entre cacos de memórias e solidões dos tesos saqueados.


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O chalé do romance "Chove nos campos de Cachoeira",
de Dalcídio Jurandir (1909-1979).



“Quando eu morrer levem-me para Cachoeira, enterrem-me debaixo da folha miúda (a minha árvore, de fronte do chalé, toda a minha infância). Quero ficar ali, perto do rio e perto de casa, debaixo daquela sombra, entre ao ninhos e as estrelas.
Parece que todos os meus sonhos ficaram pendurados naqueles ramos, todo o meu primeiro deslumbramento. Eis porque minha saudade me faz ter esse desejo romântico ...”

Dalcídio Jurandir, setembro de 1932




Chove nos campos de Cachoeira e Dalcídio já morreu... Por falta de memória, não o enterraram debaixo da Folha-Miúda na beira do rio em frente ao chale, conforme o desejo romântico de juventude que, por fim, nem o autor de "Chove nos campos de Cachoeira" se lembrou de reiterar. Melhor assim.

Os restos mortais do romancista da Amazônia jazem no mausoléu dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL), merecendência do índio sutil por ganhar o Prêmio Machado de Assis (1972). Anos da Ditadura, diga-se de passagem, significativo do comunista premiado a instâncias de seu camarada Jorge Amado. 

Ano seguinte do prêmio literário do escritor marajoara, o padre Giovanni Gallo por necessidade e acaso inventou com "cacos de índio" que o caboco Vadiquinho lhe presenteou, um tanto por espírito de provocação, o primeiro ecomuseu brasileiro contemporâneo ao primeiro do mundo, na França. Não é pouca coisa! Masporém, aí reina a ironia da história. O fato inacreditável de que o padre morreu, 30 anos depois de criar O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari (1973-1983), sem notícias de Hugues de Verine e vice-versa. Somente agora, entre chuvas e esquecimento, a gente está fazendo arqueologia do tal "ecomuseu" do lago Arari...

A sorte da memória é que o padre escreveu tudo: primeiro em reportagens na imprensa da capital, com que Maria de Belém Menezes, filha do poeta Bruno de Menezes e correspondente fiel de Dalcídio, deu as notícias do que se passava nas funduras do Marajó velho de guerra. 

Lá no Rio de Janeiro distante, as reportagens do Gallo mexeram com as raízes do romancista de Marajó, primeiro romance sociológico brasileiro na abalizada opinião de Vicente Salles. Imediatamente, veio o recado através de Maria de Belém: "Que o padre tire uma coleção de reportagens e faça um livro que será retrato da terra e da gente de Jenipapo", escreveu Dalcídio. Esse livro veio a ser o Marajó, a ditadura da água. Depois saiu o auspicioso Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara, no qual o visionário se expõe completamente. Para, afinal, extravasar sua enorme amargura na autobiografia O homem que implodiu. Quem era próximo do padre insubmisso teria ouvido confidência dele dizendo que pensou dar título de "o homem que virou bosta" ao livro. Pelo contrário, ninguém pode concordar: o padre dos pobres pescadores acusados de roubo de gado de ricos fazendeiros virou santo por édito de São Pedro Safadinho segundo a voz do povo. E já se sabe que a voz do Povo é a voz de Deus.

Bem que o  preto Bibiano profetizou a seu neto mulato, Alfredo (Passagem dos Inocentes); dizendo na curta caminhada para o igarapé na mata próxima à vila, entre pés de miriti parrudos, que o moleque calçando bostoque (botina) iria longe nos caminhos do mundo. Dito e feito! 

Chove sobre a distante campa carioca de Dalcídio, masporém seu alter ego voa no azul da memória a par de araraúnas extintas no rio das araras. Ó, Arari! Quem te viu e quem te vê? Três casas e um rio numa cidade invisível no território da memória. Uma imensa ilha encantada na boca do maior rio do mundo.  Ilhas, melhor dizendo, que sobem o grande rio-mar e ocupam as varjas de ambas margens da terra-firme. Eita mundão! Geografia da criaturada grande habitante, sobretudo, da terceira margem do rio entre caruanas e o reino encantando da cobra grande.


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Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro.

Verdade seja dita: ainda bem que o corpo morto do índio sutil foi entregue à terra fria lá na antiga pátria de Arariboia. Posto que, na desmemoriada terra dos Marajós, sob a estrelada Folha-Miúda face ao velho chalé batido de chuva e vento, arruinado pelo abandono dos homens analfabetos, a dissidia dos letrados e o banzeiro inconsciente da mítica Boiuna; a correnteza do rio teria levado, com beira, a árvore da infância e os restos mortais do escritor. 

Só o espírito libertário de Alfredo, no voo escuro das araras azuis no rio imaginário, vive na magia do caroço de tucumã e poderá quebrar o encanto e vingança da cobra grande mãe da ancestral Cultura Marajoara. 

Canções de Alinhavo

Chove nos campos de Cachoeira

e Dalcídio Jurandir já morreu.

Chove sobre a campa de Dalcídio Jurandir

e sobre qualquer outra campa, indiferentemente.

A chuva não é um epílogo,

tampouco significa sentença ou esquecimento.

Falei em Dalcídio Jurandir

como poderia falar em Rui Barbosa

ou no preto Benvindo da minha terra

ou em Atahualpa.

Sobre todos os mortos cai a chuva

com esse jeito cinzento de cair.

Confesso que a chuva me dói: ferida,

lei injusta que me atinge a liberdade.

Chover a semana inteira é nunca ter havido sol

nem azul nem carmesim nem esperança.

É eu não ter nascido e sentir

que tudo foi roto para nunca mais.

Nos campos de Cachoeira-vida

chove irremissivelmente.
 
Carlos Drummond de Andrade.
Livro Corpo - 2º edição - Editora Record, 1984.


Com esse seu jeito cinzento de cair, a chuva de Cachoeira do Arari cai indiferente sobre a tumba do padre Gallo, o homem que implodiu por causa do Museu do Marajó plantado por acaso como ecomuseu no fim do mundo. Ou seja, na beira do lago Arari, o lugar dos lugares para o prodígio de semear cacos de índio e ver renascer uma cultura perdida... Rebroto da primeira ecocivização amazônida na ilha fantástica do homem "malvado" dito Marajó. Marinatambalo. Ilha dos Nheengaíbas. Ilha dos Aruans. Ilha Grande de Joanes [dos Yona]. Aliás, Analau Yohynkaku na extinta língua aruã.

Agora foi a vez de Denise Shaan dizer adeus a esta gente. Ela foi-se embora, prematuramente, em meio as água grandes de março. Quem há de decifrar a escrita da cerâmica marajoara agora que a gaúcha marajoara foi embora? O ítalo-marajoara Giovanni Gallo no ditame popular foi reencarnado na memória de um grande pajé. Dalcídio Jurandir revive hoje na figura de Alfredo. A ciência de Denise há de florescer na escola de seus alunos, como novas árvores da mata ciliar, pássaros reintroduzidos na futura Reserva da Biosfera Marajó-Amazônia e o sonhado repatriamento da cerâmica marajoara arqueológica. 

O gado do vento corre campo afora, malhada espantada pelo Boi Encantado. Mas, como diz o poeta a chuva não é o fim. Sim, o sol há de brilhar outra vez.

"... a reinterpretação da Arte Marajoara é o maior sinal de que o vínculo entre o presente e o passado foi estabelecido, e que a tradição, agora reinventada, finalmente cumpre seu papel de produzir identidade e história.
Giovanni Gallo era, mais do que um agente da fé, da cultura e da ciência, um visionário."
Denise Pahl Schaan
Belém, fevereiro de 2005.
Prefácio da 3ª edição de Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara, de Giovanni Gallo.





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A velha casa remanescente do chalé de Dalcídio Jurandir 
com placa alusiva ao Centenário de nascimento do escritor 
e faixa com desejo romântico dele ser enterrado sob a
 árvore Folha-Miúda na beira do rio confronte ao dito chalé.  
  

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