VER O PESO DO OUTRO LADO.



A doca do Ver O Peso com as igarités à vela ligando a Cidade às Ilhas no outro lado do rio.



Um analfabeto a mais acaba de desembarcar na Capital


A "Fé em Deus" acaba de entrar na Doca da feira ao fim da maré
Febre de quarenta graus me traz a bordo entre paneiros de açaí
Paludismo de novo: a parte que me coube no latifúndio das Ilhas
Rescaldo contemplado do extinto diretório dos índios
É verdade sim que meus pobres parentes foram incompetentes 
Na exploração da desgraça dos outros: graçasadeus...
O Arari me diz: o que dá pra rir, dá pra chorar meu camarada...
Vinte anos entre a ilha filha da Cobragrande e a Cidade grande
A canoa freteira desceu o rio Curralpanema ao fim da tarde
Maré vazante e espera na Boa Vista saída prevista pelo rio Fábrica
De igarapé em igarapé esta gente arranja carregamento da igarité
De rio em rio se tece a viagem de fio a pavio
Muito vento felizmente com rápida travessia rumo ao Cotijuba
Lote de porco brabo como o diabo a desembarcar no Curro Velho
Porco amoitado virou javali mato adentro pego a dente de cachorro
Marreteiros intermediários do deusdará das varjas
Que nem urubu vigia vaca magra no atoleiro durante a seca
Conta corrente da extração do mato sem cachorro
Apurado do suor da Criaturada filha da mãe com negro da terra
Grande é a fome dessa gente sem nome 
Que mora em endereço incerto no outro lado do Ver o Peso.

Ai de mim, mais um analfabeto político a matar o tempo
Na praça do Relógio nas agitações tardias da quebra da Borracha
Caminho da boa sorte na Cidade Velha ou a cadeia de São José...
Pleno de burridade, sem emprego ou profissão
E ainda por cima um camarada por sina achacado de paludismo
Na maleta velha um par de roupa e esperança de mudar de vida.

Meu primeiro desembarque em Belém vinte anos antes
Deu-se na sala de parto da maternidade da Santa Casa
Fim de outubro mês do vento, da revolução russa e do Círio
Minha mãe atravessou a baía rezando terço do Perpétuo Socorro
Não era segredo o fruto de seu ventre lhe dava alegria e medo
De Ponta de Pedras em canoa à vela do Marajó 
Até a Bacia do Igarapé das Armas, a doca do Reduto
Ou beco do Cano do canal Tamandaré conforme a maré
Herança de avó indígena por parte de pai: aldeia da Mangabeira
Não é brincadeira e doutra parte na veia sangue camponês galego
Mistura da raça ribeirinha de dois mundos entrecruzados na Ilha
Como a folia de São Sebastião ou gado do vento de Cabo Verde
Ainda jitinho de colo me levaram de volta à terra-ilha de meus pais
Abri os olhos e dei os primeiros passos no Fim do Mundo
Bairrozinho de infância bacana na vilarana do Itaguari
Taqui pra ti que eu ia me esquecer só porque cheguei na Cidade
Vim pro Círio de Nazaré a primeira vez aos seis ou sete anos idade
Pela primeira vez vi a Berlinda, carro dos Milagres, povão e fé...
Comi pato no tucupi, tomei vinho do Porto a primeira vez
Peguei porre precoce na primeira idade com um tio português
Baratista ferrenho, torcedor do Paysandú e fã de Almeida Garrett.

Meu pai e minha mãe pegaram canoa de volta à ilha grande, 
Outubro sempre, o moleque paresque prometia presepadas mil
Mês do vento, banzeiro à beça, maresia amarelando a baía...
Escapei de morrer afogado tomando banho no Marajó-Açu
Na hora me esqueci de agradecer a meu salvador Pretinho
Tal era meu desconforme analfabetismo de menino ribeirinho
Febres de paludismo, lá estava eu de novo pra tratamento no Posto
Pílula de metileno e metoquina: mijo colorido em azul e amarelo
Misturada de meninos e meninas na hora do banho na beira do rio.
Belém do socorro aos exilados do paraíso perdido
Por que este desassossego? Estas tontas travessias de idas e voltas?
Outubro, mês do vento... Maresia e poesia por linhas tortas.

Ver o nascer do sol no meio da baía incendiada de tanta luz
Vinte anos de idade: eis-me desta vez na Cidade que me seduz
Pra ficar talvez de vez.

///

Cairam-me as escamas dos olhos
 
Madrugada adentro a loucura assaltou minha modesta morada
Como agente da Gestapo, um mercenário cruel, o pior bandido...
Ao pé do grande tamarineiro, quintalzão que nem uma floresta
Pra sequestrar mamãe levando ela em camisa de força
"Levantai-vos Soldados de Cristo!" em delírio cantava
Cruzada invisível contra inimigos retardados da santa madre Igreja
Canoa à vela a toda pressa para o hospício Juliano Moreira
Acabou pra mim brincadeira nas ruelas descalças do Itaguari
Vi papai chorar pela primeira vez que nem criança
Mas eu não chorei por que não sabia...
Um ano antes desta tragédia meu avô morreu no sítio de repente
Vi o caixão roxo chegar pelo rio sem mandar aviso prévio
Em casa todo mundo de luto chorava pra se acabar
Mas eu não chorei por que não sabia...
Minha tia levou-me ao Marco pra visitar mamãe no hospício
Mas ela não estava lá: aquela mulher transtornada nem me viu
Era uma pobre sentenciada, não a mãe que cantava para eu dormir
aquela amorosa dona de casa que ensaiava Pastorinhas no Itaguari
Mas eu não chorei por que não sabia...
 
Me vi deportado, condenado e preso em Belém infeliz lusitânia
Cujo crime não sei qual era: cedo aprendi o caminho da feira
Onde todo dia o mundo vinha parar e eu via o rio com gana de fugir
Da prisão dos dias mais longos e tediosos da minha vida
Longe da minha ilha da Barataria legada por Dom Quixote
Meus tios foram meus segundos país e não abandonei a escola
Fui aprendiz carpinteiro e ajudante de mecânico
Tenho boa lembrança deles: mas não podiam dar o paraíso perdido
Tão logo pude, pedi licença e embarquei na igarité "Mirasselva"
Caminho do feio é por onde veio,
Escala providencial no Mosqueiro a ver água verdejante de sal
Sempre outubro, mês do vento...
Entrada pelo Arari, de volta ao Curral Panema e Itaguari.

Pedi asilo em casa de minha avó: doce mestra...
Um dia à hora da sesta ela deu-me a ler um romance dito "Marajó"
Onde a criaturada grande de Dalcídio habita o tempo
Cairam-me as escamas dos olhos
Vi pela primeira vez na vida toda história deste fim de mundo.

///
A face oculta do cartão-postal

Pra encurtar caminho da história devo confessar
O pirralho do Fim do Mundo quis saber quem inventou o mundo
Ele como qualquer caboco fez escola pelo curso de rios e igarapés
Por fado talvez passou no vestibular da universidade da maré
Nome de fantasia o título bonito de Academia do peixefrito
Aprendeu que o Ver O Peso é cartão-postal de Belém do Pará
Isto não se há de negar sabendo quanto representam as lembranças
De tempo e lugar no curso de vida de diversos viajantes do mundo.

Masporém a um caboco que atravessou a baía pra ser feirante
Promovido logo a repórter policial iniciante e cronista por acaso
Da face oculta do Ver O Peso
Não se pode esquecer nem negar
Que o cara é canoeiro há várias gerações e veio do outro lado
Trouxe por estágio quarenta graus de febre malárica na bagagem
Bobagem ocultar tal capacitação da paisagem cultural com urubus
O outro lado da coisa.

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