Os netos de Dalcídio nunca esperaram Papai Noel.

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Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 10/01/1909 - Rio de Janeiro, 16/06/1979)
Prêmio "Machado de Assis" 1972, saudado por Jorge Amado como "índio sutil".






"Como me vejo em Marajó, como me vejo entre os mururés gordos lambendo os esteios da nossa casa cercada de água. A foto das crianças de Jenipapo me comove, são meus netos marajoaras (grifei), alegres apesar da miséria, apesar da dura condição em que vivem" -- Dalcídio Jurandir, citado em Marajó, A ditadura da água, Giovanni Gallo: 2ª edição, Edições "O Nosso Museu", Santa Cruz do Arari - Pará, 1981.

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Os netos marajoaras de Dalcídio nunca esperaram por Papai Noel. Quer dizer, o "bom velhinho" não sabe remar de montaria ou viajar de rabeta pelos furos entre duas mil e tantas ilhas do Golfão Marajoara a fim de levar lembranças do Polo Norte a 500 e tantas comunidades ribeirinhas... Não carece enfatizar que não estou me referindo aos meus primos cariocas e paulistanos, filhos de José Roberto e de Margarida. Quando, alguma vez, uma alma caridosa arranjou bolas coloridas e bonecas de plástico para encurtar distância entre gerações e classes sociais, salvo as exceções de praxe havia ali intenção de comprar gratidão da família "cabocla" na hora de votar. E, mais, capturar mão-de-obra barata ou produto extrativista para dar lucro à marretagem do "apurado" (além da "murrada" no trabalho o caboco ainda tem que assumir o risco do marreteiro não vender o produto). Emprego que preste e educação de verdade, nada... 

A Criaturada grande de Dalcídio é uma realidade à parte, uma brava gente à margem da História; que resiste apesar de tudo e nem sabe ela de suas próprias lutas desde quando não havia aqui panaquiri (mercadores brancos holandeses e ingleses) com o escambo de "gados do rio" (peixe-boi, tartarugas e pirarucu) da dependência técnica aos produtos fabris; nem cariuá (conquistadores espanhóis e portugueses) de corda e baraço da escravatura e roubo avultado de terras indígenas: com as armas do Rei e as bênçãos do Papa, diga-se de passagem

Ah, mas isto faz muito tempo e já passou! Não existem mais índios no Marajó, foram todos "civilizados" no Diretório do Marquês de Pombal... Dizem gentis senhoras e senhores da Oligarquia belle époque, que não esquecem jamais, porque lhes ensinaram com fervorosa constância as antigas glórias do Império Romano e tampouco negligenciam a história sagrada da migração do velho Abraão, pai de três santas religiões fratricidas entre si; em busca da terra da Promissão como reza a Bíblia distribuída a mãos cheias... Mas, Os Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara do padre Gallo, servindo de modelo para artesanato, cadê? O romanceiro de Dalcídio Jurandir nas escolas, quem viu?

Os lesados da terra Tapuia só precisam ler e escrever.

O Papa Francisco, hermano argentino no trono de São Pedro Pescador; escreve cartas circulares a Roma e ao vasto mundo. António Guterres, português do mundo, Secretário-Geral das Nações Unidas; se esforça para não deixar ninguém atrás e nem fora da Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Ora, o alto mundo quer falar com todo mundo! O centro conectar-se às periferias... Mas, como a Criaturada vai saber disto tudo além do que o radinho de pilha dá nos cafundós onde Judas perdeu as botas? Como não depender das costumeiras aloprações da famosa rádio cipó entre lendas e mentiras, em cujas "ondas" alhos viram bugalhos mais rápido do que o Diabo pisca um olho? Se esta gente é analfabeta de pai e mãe...

O melhor presente das crianças da Criaturada seria um futuro sem mais traições do passado: todavia, esta gente pequena não acredita no "bom velhinho" que nunca viram mais gordo... O Natal do "shopping" não existe para os pobres sejam eles das ilhas ou da terra-firme (continente da Cidade), o primeiro Presépio destas regiões amazônicas foi o Forte armado para guerra na boca do Igarapé do Piry, rústica paliçada misturando engenharia bélica europeia e arquitetura indígena tupinambá. E já se sabe que a nação Tupinambá havia a antropofagia por religião e se a guerra não existisse precisa inventar uma. Em compensação, os caraíbas ou pajés-açus procuravam a todo custo a mítica Terra sem males (onde não há fome, escravidão, doenças, velhice e morte). Foi assim edificado o berço da estranha Belém do Grão-Pará, entre missas e danças de guerra aos inimigos hereditários nheengaíbas (insulanos falantes da "língua ruim", Aruak). Pobres crianças sem futuro, pois lhes roubaram o passado... Como elas podem criar uma cultura de paz "educada" na ignorância de seus antepassados?

Mas sempre aparecem pessoas bondosas dispostas a salvar almas mal batizadas ou ainda pagãs. Ontem caçadores de escravos, hoje caçadores de votos compram a consciência deste povo a troco de miçangas da miséria mais triste. Felizmente, para os "netos" do Índio Sutil, ficou o ciclo romanesco Extremo Norte... toda a criaturada que habita dez romances. Minha primeira leitura de Marajó, escrito em 1939 na vila de Salvaterra com título de Marinatambalo e publicado em 1947; primeiro romance sociológico brasileiro segundo Vicente Salles; não foi melhor do que se pode esperar de qualquer jovem caboco aos vinte e poucos anos de vida, tendo cursado apenas as três primeiras séries da escola primária, como Deus permite e o Diabo gosta. 

Entretanto, mesmo assim - lutando contra minhas próprias trevas -, caíram-me as escamas dos olhos, como ao sicário Saulo de Tarso a caminho de Damasco. Foi assim, então, que pela primeira vez vi a Criaturada grande de Dalcídio da qual eu e minha gente sempre fizemos parte dela.



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