Uma viagem ao país da Princesa (3)

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Chico Braga, com seu carimbó praiano pau e corda, tornou-se ícone da ilha de Maiandeua, viveu a dura lida de pescador, encantou-se e agora mora no outro mundo da mãe natureza com a Princesa e outros seres encantados (foto Pierre Azevedo).


Chico Braga (Francisco Paulo Monteiro Braga, Magalhães Barata, 1950 - Algodoal, 2015) morou na praia da Princesa em companhia de seus fiéis cachorros. As pessoas dizem que ele morreu de repente, do mesmo modo como repentinamente fazia versos de carimbó praiano. Todavia, quem penetrar o profundo mistério da vida dirá que Chico Braga não morreu, mas na verdade se encantou e viajou para o país da Princesa, passava de meio dia da segunda-feira, 7 de setembro de 2015. 

Vejam só, Chico Braga passou desta para melhor na ressaca do feriado da Independência nacional! Tinha ele 65 anos de idade, 40 anos de pescador e cantador de carimbó na ilha de Maiandeua. Terá vindo ao mundo com o irmão gêmeo, apelidado Boi; por mãos de parteira perita no rio Cuiarana (Magalhães Barata), perto do Furo da Mocooca e da ilha de Maiandeua entre rios Maracanã e Marapanim. Nestas paragens ribeirinhas gente nasce, vive e morre sem fronteiras demarcadas que nem peixes, pássaros e bichos da natureza vagando na maré com o tempo da lua, os ventos e estações da chuva. Tudo isto que o carimbó praiano canta com incontida paixão e as cidades perderam já faz muito tempo. É por isto que chegam turistas de várias partes do mundo, em busca do tempo perdido em lugares que nem a Algodoal, onde a gente desperta com a passarada antes do sol se levantar.

Chico como os mais da sua sina, por necessidade de sobrevivência às vezes pescou longe da terra até o Cabo Norte (Amapá) e a famosa Guiana... Quem diz é o contador de causos Zé Gudengo (José Cristo de Souza, 70 anos), velho camarada de Chico Braga nas lidas da pesca no Salgado e na sina ladina do carimbó praiano. Juntos estes dois, paresque, tomaram rios de aguardente e fumaram birra a fim de suportar a peia... No fim da história, os dois amigos brigaram por causa da "maldita". Zé Gudengo conta, corajosamente, que ele quase se acabou afogado em cachaça, caiu na doença, mas graças a Deus se levantou e queria ajudar o camarada a largar aquele fado: Chico, porém, era muito teimoso e rabugento, rompeu a velha amizade com Gudengo dizendo com soberba: "quem bebe morre, quem não bebe morre também"... Expulsou seu camarada com maus modos, "me deixa só com meu carimbó. Vai embora!"... Gudengo disse-lhe, então, "mano, eu não quero briga, vim fazer um trato"... "Que trato?", perguntou o outro. Gudengo respondeu, "quem de nós dois morrer primeiro o outro faz e canta um carimbó de despedida na hora do enterro ". Chico aceitou o desafio na hora, todavia cortou a conversa mandando Gudengo não voltar nunca mais a falar com ele. Dito e feito: Chico Braga morreu e Gudengo compôs o carimbó da despedida e cantou conforme o prometido, defunto de corpo presente na igreja de São Pedro da vila de Algodoal, batuque alto e o povo cantando junto e misturado. Poderia ter melhor homenagem para o novo ser encantado daquele lugar mágico?

Tal qual como no romance "O Velho e o Mar" de Ernest Hemingway, Chico pescava grandes espadartes e tubarões com uma coragem que causava inveja. Puxar tubarão em terra não é pra qualquer um! Por acaso, em fins dos anos 70 achando-me eu em Algodoal com meus colegas da Comissão de Limites (PCDL) Pedro Dias e Raimundo Mendes, fomos sabedor em conversa na taberna do senhor Fausto Teixeira, que este um estava de viagem formara à cidade de Maracanã na manhã seguinte. Podia seu Fausto nos dar passagem na lancha até lá? Ao clarear do dia já estávamos nós, rente como pão quente, no porto do Mamede prontos a pegar a lancha. Esta foi a última vez que vi seu Fausto Teixeira, o maior comerciante que a vila de Algodoal teve em seus idos, patrão de muitos pescadores e salgadeiras de peixe para abastecer famílias de lavradores das colônias mais próximas. 

Foi no dito amanhecer na ponta do Mamede que vi o maior tubarão jamais visto por mim. Quem pegou o bichão? Chico Braga, disseram-se. Era coisa assim era banal na boca daquela gente. Eu estava boquiaberto... O peixe estava dependurado na ponta do mastro da canoa, a cabeça presa ao moitão no alto do mastro enquanto o rabo passava pelo lado de fora da embarcação pra dentro d'água. Perguntei a seu Fausto como se consegue fisgar um tubarão grande como aquele e ele me disse que precisa ter "anzol de tenda" (aço) e arranjar um bom pedaço de vergalhão de ferro capaz de aguentar a dentada do animal quanto se sente preso no espinhel. Era uma pesca muito arriscada, claro, carecia muita paciência para deixar primeiro o peixe morrer de cansaço e linha "americana" reforçada e bem amarrada na boia. Naquele dia foi quando, pela primeira vez, pisei o chão da vila do 40 do Mocooca, de passagem para Maracanã.

Depois de seguir viagem até o fim do estirão do Furo da Mocooca, guardei na retina a paisagem do lindo amanhecer na baía de Maracanã: a densa revoada de gaivotas dando em riba do cardume de sardinhas. Os raios do sol nascente pintavam de dourado as águas agitas e os peixinhos voavam no espaço como se eles tivessem as asas do vento. Nunca irei apagar esta inesperada paisagem de minhas lembranças, agora novamente ativadas quarenta anos atrás sob a sombra do jambeiro plantado pelo senhor Fausto Teixeira da vila de Algodoal. Acho também que nunca mais se pescou tubarão ali como no tempo de Chico Braga. Até mesmo o bom carimbó pau e corda agora está rareando, com a forte presença do reggae, que embora compatível com o lado afrodescendente da comunidade visitante, ritmo jamaicano em Algodoal, acaba sendo excessivo. Entretanto, nada comparável ao abuso do tecnobrega que invade a ilha em alto e mau som noite adentro até sol raiar abafando o velho amigo rumor do antigo mar. 

Dizem que a causa dessa cacofonia infernal é a droga pesada que vem de fora e nada tem a ver com o velho "fumo de Angola" (Cannabis sativa), a popular birra, liamba, diamba ou maconha trazida pelos escravos antigamente, e sem a qual aquela sofrida gente não se aventura ao mar nem tem peixe frito pra ninguém. Zé Gudengo é um herói discreto, ele me conta causos de Chico Braga. Enfrentou e sobrevive ao impiedoso alcoolismo, hoje faz carimbó de cara limpa, mas precisou se internar para tratamento com ajuda dos Alcoólicos Anônimos: cachaça e maconha não são pra todo mundo, assim como açúcar não é para quem sofre de diabetes... Carece uma certa sabedoria para ter domínio de si mesmo e não se deixar fisgar pelo vício. Nos velhos tempos, Chico, Gudengo e seus camaradas da pesca artesanal viajavam para o grande mar e voltavam para a casa com o de comer, tal qual taquerê ou socó-dorminhoco (Nycticorax nycticorax) mariscador, que sai de noite e volta para o ninho ao alvorecer.
  
Teaser da pré-produção do documentário "Mestres Praianos do Carimbó de Maiadeua", de Arthur Arias Dutra (Ministério da Cultura).
Quem entendeu bastante desta sociologia ribeirinha da Amazônia atlântica foi Mestre Vicente Juarimbu Salles (27/11/1931 - 07/03/2013), nativo daquelas bandas, ele nasceu na vila Caripi (Igarapé-Açu), banhado depois do parto com água da bacia do Maracanã e faleceu distante do berço natal, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro; deixou importante contribuição à Antropologia Social paraense, com enfase na música popular. Vicente Salles contou que ele quando jovem repórter do jornal A Província do Pará participou da Academia do Peixe Frito, no Ver O Peso. E que se aconselhou junto ao poeta Bruno de Menezes (1893 - 1963) a respeito do início das suas pesquisas de campo, tendo o poeta da negritude recomendado-lhe começar por Algodoal. Com isto, quero frisar a inteira pertinência da Academia do Peixe Frito com a Criaturada grande de Dalcídio na universidade da maré, traço comum da cultura popular paraense no Marajó e no Salgado.  

Chico Braga deixou legado como uma das principais referências do carimbó na região Norte, participou com destaque do documentário "Mestres Praianos do Carimbó de Maiandeua", de Arthur Arias Dutra, mostrando a singularidade do gênero musical.


Chico Braga teria supostamente sofrido infarte e foi encontrado sem vida, por volta das 14 horas. Na noite anterior, fez sua derradeira apresentação no Mupéua, bar da ilha. Artistas e produtores culturais da capital paraense foram comunicados da morte e a notícia começou a circular pelas redes sociais. O músico foi reconhecido tardiamente, gravou seu primeiro CD em 2011. Também foi tema de documentário, lançado em abril de 2015. “Mestres Praianos do Carimbó de Maiandeua”, de Arthur Arias Dutra, foi lançado com exibições em Algodoal, registrando os principais mestres do carimbó, com destaque para Chico Braga, que era a principal referência cultural da região e influenciou gerações. “Tribo de Maiandeua” foi o nome dado ao CD do mestre, que fez parte do box “Casarão”, que ainda abrigava trabalhos de artistas vinculados ao coletivo Casarão Cultural Floresta Sonora, como Juca Culatra e os Piranhas Negras, Calibre, Strobo e Metaleiras da Amazônia, disco produzido pelo músico Léo Chermont, compositor, músico e fabricante de instrumentos. Chermont considerava Chico um “artista marginal” e passou três anos para convencê-lo de gravar o álbum em estúdio" ( cf. Gustavo Aguiar/Diário do Pará).

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