Uma viagem ao país da Princesa (4).


lago da Princesa, na área de proteção ambiental Algodoal-Maiandeua / projeto Monumento Natural Dunas de Algodoal do IDEFLOR-Bio (foto Frederico Lobo , blogue Santa Fotografia, postagem de 11/08/2010 via Google).




Quando visitei pela primeira vez o lago da Princesa, há quarenta anos, eu me achava completamente ignorante das tradições da ilha de Maiandeua como tantos outros visitantes que aí vão. Foi, então, quando ouvi falar da misteriosa Princesa e dos mais encantados da ilha, desde aí comecei a desbastar minha "santa" ignorância a respeito do vasto mundo da Encantaria que habita a biosfera neste estirão maravilhoso do reino encantado de Dom Sebastião, na geografia luso-brasileira do Maranhão, Pará e Piaui.

Muita areia para meu carrinho... Uma confluência de diversas culturas em meio à biodiversidade extraordinária, onde um observatório oceanográfico se daria bem a par de um singular ecomuseu comunitário na Universidade da Maré? Agora, prestes a completar 81 outubros desde a primeira travessia da baía do Marajó, na barriga de minha mãe para a galega descansar na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, no dia 30/10/1937; hoje vou ruminando no caminho na pretensão da merecendência do dia no qual hei, também eu, talvez de me encantar. 

Quem me dera na companhia de minha princesa da Guiné, que me atura na vida; ambos pudéssemos nos naturalizar nativos do país da Princesa debaixo do manto de suas diversas louvações icônicas da grande Mãe ancestral (Nossa Senhora da Conceição, das Graças, dos Navegantes, do Tempo, do Ó, do Parto... Iemanjá, Janaína, Mariana...). A palavra Maiandeua, em língua geral amazônica, significa "lugar das mães". Seres que dão vida a outros seres. Os primeiros habitantes da Amazônia foram índios e eles acreditam que tudo que existe no mundo tem mãe. Mãe do mato, mãe da fome... Aracy (a madrugada), por exemplo, é a mãe do dia. E o sol, que é uma estrela, na língua tupi chama-se Guaracy, "mãe dos viventes". A lua chama-se Jacy, "nossa mãe"... 

É sério! Quisera eu ter merecendência para me tornar vódum, caruana, encantado; morar paresque na filosofia da complexidade de Morin; talvez nas asas de um pássaro guará ou num singelo taquerê mariscador, socó-dorminhoco, que pesca à noite e dorme durante o dia inteiro que nem um boêmio tocador de curimbó... Assim, poetando e divagando vou devagar a sonhar acordado, subindo a escada de Jacó através da espiral evolutiva graças à vida que me há dado tanto... 

Viver para contar causos da Criaturada grande a meus netos e aos netos de Dalcídio, tal qual este um escreveu em carta do Rio de Janeiro à filha do poeta Bruno de Menezes, Maria de Belém Menezes; com recado ao padre Giovanni Gallo (Turim, 1927 - Belém-PA, 2003): essas crianças que aparecem na fotografia da vila Jenipapo (Santa Cruz do Arari), alegres apesar da pobreza, são meus netos marajoaras (ver citação em Marajó, a ditadura da água, de Giovanni Gallo)... Estava feito, então, em 1973 o primeiro ecomuseu brasileiro. Leiam Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara, obra de Giovanni Gallo.

O Marajó e o Salgado/Bragantina são as duas regiões culturais do Pará banhadas pelo Atlântico: aqui o Norte e Nordeste brasileiros se confundem com antiguidade profunda. Se a arte primeva do Brasil se manifestou com força no neolítico com a Cultura Marajoara; pintura rupestre mais antiga do paleolítico se acha no Piauí. 

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arte rupestre de Pedra Furada, Serra da Capivara; município de São Raimundo Nonato (Piaui): hipótese de que os primeiros brasileiros descendem de africanos, chegados no litoral do Nordeste, cerca de 20 mil anos, através da correnteza equatorial marítima.

No entanto, no Maranhão, nos inícios do século XVI a destruição das Índias Ocidentais começada pela conquista nas ilhas do Caribe se instalou na ilha Upaon-Açu (São Luís do Maranhão) com a colônia francesa. Nossos antepassados tupinambás entraram em guerra com os nossos antepassados timbiras, vieram de longe em busca de um lugar mágico onde não existia fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte... Esse lugar que os tupinambás buscavam chamava-se yby maraey (terra sem mal).  O caminho para esse lugar antes era buscado no rumo onde o sol nasce.

Todavia, logo os caraíbas ou pajés-açus se deram conta da impossibilidade de alcançar a Terra sem mal em alto mar, onde aparentemente o sol nascia. Suas pequenas ubás não podiam enfrentar ondas e ventos. Daí que a chegada dos portugueses com as suas caravelas na Bahia de Todos os Santos, em 1500, agitou os espíritos dos índios. Porém, aparentemente, à altura da Paraíba Jurupari, o grande espírito condutor dos pajés mudou o curso da história: agora a Terra sem mal passou a ser buscada no poente em vez do nascente...


O DIABO SÃO OS OUTROS

Embora na verdade o inferno somos nós mesmos, para os bravos antropófagos tupis de antigamente os outros lhes parecia ser a causa da maldade no mundo. Enquanto eles desistiram de procurar a sagrada yby maraey dentro do vasto mar sem fim para seguir o sol rumo ao ocidente. Tal qual o resto do mundo acreditava que o sol girava em torno da Terra e não esta que gira em torno do Sol... Aquele lugar mágico sem nenhum mal devia se encontrar onde o sol ata sua rede para dormir: o Araquiçaua (do tupi, ara dia; ky, rede e xawa, sítio ou lugar). Com o tempo, o "araquiçaua" ficou chamado em qualquer lugar com abrigo para pescadores e suas canoas de pesca com a ideia de rancho de repouso... Assim, talvez a ilha de Maiandeua vista de longe desde as bandas de Uirandeua (lugar de muitas aves), Salinas e Salinópolis mais tarde; parecia ser um desses antigos lugares sagrados onde a mãe dos viventes, Guaracy (o sol) ata rede para dormir. 

O diabo é que aquela boa gente andeja em lá chegando, paresque o sol levantava porto para ir mais adiante... Deste modo, o lugar procurado desde o Peapiru (caminho do Peru para o litoral do Pindorama, Brasil) foi aparentemente traçando o mapa do gigante adormecido em berço esplêndido, chamando os guerreiros para dentro do Amazonas. Assim foi desde a Paraíba até o Maranhão. E do Maranhão ao Pará-Uaçu (Grão-Pará), depois da baia do Maracanã para a baia do Marapanim... Logo, o mar de água doce se desvendou e o sol já ia adormecer longe, outra vez, agora na ilha do "homem malvado", Marajó. O temível nheengaíba com suas emboscadas infernais armado de zarabatana e dardos envenenados de mortal curare. Esse índio, sim, falante da língua ruim (aruaque), era o inimigo hereditário do nobre e valente tupinambá em sua busca ancestral da Terra sem mal...

O bom selvagem nem em sonhos, nem por arte de Jurupari imaginou que o Diabo em forma de gente desembarcou na ilha Guaanani (batizada catolicamente do Salvador, depois Bahamas), no mar das caraíbas; no dia 12 de outubro de 1492: começo imediato da destruição das Índias Ocidentais, da chegada de Pedro Álvares Cabral em Pindorama (1500), exploração do pau-brasil e escravidão dos índios em Pernambuco (1530)... Naquele tempo, no outro lado do mundo, Paris entrou em transe com a guerra entre católicos e protestantes de tal jeito que o Demo aproveitou para fazer o inferno no reino da França. Foi então, que a Noite de São Bartolomeu , em 24 de agosto de 1572, aconteceu e os bons católicos massacraram os maus huguenotes. Apenas na civilizada Paris, três mil protestantes foram exterminados naquela noite fatídica: enfim, quando o transe acabou e os ódios foram aplacados o mundo descobriu que o único responsável por todo mal, fora o Inimigo da salvação da humanidade filha da animalidade.

Foi assim também que corsários franceses e piratas ingleses infernizaram a vida de conquistadores espanhóis e colonos portugueses. Por sua vez, mercadores holandeses não se fizeram de rogados para comparecer ao grande cenário da pilhagem do Novo Mundo. Em meio ao caos da Babel americana, índios vão lutar por suas terras, as suas crenças, seus filhos e mulheres fazendo disto até hoje uma tradição nativa. E os negros acorrentados a uma histórica infâmia trouxeram as armas miraculosas da resistência, a qual juntos e misturados com indígenas, a ralé judia e a massagada árabe vamos inventando o país do Futuro há uns bons cinco século sobre o passado ameríndio. É disto que eu trato com os meus pensamentos, debaixo do jambeiro que Fausto Teixeira plantou na vila do Algodoal. 

O Berto (nome parauara do Capeta) veio da França para o Maranhão e Grão-Pará atrapalhar a obra de Cristo. Nessa peleja metafísica entre o Bem e o Mal, Jesus consentiu que o dito Berto andasse solto no mundo praticando das suas na Amazônia, no mesmo dia de São Bartolomeu que o cujo praticou seus desatinos, antigamente, na França cristã. A primeira coisa que o pai da Mentira fez ao chegar às terras do Maranhão, foi intrigar os padres com os pajés: Desde então o espírito da santidade nativa, chamado Jurupari - a Psicanálise aplicada à Pajelança informa -, foi diabolizado pela igreja colonial como se fora imagem do próprio Cramunhão, inimigo da paz e da santa religião. Por conseguinte, as mais entidades espirituais dos povos negros e indígenas foram amaldiçoados pelos cristãos.  


O corsário Jacques Riffault, se estabeleceu na ilha Upaon-Açu (São Luís-MA), em 1594, com uma feitoria e deixou nela Charles des Vaux que havia se tornado cunhado e camarada dos tupinambás falando da língua tupi. Este personagem voltou a França e motivou a vinda de Daniel de Touche, senhor feudal de La Ravardière e fundador da França Equinocial (São Luís do Maranhão), autorizado pelo rei Henrique IV da França. O monarca foi assassinado, porém La Ravardière não desistiu de seus planos de colonizar o Maranhão e teve acordo da rainha Maria de Médicis, regente na menoridade de Luís XIII da França para se estabelecer ao sul da linha do equador, com 50 léguas para cada lado do forte a ser construído.

Surgiu assim a chamada França Equinocial, empresa marítima que despertou interesse de capitalistas calvinistas, como o banqueiro Nicolau de Harley e François de Rasilly em parceria com a Coroa Francesa. O estabelecimento iniciou-se em março de 1612, sob comando de La Ravardière, nobre, que em 1604 havia explorado as costas da Guiana com o navegador Jean Mocquet. A morte do rei francêm em 1610 adiou os planos, porém com cerca de quinhentos colonos a bordo de três navios - "Régente", "Charlote" e "Saint-Anne" -, a França Equinocial foi estabelecida no Maranhão. Segundo relato de frei Claude d'Abbeville, havia cerca de 12 mil índios na ilha, distribuídos em 27 aldeias cada uma de 4 ocas ordenadas. O território da colônia francesa se estendia desde o litoral maranhense, até o norte do Tocantins, dominando também quase todo o leste do Pará e parte do Amapá. Os franceses se estabeleceram em São Luís, explorando a região até Cametá no Pará, foram os primeiros europeus a chegar à foz do rio Araguaia, em 1613. A chegada dos padres franceses foi em Jeviree (atual São Francisco), aldeia que servia de porto aos tupinambás.  Abbeville enumera 27 aldeias na Ilha Grande, entretanto, muitas dessas aldeias mudavam de local ou se uniam a outras, gerando dificuldade em saber sua localização. Algumas delas são: Maracana-pisip (atual Maracanã), Araçui Jeuve (atual Araçagi), Pindotube (Pindoba) e Meurutieuve (Miritiua). Algumas dessas aldeias originaram bairros e povoados ou comunidades rurais da ilha, marcando a formação cultural da região.

A sociedade tupinambá, por vezes, era marcada pela disputa entre aldeias, captura de inimigos, rituais de antropofagia e poligamia. As leis francesas impactaram os rituais antropofágicos. Os franceses buscaram catequizar os índios, atribuindo-lhes nomes cristãos e estabelecendo alianças contra os portugueses. Realizaram também trocas de mercadorias. Exploraram os rios Mearim e Gurupi, iniciaram plantação de algodão, tabaco e cana. Os portugueses, no entanto, expulsaram os franceses com ajuda dos tupinambás de Jaguaribe (Ceará), acunhadados ao cristão-nomo marroquino Martim Soares Moreno; e viriam a conquistar o Maranhão em 1615. Abusos cometidos pelos portugueses, alguns colonos iludidos com falsa propaganda de Simão Estácio da Silveira, levaram à revolta dos tupinambás, em 7 de janeiro de 1619, no Pará com o cacique Guaimiaba ( Cabelo de Velha; e em Cumã (Maranhão), com o cacique e pajé Pacamão. Na dura repressão ao revoltados, Bento Maciel Parente e Pedro Teixeira, cometeram um genocídio deplorado inclusive por autoridades coloniais da época, o rio Gurupi cobriu-se de sangue, muitos tupinambás foram arrastados ao cativeiro.

Pouco mais tarde, a partir de 1620, iniciou-se povoamento com colonos trazidos de Pernambuco e de Portugal, tendo a povoação de São Luís começado a crescer principalmente com base na cana de açúcar. É preciso aprender a ler o que está escrito e também o que resta na memória desta gente mestiça: A mensagem dos começos do mundo, não só dos 4.000 anos canônicos da civilização abraâmica, mas ir ao coração da mãe África e suas diversas diáspora até chegar a Ásia e desta última para a povoação das Américas, há dez mil anos atrás. Ou mais. 













"Silhuetas de Maiandeua / PA" - foto do fotógrafo e cineasta Frederico Lobo (Salvador - Bahia: blogue Santa Fotografia, 11/08/2010): o artista captou o espírito encantado do lugar pertencente ao complexo eco-cultural da Amazônia atlântica, onde antigamente o sol atou sua rede de dormir. 

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