A flauta de Rodolpho

Resultado de imagem para imagem associação musical antonio malato


Hoje Clarinha completa dezoito anos de idade, ela é minha primeira neta entre cinco. Uma linda menina que desde criança revela sensibilidade musical e, inclusive, se sai bem como baterista. Por isto seus tios Ana e Moa a presentearam com uma flauta transversal de particular estimação de ambos. Gesto do casal que muito sensibilizou o avô, a avó e tia que assistiam a significativa oferta durante café da manhã da aniversariante, perfeitamente surpresa e emocionada. Detalhe importante, a avó em apreço e seu filho Moa são padrinhos de batismo de Clarinha.

As circunstâncias do presente decorrem do fato de Ana ter adquirido a flauta com seu primeiro salário do primeiro emprego dela. A fim de surpreender Moa, apaixonado por música que é o segundo grande amor dele, depois da companheira Ana Rosa e suas duas filhas, Ana Beatriz e Ana Sophia. Não foi fácil, pois, Ana e Moa se desprenderem desta flauta tão sentimental. Acontece, que a aniversariante também se chama Ana e é afilhada do compositor e violeiro destas quatro Anas. Tem ele seu violão confidente e a sanfona maneira que era do tio Sebastião e suas primas de Brasilia, filhas do pranteado Tião deram em recordação ao primo parauara cantador. 

Foi aí, então, que me lembrei da flauta de meu velho pai caboco, seu Rodolpho Antonio Pereira. Este, quando jovem, órfão da índia mangabeuara Antônia Silva, comprou de um amigo uma flauta e com ela tirou alguns solfejos e até tocava uma valsinha chamada "Perfeito Amor", segundo me contava com bom humor. Ora, isto por meus cálculos teria ocorrido talvez quando Rodolpho havia, pouco mais ou menos, uns vinte anos de idade. Ou seja, cerca de 1924. 

A antiga vila de Ponta de Pedras é notável por sua tradição musical e sempre teve Banda com famosos mestres e músicos a cada geração até hoje com a excelente Banda Sinfônica Antônio Malato. Da valsa eu apenas guardei o nome e agora, para escrever esta memória, fiz busca no Google: a coisa mais plausível que achei foi "O amor perfeito: Valsa n. 4 distribuída com a Marmota na Corte: Composta por Francisco José Lopes e dedicada a sua consorte (1851)". A Marmota na Corte foi uma revista carioca que circulou entre 1849 e 1852, estampando partituras. Resta saber se, por acaso, foi esta de fato a melodia que o filho adotivo de sua irmã mais velha, dona Sophia Pereira, aprendeu a tocar na flauta.

E tudo estaria bem, quem sabe, se Rodolpho Antônio - Antônio para lembrar o nome da falecida mãe Antônia e Rodolpho de seu padrinho alemão, um certo Rudolf compadre de seu paí Alfredo Nascimento Pereira -, bisavô de Clarinha acabasse se tornando flautista. Porém, quis o destino que o anterior dono da flauta morresse acometido de tuberculose galopante! Já a tuberculose havia marcado a família Pereira, ceifando a vida do avô de Rodolpho, o voluntário da Pátria da vila de Benfica, Raimundo Pereira, patriarca da família. Naquele tempo, a tuberculose era a "peste branca" matava mais que AIDS em nossos dias... 

Sophia aconselhava Rodolpho a se desfazer da flauta, ela tinha medo que o filho pegasse a doença tocando o mesmo instrumento do tuberculoso, ele era um rapaz de saúde frágil com sequelas provavelmente do parto de gêmeos quando morreu sua mãe com o natimorto no ventre, batizado Manuel. A segunda irmã, Lodica (Laudelina Diva Pereira) dizia que o instrumento se poderia botar em água fervente para prevenir a doença. Mas, Rodolpho estava encantado pela música e não queria deixar flauta de nenhuma maneira. 

Em pânico, Sophia tomou decisão drástica e nunca ninguém soube que fim levou a flauta de Rodolpho. Com o tempo, sempre que Rodolpho me contava a história da flauta eu me lembrava do velho chalé de meus avós em Itaguari (Ponta de Pedras), onde esta história se passou. Viajei para longe levando lembranças de dias felizes de infância no enorme quintal que me parecia uma floresta, cheia de sons, odores, cores, formas e mistérios. Lá fora ouvi e conheci a história da ópera do alemão Mozart, A Flauta Mágica. Primeira ópera em língua alemã, uma heresia aos padrões da época e uma rebeldia nacionalista comparável às obras brasileiras de Carlos Gomes e Heitor Villas Boas.

Mais tarde, quando o pai de minha mulher adoeceu, comprei para ele gravação da ópera do nosso irmão alemão maçom Wolfgang Amadeus Mozart, que passou a escutar no leito de hospital com a devida compreensão simbólica, enfim meu sogro Emílio Fernando faleceu em 6 de janeiro de 1990. Desligou-se o aparelho que ficou mudo e nunca mais Mozart foi tocado em nossa casa. Quatro anos mais tarde, foi a vez de Rodolpho Antônio Pereira nos deixar e ficar encantado. Eu não o ouvi mais contar a história de sua flauta e da tocata do Perfeito Amor, que hoje a flauta ofertada à Clarinha me lembrou. Minhas recordações se misturam ao longo de minha vida.

O chalé de meus avós, em Ponta de Pedras, era confortável e austero com amplos quartos e salas, alto pé direito, platibanda, porta alta e dois janelões para a rua, um metro levantado do chão com duas passagens redondas para ventilação abaixo do assoalho onde galinhas e patas chocavam e apareciam com suas no quintal. Um vasto terreno todo arborizado de variadas plantas frutíferas, aromáticas e medicinais; no meio do quarteirão entre dois vizinhos de esquina.

Pelo lado direito o terreno com casarão de dona Domingas Malato e para a esquerda a casa e quintal do Miro Martins, onde veio se levantar depois o Hotel Itaguari; e tudo isto em frente ao campo do Marajoense, que varava para a estrada do Campinho e hoje dá lugar à Catedral da diocese de Ponta de Pedras. Com o passar do largo tempo e a chegada da pobreza da família, o chalé avoengo se arruinou e veio ao chão antes de cair sobre os moradores. No terreno foi feita uma pequena casa de madeira sem pintura no mesmo lugar do antigo chalé. O assoalho da casa ainda era do mesmo acapu recuperado e do antigo telhado deram e sobraram telhas da famosa olaria Arapiranga, compradas no tempo das vacas gordas. 

Quando minha avó Sophia morreu, na verdade tia, meu pai e a tia Lodica mudaram-se de Ponta de Pedras, em 1973, a fim de irem morar comigo primeiro em Brasília e depois em Belém, 1974. A casa de Ponta de Pedras se acabou e a Prefeitura, sem consulta aos herdeiros e indenização, doou o terreno remanescente para construção da sede da Associação Musical Antonio Malato (foto acima). Nada reclamamos dado à finalidade a que se destinava embora nunca ouvimos um muito agradecido a respeito do incidente. Mas não importa, por linhas tortas parece que a flauta do afilhado do alemão Rudolf compatriota do autor da Flauta Mágica encontrou uma saída satisfatória para todas as partes desta curiosa história.


Resultado de imagem para imagem flauta mágica Mozart

A opera A Flauta Mágica começa com o personagem Tamino perdido na floresta, onde encontra Papageno, um homem alegre que aprecia os prazeres da vida e trabalha para a Rainha da Noite. Deste encontro Tamino fica sabendo que Pamina, filha da Rainha da Noite, foi sequestrada por Sarastro e, apaixonado pela sua beleza e a pedido da Rainha da Noite, decide resgatá-la. Na sequência, ambos passam por várias provas antes de se encontrar. Papageno também passa por um tipo de prova e este contraponto do homem comum que se comporta de modo diferente do príncipe diante das adversidades é o lado cômico que fez esta ópera tão popular.

Obra repleta de simbolismo. No livro A filha da noite, a escritora Mariom Zimmer Bradley, conta em prosa esta mesma história, em que os apaixonados lutam contra forças do mal e a Rainha da Noite, Mãe de Pamina, para se purificar e alcançar a sabedoria juntos. Metáfora sobre o Iluminismo e a revolução francesa impondo-se contra a Idade Média e o Absolutismo. 

Flauta Mágica lembra também o mito de Orfeu, um dos mitos gregos mais populares. Orfeu era filho da musa Calíope e do deus Apolo, que presenteou o filho com uma lira. Quando Orfeu a tocava, os pássaros paravam para o escutar, os animais selvagens perdiam o medo e as árvores se curvavam para pegar os sons que o vento trazia. Esta a magia da Música que eleva as criaturas e vem do fundo do coração do ser humano inaugurar a Civilização. Humanidade filha da Animalidade. Nada mais natural que o DIA INTERNACIONAL DAS FLORESTAS nos lembre que a vida depende da harmonia e equilíbrio das coisas. Um dia bom para ouvir as Bachianas (1922) do nosso brasileiríssimo Heitor Villa Lobos e pensar na Floresta Amazônica.


Resultado de imagem para imagem dia das florestas


Comentários

Postagens mais visitadas