ECOCIVILIZAÇÃO ACHADA E ABANDONADA NO RIO DAS AMAZONAS

urna de cerâmica marajoara pré-colombiana: patrimônio histórico e artístico do Brasil



O Pará do Brasil sentinela do Norte

Nem tudo são flores, porém é fato que no mundo contemporâneo a América do Sul, desde o movimento independentista latino-americano de 1810, se destaca como nunca dantes experimentando um profundo processo de descolonização. Mas, espera, devagar com o andor... Primeiro, carece advertir que a oposição entre pares “colonização” versus “descolonização” deste momento histórico é suficientemente ambígua e dialética para deixar ver pelas brechas, por exemplo, que as relações Sul-Sul não são necessariamente negativas ao desenvolvimento das tradicionais relações internacionais Norte-Sul ou até mesmo ao predomínio Norte-Norte na hegemonia mundial. Dito de outra maneira, as relações Sul-Sul são completares às relações internacionais Norte-Sul e não substitutivas a estas últimas.

Na verdade – longe de constituir um fenômeno de moto próprio, apesar de inegáveis componentes endógenos tais como fontes de energia, matéria-prima e força de trabalho –, a notável emergência geral do hemisfério Sul que hoje se verifica ainda tem por motor a mesma revolução industrial iniciada na Inglaterra, no século XIX, com todas suas inseparáveis e dinâmicas contradições. Destarte, periferia da Periferia, a Amazônia apresenta diversas singularidades advindas da sua própria biodiversidade e diversidade cultural, com exemplo especial do Pará, estado-chave da Amazônia Oriental marítima.

Todavia, este novo desenvolvimento Sul gera sua própria contradição: em parte devido à insustentável lerdeza tecnológica para responder ao desafio da mudança climática nosTrópicos. Por outra parte, exigências interna e externa ao mesmo tempo a respeito da inclusão social de bilhões de seres humanos deixa claro para as massas a mentira neoliberal do capitalismo para todos. Para fazer redistribuição de renda carece que haja renda, depois a justiça fiscal na Suécia e outros países Norte não é a mesma coisa que se possa fazer num país carente de infraestrutura e de tudo, noves fora a corrupção congênita herdada do Colonialismo, financeiramente dependente do capitalismo central, também este eticamente questionável em suas origens e sustentabilidade do consumo (para o qual embora o proletariado possa teoricamente vir a ser substituído por máquinas-ferramentas e robôs, não há planeta que aguente a demanda dos insumos necessários). De modo que, como diria Bill Clinton com acordo prévio de Karl Marx, o que comanda o espetáculo "é a economia, estúpido!".

Entre o discurso socioambiental escorado nos direitos humanos patrocinados pela ONU e a prática de governos e sociedade nacionais e subnacionais (inclusive no hemisfério Norte) existe um abismo. Não importa que argumentação se levante contra tais evidências, mas é de interesse das populações do mundo e da biodiversidade planetária que o sistema da ONU seja reformado a fim de atualizar e realizar, no complexo século 21, os princípios históricos da Carta das Nações Unidas. Fora da lei internacional haverá choro e ranger de dentes, e a lei internacional será cada vez mais democrática ou ela não se sustentará nem por todos os canhões e ogivas da OTAN. 

A complexidade do mundo pós-colonial dispensa comentários e o “fim da História” com a tentação absolutista travestida de “novo” liberalismo, sob mando do império ianque a substituir o mundo bipolar e a velha Europa aristocrata como matriz da civilização ocidental judeu-cristã, acabou por mostrar que o grande irmão do Norte tem pés de barro: o fundamentalismo seja ele israelita, cristão ou islâmico, se revela perigoso ao ideal laico do estado democrático moderno e ao concerto das nações. Não é dizer que as religiões e divergências ideológicas devam ser abolidas, mas sim toleradas no âmbito dos direitos individuais e garantidas pelo estado laico imparcial. As lições dos horrores da Guerra (todas elas ao longo da história da Humanidade), com o fracasso da Liga das Nações e o grave desafio da ONU em resistir a seu congelamento até final aniquilamento sob égide do totalitarismo seja ele qual seja; parecem esquecidas pelas grandes potências.

Segundo, se da América do Sol (tropical) poderá vir um novo mundo e até boa parte de ajuda para salvação do planeta Água (lembrando que 70% do corpo humano e da Terra, mais ou menos – curiosa coincidência da natureza –, são formados de água), a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) deveria deixar de ser patinho feio da diplomacia sul-americana para ser a menina dos olhos da UNASUL contando com maiores atenções da própria ONU. Os recursos aquáticos e a hidrologia deveriam ser centro da cooperação regional e internacional para o desenvolvimento sustentável da Amazônia na busca do novo paradigma civilizacional ambicionado por todo mundo.

Acaba aqui este tosco e "naif" preâmbulo para chegar a furo da situação geocultural da Amazônia Paraense dentre as mais Amazônias na contramão da recolonização intensiva por que passam neste momento as regiões amazônicas. O famoso “celeiro do mundo” cunhado por Humboldt conquistado a ferro e fogo por coloniais sanhudos antepassados das atuais elites nacionais dos ditos países amazônicos. Em desvantagem dos atuais 33 milhões de habitantes do antigo “espaço vazio”, ou melhor, esvaziado pelo pioneirismo da doutrina “índio bom é índio morto”: sabemos, entretanto, como o processo de branqueamento assassinou a alma do bárbaro e lhe cativou o corpo para melhor explorar a força de trabalho na “última fronteira da Terra”.

O NOVO NOME DA LIBERTAÇÃO É ECOCIVILIZAÇÃO

Parece palavrão, é extravagante e tem cheiro futurista de invenção. Mas, quando a gente esmiúça a coisa e fussa pra ver como haveria de ser, descobre por acaso que o fundamento do tal desenvolvimento sustentável da Amazônia é bem mais conhecido como coisa nossa do que se poderia imaginar. Basta olhar pra trás e se dar conta do que era, há mais de mil e tantos anos, na civilização que deixou vestígios nos sítios arqueológicos da ilha do Marajó. Se a gente fizesse releitura do Sermão da Montanha e do Manifesto Comunista daria razão a Hugo Chavez em sua retórica bolivariana quando ele diz que Jesus Cristo foi o primeiro comunista do mundo... Por conseguinte Marx e seu genro anarquista Paul Lafargues não estão tão distantes assim quando um elogia a greve e a resistência operária contra a exploração desumana dos patrões dementados pelo usura do lucro e o outro prega o direito à preguiça. O índio "preguiçoso", o caboco manhoso ou o malandro carioca são parentes na luta contra a exploração do homem pelo homem. O interior da Amazônia reza o ditado "vida boa não quer pressa"...

Como assim? E por que não se pesquisa mais a Amazonidade como deveria e nem mesmo se conserva o que aquela gente do passado deixou na região? Por acaso, na ilha do Marajó há mais de mil anos, o manejo incipiente da antiga aquicultura, a agroecologia por andares e construção de aldeias suspensas com necrópoles cerimoniais e agricultura familiar não poderia ser a base da economia solidária hoje em dia nas comunidades e populações tradicionais da Amazônia? Por que não? A culpa é da mentalidade, como diz a canção. Esta mentalidade culposa, apesar do discurso da modernidade conservadora, é colonialista. Não mais usos e costumes do velho português desterrado que se amasiou com a escrava indígena ou africada e deu ao Brasil colonial a mistura fina crioula do país do Futuro, mas o racismo fracassante importado do que há de pior da velha Europa e reproduzido em larga escala pelos donos do poder nos Estados Unidos, Canadá, Brasil, Argentina e alhures (do Alasca até a Patagônia acham-se racistas prontos a brigar pela supremacia da “raça superior” e seu modelo industrial predador): não se trata de vencer uma guerra geopolítica, porém de superar o conflito geocultural que já dura mais de 500 anos. 

Nisto, a unidade dos povos reclamada se encontra mais depressa na juventude estudantil e na solidariedade das mulheres mais sensíveis para a vida do que os homens; pois elas são naturalmente tocadas pela paz e a segurança das crianças (por consequência da sociedade humana inteira nesta e nas futuras gerações). Então, uma região onde o matriarcado teve seu esplendor, o rio das mulheres guerreiras (amazonas) deveria ser algo mais que uma lenda importada da Capadócia com os turcos encantados e talvez uma metáfora.

O MAIOR PAÍS AMAZÔNICO QUE FALTA DESCOBRIR

Nós estamos prontos a defender a Amazônia, mas não conhecemos as regiões amazônicas e a diversidade de suas gentes. Não prestamos atenção em ser o Brasil, de direito e de fato, o maior país amazônico do mundo. Além disto só uns poucos eruditos sabem que o país do “Brazyl” existia muito antes do descobrimento do Brasil. Guardadas a sete chaves na imensidão do Atlântico jazidas do corante mineral vermelho fornecido por mercadores da Irlanda ao continente europeu, pouco a pouco, habitou a imaginação do velho mundo sempre ávido de riquezas achadas e extraídas de regiões longínquas e misteriosas.

A saga dos Fenícios, Gregos e Romanos colaborou no desenho do velho mapa fantástico onde o futuro “país do pau-brasil” morava em companhia das ilhas Afortunadas, país de São Brandão, Antilha e outras paragens cartografadas pela imaginação. Um belo dia, navegadores lusíadas saindo da ilha da Madeira toparam com a “ilha do Brasil” em alto mar. Foram ver de perto para contar de certo e, afinal de contas, ali não existia o tal pigmento encarnado deveras procurado. Em vez de uma ilha era arquipélago que ficou sendo os Açores, devido a quantidade de aves da família dos falcões.

De toda maneira, nos Açores ficou o Monte Brasil como primeiro marco rumo ao país do Arapari (constelação do Cruzeiro do Sul) achado inicialmente no Grão-Pará (viagem secreta do cartógrafo do rei Duarte Pacheco Pereira, em 1498) e depois descoberto por Cabral (1500) com nome de Monte Pascoal e depois ilha da Vera Cruz, finalmente Brasil... Quando, enfim, o pau brasil contentou o comércio marítimo poderia até ter lhe tingido a bandeira com a mesma cor da riqueza dos mantos reais. Mas, então, o ouro como símbolo maior de poder inflamava os espíritos e por causa do metal começou a destruição das Índias, desde as Antilhas até a Terra-Firme adentro.

O verde do pendão brasileiro foi ocupado por canaviais e cafezais enormes regados pelo suor e fertilizado pelo sangue dos escravos. Só 500 anos depois começamos a ver se perder o verde da Amazônia como a melhor parte deste Brasil continente de tesouros procurados. Agora de volta ao mar profundo com o pré-sal acabamos por descobrir que a Amazônia azul promete outro tanto ou mais que todo ouro já achado no vasto mundo...

NOSSOS IRMÃOS INDÍGENAS DA AMÉRICA DO NORTE DORMIRAM SOBRE MONTANHAS DE FERRO E RIOS DE PETRÓLEO...

Então os bons cristãos chegaram, recebidos com afeto como era costume em todo Novo Mundo antes da Conquista, e logo os peregrinos acharam-se no dever de civilizar os índios. Inútil falar novamente o que aconteceu e do motivo do feriado nacional do dia de Ação de Graças nos Estados Unidos. Agora uma perguntinha ao bravo povo brasileiro: será que “O Pará do Brasil sentinela do Norte terá cacife para guardar ou explorar de modo justo e sustentável as riquezas da Amazônia azul ou vai precisar ser mais ocupado e recolonizado do que já está? E assim mesmo claudicou na Amazônia da "belle époque" transformada a duras penas em inferno verde. Não poderia o Brasil amazônico fazer diferente do que está fazendo na região? Deixemos as crianças responder a pergunta na nova escola de tempo integral financiada pelos ‘royalties’ do pré-sal... Afinal de contas elas é que deverão ser as herdeiras da história brasileira, desde a idade do barro dos começos do mundo até a era das comunicações aeroespaciais.

Na baía da Guanabara, no século XVI, tupinambás e tamoios faziam a guerra uns aos outros quando os franceses chegaram para inventar a França Antártica; Estácio de Sá foi lá e graças ao milagre do glorioso São Sebastião temos hoje o melhor carnaval do mundo na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro e muitas coisas mais. No intervalo do segundo tempo o calvinista Gaspar de Colygne levou embaixada de índios tupinambás à corte de Ruão. Ora, para agradar os ditos embaixadores de Pindorama, segundo chegou ao conhecimento de Montaigne; mandaram os cariocas fazer ‘citytour’ e quando acaba quiseram saber o que os bárbaros teriam achado da civilização francesa.

Disse um índio, em sua própria língua e com costumeira franqueza de sua nação o que pressupõe problema de tradução, ter ficado chocado ao ver pela primeira vez na vida mendigos à porta de catedral estender as mãos aos burgueses... Acrescentou o índio: “não entendo por que os miseráveis não saltam ao pescoço dos endinheirados e incendeiam esta cidade”. Teria Montaigne exclamado ao saber do “causo”: “vejam só, uns selvagens da América vem nos ensinar o que deveríamos ter feito há tempo...”. Estava criada a legenda do Bom Selvagem.

Mais tarde, Rousseau recuperou esta história mais inacreditável do que as tratativas de paz do Padre Antônio Vieira com os sete caciques Nheengaíbas da ilha do Marajó e com o discurso do Bom Selvagem em mente tocou fogo às preconcebidas ideias da época e levou multidões de “sans-coullotes” às ruas: cai a Bastilha, estava feita a Revolução de 1789... No mesmo ano a Inconfidência Mineira e por conseguinte o esquartejamento de Tiradentes por ordem de Dona Maria I, a Louca. Por acaso, esta pobre senhora veio às pressas para o Brasil com a Família Real, em 1808, fugindo às tropas de Napoleão...  A Comuna de Paris (1871) entra para história como primeiro governo do povo no mundo e Marx desenvolve grande parte de sua teoria revolucionária sobre este acontecimento histórico. No entanto, antes mesmo do Manifesto Comunista a cidade de Belém do Pará havia tido sua comuna, entre 1835 e 1836, faltando ainda estudiosos à altura teorizar sobre os fatos da Cabanagem de suas raízes no século XVII até as lutas políticas atuais para fazer valer a cidadania em todos recantos da Amazônia.

Ah, mas espera aí! Volta o filme... O Brasil brasileiro não começou na Bahia com a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral de passagem para a Índia. Também não foram apenas os tupi-guarani que inauguraram a cultura brasileira em São Paulo de Piratininga ou na Guanabara. Para, para! Aí já viviam os Tamoios (de ‘tamuya’, avô; que passou a “tapuya”, inimigo). E ao Norte então? Já tínhamos a maior civilização tropical das terras baixas da América do Sul, a Cultura Marajoara. 

Nossa ecocivilização amazônica resiste, apesar de tudo. Com o fim do mundo ou da História só temos a perder nossas misérias.

Viva o Brasil! Viva a Amazônia, Viva a América do Sol!





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