Missunga: releitura de Dalcídio à margem de "Marajó".


capa da 4ª edição (2008) do romance,
co-edição UFPA/Casa de Rui Barbosa:
introdução de autoria de Rosa Assis.


MEU ENCONTRO COM DALCÍDIO

Em 1937, ano de meu nascimento na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará, perseguidos pelos galinhas verdes, revolucionários da 'Aliança Nacional Libertadora (ANL)' no Pará encontravam-se encarcerados no tristemente célebre Presídio São José, dentre eles Dalcídio José Ramos Pereira (Ponta de Pedras, 10/01/1909 - Rio de Janeiro, 16/06/1979) que se tornaria conhecido como Dalcídio Jurandir, irmão de meu pai, Rodolpho Antonio Pereira, por lado paterno. No ano anterior Dalcídio foi preso político, pela primeira vez, acusado com seus companheiros de crime de "subversão da ordem". Mas que diabo os militantes da famigerada ANL provocaram? 

Estigmatizada pelo Estado e pela Igreja, a palavra "comunista" chegou em Itaguari (Ponta de Pedras) como se fosse a volta da peste de bexiga (varíola), mais conhecida como "alastrim", a qual no século 18 matou mais gente de que todas vítimas da repressão da Cabanagem. Meu avô paterno, Alfredo, capitão honorário da Guarda Nacional, grande devoto de Santa Rita de Cássia, rábula considerado e veterano secretário de intendência nas vilas de Cachoeira e Ponta de Pedras, sentiu o baque.

Tia Lodica ficou solteirona, quando seu noivo Tobias escolheu militar no comunismo no Rio de Janeiro em lugar de um casamento fagueiro com a filha do capitão Alfredo. Já minha avó postiça (na verdade tia) Sophia, rifou o noivado com o alfaiate Queiroz e ficou solteira com a morte de minha verdadeira avó, Antônia (índia da Mangabeira, irmã de Serafina e Joana), para criar meu pai, depois adotar o Sidraque e, por fim, o filho de Sidraque... Meu pai foi mandado a Belém pegando a primeira igarité com viagem certa a fim de saber o que se poderia fazer em relação ao caso de Dalcídio. A polícia talvez rondasse a casa dele e vigiasse toda família, era preciso cuidado para em vez de um, a família Pereira não ter logo dois presos... A vida imita a arte. Passados muitos anos vim saber por boca de minha sogra que uma das prisões de Dalcídio aconteceu em casa do pai dela, Argemiro Dias do Nascimento (motorneiro de bonde da companhia inglesa e líder sindicalista), também preso com diversos companheiros no "aparelho" do partido sob ingênua banca de tacaca de dona Maria José Teixeira do Nascimento, esposa do dono da casa no bairro da Cremação.

Em tais condições, a ficção faz morada ao lado da realidade. Dalcídio preso e diz-que o Sidraque Pereira estava de guarda no Presídio São José... Durante a ronda o prisioneiro teria deixado cair um pedaço de papel amassado de modo a chamar atenção do carcereiro seu irmão de criação. Sidraque foi até o fim do corredor e voltou aguardando momento em que não fosse observado, apanhou a bolinha de papel guardou no bolso e foi embora assim que houve a troca da guarda. Em chegando em casa, abriu e leu a mensagem: consta que dizia, "queimem meus livros". Verdade? ...

Hoje, setenta e seis anos depois, falar no tio Sidraque, PM carcereiro de seu irmão adotivo Dalcídio é surrealista. Já me dá vontade de ter cineasta para produzir documentário sobre aquele passado ainda agora bem presente: o romance "Marajó", escrito em Salvaterra em 1939 começa por imaginação no rio Paricatuba. Na geografia real o tal rio é igarapé tributário da margem direita do Marajó-Açu, rio que banha o município de Ponta de Pedras e dá nome a toda ilha e os mais acidentes geográficos de mesmo topônimo. 

Ao que consta na história oral da família Pereira, tio Sidraque nasceu no Paricatuba, filho de dona Fuluca parenta não me lembro em que grau de Frederico Pacutu, por alcunha Professor Gurijuba; personagem da vida real e amante imaginário da cantora Carmen Miranda, alvo predileto de zombarias da chusma ignara do Ver O Peso. Estes meus parentes eram descendentes de tio Felipe, colono português bonachão, e sua espoletada mulher minha tia-avó Serafina, índia catequizada. Upa! Estas águas memoriais já se misturam ao romance dalcidiano e chegam até o famigerado Diretório dos Índios (1757-1798) que fomentou casamentos inter-raciais como arremedo de reforma agrária.  Ao ler "Marajó" vai se ver que Missunga irá tentar um risível assentamento de cabocos sem-terra no Paricatuba... O iluminismo brega bisavô do Plano Valorização da Amazônia no Pará velho de guerra, será?

O que já seria bastante para arrumar confusão, se por outra parte não pesasse uma suspeita a respeito do comportamento "semítico" do capitão meu avô Alfredo Nascimento Pereira, nascido na vila de Benfica, talvez no engenho Santa Sophia, da colônia de Benevides. Parte misteriosa da suposta origem cristã-nova da família que somada à parte envergonhada da história onde índios e pretos desmemoriados se confundem como tantas outras famílias ultramarinas, a bem dizer deportadas.

E, mais complicado, a hipótese provável de que os Pereiras em questão tenham um pezinho na casa do sargento-mor Domingos Pereira de Moraes, contemplado da fazenda São Francisco (Malato), que com São Braz (rio Fortaleza) e Rosário da missão dos Jesuítas, deu origem ao município de Ponta de Pedras. Um segundo Domingos Pereira de Moraes foi diretor da Santa Casa de Misericórdia do Pará: ou seria ainda o primeiro, no rol dos "homens-bons" da oligarquia lusa no Pará? Que um terceiro Domingos Pereira de Moraes, primo em primeiro grau de minha mãe, reforça a hipótese não há dúvida. Além disto este veio a ser avô de minha mulher e do quarto Domingos Pereira de Moraes, meu cunhado, excepcional, que viveu alguns anos comigo quando morreram seus pais e, portanto, meus sogros. A geografia da literatura de Dalcídio é expressiva em citações de lugares ligados a nossa família. Por exemplo, o sítio Fé em Deus citado como do "compadre Modesto", foi terreno de meu bisavô galego Pedro Pérez de Castro, dono de escravos, casado com minha bisavó Angela e talvez herdeira do antigo contemplado... Quem sabe? Se não há certeza absoluta, a história não deve se acovardar em propor suposições que tem bons motivos para garimpar possibilidades credíveis. Eis como, modernamente, a literatura acaba sendo parteira da história.

PARENTESCOS HISTÓRICOS

Se não bastasse mestre Vicente Salles identificar no arcaico romance ibérico do "amor desgraçado" de Dona Silvana a matriz oral transplantada ao chão de Dalcídio da qual foi se surdir o "primeiro romance sociológico brasileiro" [o embrionário "Missunga", tentativamente "Marinatambalo", enfim "Marajó"]; a história real de Ponta de Pedras levanta pistas de conexão entre a obra e o tecido social de famílias de diferentes classes, etnias e horizontes geográficos cujo cenário inclui Muaná (lugar onde o capitão Alfredo, vindo de Belém para lecionar começa sua aventura marajoara como professor primário), Ponta de Pedras e Cachoeira do Arari num espaço ficcional único que se transforma na narrativa em universo-Marajó.

Neste universo natureza e cultura estão entrelaçados inseparavelmente. Da mesma maneira, pessoas de carne e osso, seus sonhos e agruras, vidas e mortes; por arte do romancista são criações representativas da Criaturada grande (conforme entrevista de Dalcídio a Eneida de Moraes). O pessimismo do romance dalcidiano não é nunca sinal de conformação ou derrota, nem o "eterno retorno" com saudades do passado: mas, ao contrário, um acerto de contas com a História numa provocação crítica ao despertar das consciências suscitando vontade política para transformar a realidade fatigada pela farsa da história. 

Onde a vida do autor dedicada com fidelidade franciscana ao seu chão e sua ficção se unem por um fio intangível na resistência e libertação da Criaturada grande (populações tradicionais ribeirinhas da Amazônia): não sem razão Jorge Amado, na cerimônia de entrega do Prêmio Machado de Assis (1972), chamou de "índio sutil" ao ímpar mulato marajoara. Portanto, Dalcídio não se explica por "milagre" no Marajó velho de guerra, nem sua literatura se encerra em si mesma. Ela é resultado orgânico de um bioma e região cultural ditos Marajó. O desafio da Amazônia (cf. Miranda Neto) que se oferece para decifrar a Esfinge de todas as margens e periferias da Civilização (donde a negritude universal é a chave).

Nasci numa família tipicamente marajoara, cujas origens incertas se perdem da noite do tempo tendo inconfundíveis raízes indígenas mescladas com imigrantes ibéricos e cativos africanos. Cresci querendo decifrar a esfinge transplantada de além mar na antiga terra Tapuia. Desde quando, em tenra idade, comecei a me interessar pela grave questão em saber quem inventou o mundo. Claro, nossos amáveis acadêmicos cultivam o gentil Dalcídio e se pudessem separavam a pessoa real do autor da obra de ficção. Na contraparte reponta a maré da vida real daquele menino do chalé de Chove nos campos de Cachoeira, à ilharga da árvore Folha-Miúda na beira do rio Arari brotada ali, exatamente, por acaso plantada pela mão poderosa da mãe natureza, em cuja sombra o futuro romancista, brincando com o mítico carocinho de tucumã (Astrocarium vilgare), ensaiou a reinvenção daquele mesmo chão.

POR QUE DALCÍDIO PEGOU O SÃO JOSÉ, 
FAMOSA CADEIA DE LADRÃO DE GADO?

A Aliança Nacional Libertadora (ANL) "Com o lema “pão, terra e liberdade" teve um crescimento rápido a partir de seu lançamento no teatro João Caetano na cidade do Rio de Janeiro. Mais de 1600 comitês foram realizados em todo País até a ANL entrar na ilegalidade em 11 de julho de 1935.

A organização foi fundada pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), nascida em março do ano de 1935 tinha como finalidade livrar o País do nazi-fascismo. No Brasil a Ação Integralista Brasileira (AIB) exibia sua total afeição pelo fascismo. Em resposta formaram-se frentes antifascistas que congregavam tenentes socialistas e comunistas descontentes com o Governo Vargas.

Em meados de 1934 um pequeno grupo de intelectuais e militares contrariados com os rumos do governo de Getúlio Vargas organizou varias reuniões no Rio de Janeiro, com a intenção de criar uma organização política capaz de dar base nacional as lutas que se travavam. Dessas reuniões surgiu a ANL, cujo primeiro manifesto político foi lido na Câmara Federal. A Aliança Nacional Libertadora tinha como fundamentos:
  • Interrupção do pagamento da dívida externa do Brasil;
  • Nacionalização das corporações estrangeiras;
  • Reforma Agrária e o amparo aos pequenos e médios proprietários;
  • Garantia de amplas liberdades democráticas;
  • Constituição de um governo popular;
No final do mês de março a ANL foi oficialmente lançada na Capital Federal. Na ocasião, dezenas de pessoas assistiram a solenidade; o manifesto foi lido pelo estudante Carlos Lacerda, que nos anos seguintes se tornaria um grande oponente do comunismo.

Na época Luiz Carlos Prestes, o “cavaleiro da esperança”, achava-se exilado na União Soviética, porém fora proclamado presidente de honra da organização. Prestes gozava de admirável consideração devido a seu papel de líder na Coluna Prestes que na década precedente havia tentado derrubar o governo pelas armas. Nos meses posteriores dezenas de pessoas se filiaram a ANL, cavalheiros ilustres mesmo sem se filiar mostraram-se atraídos pelo movimento, varias manifestações publicas foram realizadas em diversas cidades brasileiras inclusive com artigos divulgados nos jornais. [fonte: InfoEscola copiado da internet].

A SEGUIR....

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