Marinatambalo: os primeiros negros da terra e o romanço iberiano Marajó.

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"negro da terra", assim os escravagistas chamavam ao índio escravizado enquanto
o escravo africano era chamado genericamente "negro da Guiné". Vem do espanhol
"negro" sobre a condição de escravo, preto é a cor da pele de uma pessoa.



"O país real, esse é bom, revela os melhores instintos: mas o país oficial, esse é caricato e burlesco" - Machado de Assis.


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa. 

"Na busca por novos campos de estudo no ensino de História, nos deparamos com o conceito de literacia histórica desenvolvido por Peter Lee e seus apontamentos sobre a alfabetização histórica já nos anos iniciais. Vários autores discutem essa temática relacionada à contextualização de vivências locais e configurações identitárias do referido meio, onde se evidencia o desenvolvimento de competências que contribuem para o aprimoramento do pensamento histórico, além de favorecer a elaboração de raciocínios cada vez mais complexos." 
Eliane Candoti / O ensino de história nos anos iniciais: apontamentos no processo de construção do conhecimento histórico.



A GEOGRAFIA SERVE PARA FAZER A GUERRA.
PORÉM A HISTÓRIA PODERIA CULTIVAR A PAZ?


Em primeiro lugar, quero lembrar a Revista Iberiana com meu ensaio Novíssima Viagem Filosófica, publicada pela Secult: Belém, 1999; na qual explico a diferença entre ibérico propriamente dito e aquilo que eu considero iberiano, algo de origem ibérica que se transforma e evolui dialeticamente com a diversidade cultural do, assim chamado, Novo Mundo. O neologismo me ocorreu numa tarde infindável de verão em Brasília, anos 80, quando o som de bate estaca na construção do anexo, apelidado "bolo de noiva", do Palácio Itamaraty quebrava a calma da Esplanada dos Ministérios. Era para mim como o eco distante do trabalho de estaleiro na construção das naus do descobrimento dos caminhos marítimos, que até no Planalto Central do Brasil chegara, quem sabe remontando o rio São Francisco...

O romance Marajó de Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 10/01/1909 - Rio de Janeiro, 16/06/1979) - originalmente escrito sob título de Marinatambalo -, foi recebido como o "primeiro romance sociológico brasileiro" por Vicente Salles que também identificou na obra o tema do incesto do romanço medieval ibérico Dona Silvana. Vejo aí o que se pode chamar, então, um exemplo de cultura iberiana. A psicanálise encontra em Marajó prova da teoria da libido elaborada por Sigmund Freud (1856-1939), romance escrito por acaso no ano da morte do descobridor do Inconsciente. 

Na opinião de Willi Bolle, professor de literatura moderna na USP, entre as dez obras do Ciclo Extremo Norte (1941-1978), Prêmio Machado de Assis (1972) de Dalcídio Jurandir, o romance Marajó (1947), contém a maior diversidade de informações sobre a ilha do Marajó. Romance documental duma modalidade de escrita da história, ao mesmo tempo ficcional, que retrata as relações de poder entre senhores de terra e pobres despossuídos de tudo. A obra apresenta um utópico projeto social no rio Paricatuba (Ponta de Pedras), pelo protagonista Missunga (apelido familiar do personagem Manuel Coutinho), herdeiro único do latifundiário coronel Coutinho. Com esta trama o romancista apresenta tema relevante para as ciências sociais, estudos literários e etnográficos.

O nome original do romance abre para histórica passagem na região amazônica, em 1500, do navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón (Palos de la Frontera, 1462 - 1514). Piloto e sócio de Colombo no descobrimento da América (12/10/1492), el chegou ao Brasil no dia de São Sebastião, 20 de janeiro de 1500, ao largo do cabo de Santo Agostinho (Pernambuco). Sabia, certamente, que aquela costa caia na posse de Portugal conforme o tratado de Tordesilhas de 1494. Por isto, em vez de tomar posse da terra para Castela, aproou para norte e foi encostar na ponta do Mucuripe (Fortaleza, Ceará), para tomar água e abastecer sua caravela Niña, a mesma que ele comandou na viagem de 1492. Do Ceará prosseguiu a jornada quando viu o grande rio Santa Maria de la Mar Dulce (Amazonas), onde assaltou uma ilha levando dela os 36 primeiros "negros da terra" da América do Sul.

Além dos 36 índios cativos a caravela Niña levou a bordo uma mucura (Didelphis marsupialis ( Linnaeus, 1758) com filhotes, a qual o navegador em seu relato chamou de "animal monstruoso"... O pobre animal e seus filhotes não resistiram a viagem por falta de alimento. A nau entrou no rio Oiapoque, chamado depois "rio de Vicente Pinzón" dentre um longa controvérsia com os franceses sobre limites da Guiana francesa, querendo estes fosse o rio Amazonas, o dito rio de Pinzón. Daí a Niña fez vela rumo à ilha Hispaniola (depois chamada São Domingos e hoje República Dominicana e Haiti), no mar do Caribe. Pinzón escreveu ter compreendido dos índios que levava como escravos que o nome da ilha assaltada na foz do rio Santa Maria de La Mar Dulce (Amazonas) era Marinatambalo

Na cartografia amazônica do século XVI, organizada por Isa Adonias, figura uma sugestiva Punta de los Esclavos que me faz pensar nos "marinatambalos" de Pinzón. Quem sabe numa escola de ensino fundamental de qualquer das Ilhas de Fora do arquipélago do Marajó, uma professora ou professor de História, não faria uma bela provocação de literacia (letramento) a fim de alcançar a alfabetização histórica dos alunos ribeirinhos? Quem deles agora poderia imaginar o passado assalto da Niña, o susto medonho dos índios desprevenidos daquela assombração, pior do que as piores estórias de cobra grande... Essa criança ribeirinha despertada do feitiço da antiga lenda para o desafio da história do futuro, poderia viajar na música de Paulo André Barata e querer saber como, quando e porque o país que se chama Pará houve no Caribe seu porto de mar...


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ilha Hispaniola, no mar do Caribe, onde os espanhóis estabeleceram o centro da conquista e para onde foram os 36 índios marajoaras escravizados por Vicente Pinzón, em 1500.

O caboquinho como, outrora, eu no bairrozinho Fim do Mundo, da vila Itaguari (Ponta de Pedras) haverá de querer saber quem inventou o mundo. Nesta demanda, antes de entrar na escola o letramento inicial das crianças vem dos senhores e senhoras mais velhos, contadores da história local: "retóricos" de aldeia, no dizer sisudo de meu mestre caboco Agostinho Batista, da vila do Muaná, confrade da Academia do Peixe Frito... Convém dizer que esta nossa universidade da maré é cruzamento da rede neuronal da Criaturada grande com a modernidade da rede mundial de computadores. Daí nasce a educação à distância (EaD), permanente: nela só não aprende e ensina quem não quer ou não está interligado à rede. 

Mas que diabo é esta tal de "literacia"? A palavra inglesa 'literacy' que Paulo Freire mais cedo tratava, brasileiramente, por letramento - a capacidade de ler e escrever - seu significado preciso segundo David Mallows, está sujeito a um debate sem fim sobre a literacia de adultos. A respeito do que realmente querem dizer quando falam de literacia. Eu tenho medo de estrangeirismos que me pelo, pois dessa velha colonialidade sem fim é que nascem as pavulagens acadêmicas pra inglês ver e as piores inglesias que fazem o povo acreditar que não temos cabeça para nos desenvolver a nós mesmos sem as bençãos do velho mundo ocidental.

Quem disse que índios e negros não eram letrados?
Ler e escrever são necessidades fundamentais no mundo de hoje. Não só para estudarmos mais, como também para nos ajudar a entender e a nos envolver com o mundo que nos rodeia. Neste sentido, o letramento ou literacia é a arte contextual, tudo que fazemos é contextualizado dentro de um determinado território como espaço de memória. Todos nós usamos letramentos: mais ou menos, como os fios d'água e igarapés se formam e vão confluindo uns com os outros até formar os rios e todos convergir no Mar-Oceano. Dependendo do nosso grupo étnico, social ou profissional as atividades em que nos envolvemos e os diferentes contextos sociais e institucionais exigem nossa capacidade de ler e escrever.

Dez mil anos de ocupação da Amazônia pelo Homo sapiens tapuya (classificação curiosa do homem amazônico pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (Salvador-Bahia, 27/04/1756 - Lisboa-Portugal, 23/04/1815) mostram que o letramento do paleo-Índio fica provado pelas pinturas rupestres. E a arte cerâmica da ilha do Marajó aponta a um tipo de iconografia dispersa em dez grandes museus nacionais e estrangeiros que ainda desafia a inteligência dos pesquisadores, com sua forma de escrita ideográfica a exemplo de chineses, japoneses e outros povos antigos. O criador do Museu do Marajó - primeiro eco-museu brasileiro em meu entender - , padre Giovanni Gallo (Turim-Itália, 1927 - Belém do Pará, 2003) suspeitou que a iconografia marajoara é uma forma de escrita. A arqueóloga Denise Schaan (Porto Alegre, 1962 - 2018) avançou nesta hipótese aventando ser uma urna funerária de cerâmica marajoara algo semelhante a uma gestalt, na qual a figura individualizada numa pessoa de alto nível, como uma matriarca ou cacique, por exemplo; era homenageada pelo fundo e contexto de sua ecocultura conforme a cosmovisão da sociedade local. É claro que a literácia dos artistas ceramistas de mais de mil anos atrás exigia a "alfabetização" na tradição oral.

Numa sociedade analfabeta numa região como Marajó de hoje, a iconografia marajoara, as recriações do Museu do Marajó, o romance dalcidiano, a história social de Agenor Sarraf e Denise Schaan, são elementos de um letramento indispensável. Voltando à vaca fria, eu penso que, afinal de contas, num rápido exercício de história comparativa a gente poderia pensar que aqueles cativos de Marinatambalo fossem mais prontamente de etnia aruã, da antiga "aldeia dos Aruans", chamada algum dia de Santo Antônio na capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), elevada em Vila de Chaves (1758), por édito do Marquês de Pombal, no Diretório dos Índios (1757-1798). 

O que aconteceu então aos 36 "negros da terra" arrancados da ilha do Marajó - Analau Yohynkaku, Ilha dos Nheengaíbas, dos Aruans ou Ilha Grande de Joanes -, e levados por Pinzón para o cativeiro do Haiti? É claro que o romancista de Marajó conhecia a história de Pinzón em sua passagem pela ilha Marinatambalo, Marinatambal, Maritãbo? Quem sabe a toponímia galibi e conhece a histórica guerra antropofágica destes com os Tainos, deve lembrar de Iracubo, Organabo , Walymapo e outras localidades costeiras das Guianas com terminações semelhantes (na acepção de "lugar de")... O padre Gallo com "cacos de índio", a arqueóloga Denise Schaan decifrando segredos da iconografia marajoara; o diletante José Varella remexendo cacos de história antiga... São artífices do letramento do futuro, visto que o hoje interessa muitas vezes se explica pelo passado distante.

Na irritante universidade da maré, que nem muriçoca que alerta sobre o risco da malária e provoca a pobre gente das palafitas a respeito da necessidade de bom mosquiteiro; os meus humildes apontamentos de alfabetização histórica da Criaturada grande são uma gota d'água no mar do Analfabetismo crônico. Mas eu não desisto nem me furto ao dever de ensinar este pouquinho e também de me esmerar em aprender com quem sabe um pouco mais que eu em qualquer matéria. Sobretudo com os mestre da dita cuja universidade ribeirinha, que são os índios, os pretos mocambeiros e os cabocos mais velhos.

O padre grande dos índios, Antônio Vieira já dizia, em carta ao rei datada de 29/11/1659, que na boca do rio das Amazonas existe uma ilha maior que o reino de Portugal: de fato a "ilha" (mesorregião) do Marajó conta 104 mil quilômetros quadrados e o antigo país dos lusitanos, hoje a moderna República Portuguesa tem lá, em total 92.090 quilômetros quadrados. Em compensação vai muito bem obrigado com a sua população de mais de 10 milhões de habitantes, dos quais 93,3% de alfabetizados. Já o pobre povo marajoara soma cerca de 500 mil moradores, no rico e histórico território com a antiga Cultura Marajoara de 1600 anos de idade flagelada por um mísero IDH com 50% de analfabeto, nove foras os analfabetos funcionais de costume.

Aquela carta do padre Antonio Vieira conta que no dia 27 de Agosto do mesmo ano, fizeram as pazes no "rio dos Mapuaises" [Mapuá, Breves] os bravios Nheengaíbas (umas sete etnias Nuaruaques, confederadas pelo cacique Piié Mapuá, com os caciques dos Aruãs, Anajás, "Guaianases"[Guaianá], Pixi-Pixi, Cambocas e Mamaianás); "índios cristãos" [Tupinambá] e portugueses vindos de Cametá com os padres. Disse o padre que com as ditas pazes e os índios do Marajó por amigos e aliados dos portugueses, o Pará ficava seguro. Ao contrário, tendo os mesmos nheengaíbas por inimigos o Pará seria presa fácil de qualquer reino estrangeiro adverso a Portugal: insinuava a Holanda herege diretamente, que estivera em guerra com os portugueses entre 1623 a 1647. Já se sabe que sem remos e arcos dos antropófagos Tupinambás não teria existido uma Amazônia portuguesa (1615-1823) e, consequentemente, uma Amazônia brasileira.

A história é longa e a correspondente historiografia mais pantanosa de que o "apogeu igapóreo do planeta", conforme Eidorfe Moreira, em Os igapós e seu aproveitamento, com referência à zona úmida da ilha do Marajó, especificamente o município de Breves. Geografia complexa, onde o homem usava braços e remos em lugar de pés e pernas para se locomover (ver História do Futuro, padre Antônio Vieira). Até a velha canuá feita de tronco de árvore dos antepassados aruaques, virou "montaria" (canoa com casco acrescido de duas falcas). A ubá tupi ainda hoje permanece com nome de "casco", a canoa montaria é maior e hoje evoluiu com o motor de popa chamado "rabeta"...

Muito poderá falar um professor de História numa escola ribeirinha. A arqueologia de Denise Shaan, na obra de divulgação Cultura Marajoara (2010), a história social de Agenor Sarraf, À Margem dos "Marajós" (2006), por exemplo; Giovanni Gallo, Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara e tantos mais autores e obras fundamentais para a alfabetização histórica desta gente desde o ensino fundamental. Ora, Ivo viu a uva, adoeceu de tanto beber refrigerantes industrializados, se duvidar "aprendeu" a misturar açúcar no "vinho" de açaí. Mas não ouviu falar de Paulo Freire e nem sequer de Dalcídio José Ramos Pereira, filho de dona Margarida Ramos e do capitão Alfredo Nascimento Pereira, mais conhecido pelo nome literário de Dalcídio Jurandir.

No ano de 1939, na ilha do Marajó, antiga aldeia de índios Yona (donde a corruptela Joanes) ou Sacaca, transformada em vila de Salvaterra; o "índio sutil" Dalcídio Jurandir depois de curtir cadeia no famigerado Presídio São José por crime político, deu vida a seu imortal alterego Alfredo no romance seminal Chove nos campos de Cachoeira e, no mesmo ano e lugar, concluiu aquele retiro escrevendo também Marinatambalo na mesma fornada. 

Vindo de Gurupá em projeto, o Chove levou ao Marinatambalo e ambos saíram inéditos de Salvaterra para o Brasil e o mundo na bagagem do escritor a bordo de canoa à vela atravessando a famosa baía do Marajó; deveras perigosa na opinião do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, célebre autor da Viagem Philosophica (1783-1792), ver a separata Noticia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó (1783). O jovem Dalcídio vagou com os rascunhos do Chove debaixo do braço entre as Ilhas e Belém do Pará, lugares de memória com os quais ganhou o primeiro prêmio literário, Dom Casmurro. Em 1978 - sua terra natal Ponta de Pedras completava 100 de emancipação municipal - ele publicou Ribanceira, último romance da carreira escrito no exílio do Rio de Janeiro, com as memória de Gurupá e do fim da belle époque da Borracha amazônica. Lá onde iniciou o rascunho da saga de Alfredo, o criador do romance marajoara morreu em 1979, porém a odisseia continua. 

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