; sem carecer declarar de novo a velha guerra cabana; será possível a qualquer tempo retomar o rumo aonde a gente queria chegar. Claro, ainda não lhe disseram paresque que a refazenda da história é feita na base do pensamento descolonial. Coisa assim como desfazer um mal antigo para nascimento e progresso de novo bem. Mas ele já intuiu a sabedoria popular, quando diz: caminho do feio é por onde veio...


A preciosa "História de um Juricaba" começa com a singela pretensão autobiográfica de seu autor e acaba sendo um genuíno manifesto da amazonidade de terceira idade, com a participação no dito trabalho deste caboco velho comedor de peixe frito, que vos fala, convidado que fui pelo autor a colaborar com algumas páginas. O posfácio da obra coube ao gerontólogo e coordenador nacional da Universidade da Maturidade (UMA), dr. Luiz Sinésio Neto, que realça o papel ímpar do seringueiro militante Agostinho Quirino Batista que, em tenra idade, sofreu acidente ofídico (mordedura por cobra jararaca) e quase ficou inválido. Este acidente lhe marcou a vida obrigando-o precocemente a sair do paraíso da "tribo" (comunidade) para tratamento de urgência na cidade. 

Para o sumano Agostinho este acontecimento foi paresque a expulsão do Adão mítico do jardim do Éden. Conforme pesquisas da arqueóloga Denise Shann, o grafismo da cerâmica marajoara sugere ser a cobra Jararaca (Bothropos atrox) animal totêmico dos antigos marajoaras. Pode-se imaginar interações arcaicas entre natureza e cultura nas condições socioambientais da ilha do Marajó, quando ainda hoje são frequentes impactos e abalos psicológicos nas famílias ribeirinhas afetadas por acidente ofídico com pessoas da comunidade. Por outra parte, sabendo que as antigas etnias marajoaras eram exímias conhecedoras e manipuladoras de venenos para uso na caça e na guerra, fica menos difícil compreender como a guerrilha defensiva com emboscada armada de zarabatana feita de paxiúba e dardos de talo de patauá; criou a fama de malvado ao guerreiro "Marajó" (do tupi, marãyu). A hipótese de que a Jararaca foi mestra nessa arte bélica primitiva nos dá muito a pensar.

A vida de um caboco é um livro aberto de contradições sucessivas entre a vida e a morte. O bem e o mal. Por esta via de necessidades e sonhos, vivendo no inferno verde a gente idealiza o paraíso com a maior facilidade. A gente custa aprender o certo, mas do errado é tiro e queda... Topada que leva pobre pra frente. E o erro ensina mais que tudo nesta vida. Na idade adulta Agostinho ainda não sabia ler e escrever, tendo recebido ajuda de estudantes do extinto Projeto Rondon foi alfabetizado, politicamente inclusive. Desde então o menino ribeirinho deixou de ser panema para se tornar um guerreiro, na verdadeira acepção da palavra. 

Agostinho hoje na UMA (extensão da Universidade Federal do Tocantins - UFT, dentro do programa Universidade Aberta à Terceira Idade, do MEC), formando em gerontologia constitui um tipo de embaixador voluntário levando a boa nova do diálogo entre gerações a diferentes classes sociais. A relativa noção de riqueza e pobreza passa a ter outra noção diante do olhar do caboco ladino que refaz o caminho da cidade para a antiga aldeia de seus antepassados tendo por missão a alegria do envelhecimento com sabedoria e dignidade de verdadeiros cidadãos. 

Ele anuncia aos quatro ventos: papagaio velho aprende a falar e caboco pode ser doutor se ele libertar-se do medo. A questão é ter coragem e sorte em trilhar caminho certo: isto é, achar método que convém para chegar aonde se deve ir. Quem acha que a opção racional pela não-violência é renúncia ao velho combate dos lesados da terra dos tapuias está muito enganado... A educação popular sempre foi e será o caminho para a liberdade desta gente: mais ainda agora a educação continuada é sinônimo de libertação da humanidade filha da animalidade. 

Na democracia (governo do povo) a luta deixa de ser pura conquista do espaço e passa a ser luta permanente em defesa da justiça e liberdade conquistadas pela gente através do tempo em contínua transformação. Destarte, derrubam-se barreiras anulando o elitismo arrogante e o populismo malandro com suas falsas oposições conservadoras. A ciência democratizante e a cultura popular de braços dados para o desenvolvimento humano solidário e sustentável, na teia de ações públicas e particulares concretas de acordo com os princípios da Carta da Terra ["A Carta da Terra é resultado de uma década de diálogo intercultural, em torno de objetivos comuns e valores compartilhados. O projeto da Carta da Terra começou como uma iniciativa das Nações Unidas, mas se desenvolveu e finalizou como uma iniciativa global da sociedade civil." ver http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/what_is.html ].  

O caboco marajoara é cidadão do mundo, escreveu Dalcídio Jurandir em correspondência com a filha de Bruno de Menezes, Maria de Belém. Agostinho Batista é uma prova da tese dalcidiana. Sua passagem na UMA o faz militante maduro da teia onde a Carta da Terra figura como espelho do processo mundializante.

Crescente número de juristas internacionais reconhece que a Carta da Terra está em processo de reconhecimento de status de lei branca (soft law), tal qual a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Instrumentos mundiais considerados moralmente como espelhos, mas que não tem obrigatoriedade legal para os estados nacionais que os aceitam. Todavia, muitas vezes leis morais servem de base para leis e compromissos nacionais reais. Nesta crise civilizacional é urgente mudar a maneira de pensar e viver, documentos e declarações como a Carta da Terra nos desafiam a examinar nossos valores e a escolher melhor caminho para todos. A educação para o desenvolvimento sustentável tornou-se essencial, e o movimento para a educação de terceira idade se torna uma estratégia de recrutamento da velha guarda a ser ensinada a ensinar. A revolução dos avôs e avós na defesa de seus filhos e netos. A ciência demonstra como em muitas espécies os indivíduos idosos são mestres naturais dos jovens. O caso particular das baleias chama atenção, quando deixam de procriar velhas baleias passam a ajudar suas filhas e filhos a cuidar dos mais novos do grupo.

 
A singela primeira edição da "História de um Juricaba" tem diversas facetas que merecem reflexão: a teimosia do autor para editar a obra procurando colaboradores para a incrível tiragem piloto de 40 exemplares, apenas, financiada pela coleta, pelo próprio autor, de latinhas de alumínio para reciclagem. O apoio imediato de colegas e professores da UMA na compra do livro a vinte reais cada exemplar, como que o capital inicial já vai permitir segunda edição... Uma estratégia que combina reciclagem de resíduo sólido, microcrédito, indústria criativa e fé na vida cooperativa.
 
O melhor é que nosso "camarára" (camarada, em Nheengatu) está na teia ajuricabana da terceira idade. Na qual, cada caboco velho ou caboca velha, no seio de sua propria família tece a rede das gerações na "aldeia" (comunidade local), livre, autogestionária e sustentável através da inclusão social que interage com o mundo envolvente. Vovó e vovô no computador é um "perigo" para a meninada desnorteada e os patifes que se aproveitam da inocência desprotegida. Como se, de fato, a comunidade local fosse raiz da grande árvore chamada nação, através de um milhão de aldeias interligadas a humanidade se articula em meio à Biosfera elevando cada sentimento e pensamento pessoal em espiritualidade da mãe Terra (hipótese holística Gaia). 

Dizemos nós que o "juricaba" Agostinho é um raro brasileiro nos dias de hoje. Mas, da mesma maneira, pressentimos que há em nosso grande país milhares, se não milhões, de Agostinhos como diamantes brutos no garimpo da dura sobrevivência, sempre prontos a se tornar joia rara, vidas brilhantes e exemplares. Eis a mina de brasilidade que o programa nacional Universidade Aberta à Terceira Idade deve aproveitar para felicidade geral do bravo povo brasileiro.

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