introdução a Amazônia Marajoara


José Varella Pereira




Breve história
da Amazônia Marajoara







ESPECIAL
Textos condensados e comentados:

Notícia da Ilha Grande de Joannes
(autor anônimo, anos 50 do séc. XVIII)
e
Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó (1783)
     de Alexandre Rodrigues Ferreira


– Belém - Pará, dezembro de 2010 –


(ilustração, mapa da foz do rio Amazonas – sec. XVII)


Dedicatória:

Ao Presidente Luis Inácio Lula da Silva,
A gratidão do caboco ribeirinho pelo Plano Marajó,
notadamente o Projeto Nossa Várzea.





Preâmbulo

"Trabalhando o barro do princípio do mundo, do grande rio, a floresta e o povo das barrancas, dos povoados, das ilhas, da ilha de Marajó, ele o faz com a dignidade de um verdadeiro escritor, pleno de sutileza e de ternura na análise e no levantamento da humanidade paraense, amazônica, da criança e dos adultos, da vida por vezes quase tímida ante o mundo extraordinário onde ela se afirma." (Jorge Amado, Saudação a Dalcídio Jurandir).

         Esta não é uma história como outra qualquer. Trabalhando de novo “o barro do princípio do mundo”, esta aventura é um exercício político para inclusão socioambiental e econômica das presentes e futuras populações das ilhas do Pará e Amapá na foz do Amazonas, na contínua construção e afirmação da “Amazônia Marajoara” desde antes mesmo que a língua de Camões ou de Cervantes fosse aportada nestas paragens do Trópico Úmido, pela primeira vez, no século XVI. Sobretudo, como um manifesto ela quer suscitar a participação histórica desta brava gente insulana nas relações federativas do grande mar de água doce com o gigante Brasil e através deste com o vasto mundo sedento e faminto.

Nós, cabocos das ilhas filhas da Pororoca, queremos datar nossa própria história como parcela efetiva da História geral e do Brasil: ver o peso humano dos princípios pré-amazônicos da região, desde muito antes da conquista e colonização do “rio das Amazonas”; aliás, o Guiene [o Rio] dos velhos antepassados aruacos ou Paraná-Uaçu [rio grande] dos tupis.

Um modesto contributo movido por ambição humanitária num bioma brasileiro de importância planetária sob a faixa equatorial marítimofluvial. Sua singular geografia e ecologia responsáveis pelo surgimento da singular Cultura Marajoara, cerca do ano 400 depois de Jesus Cristo. Com ajuda científica do presente, o longo passado outrora esquecido se transforma no futuro que interessa à criança, à mulher e ao homem insulanos.

Resgate de um extinto modo de ser, ilhado e auto-suficiente, em meio a permanentes incertezas de sobrevivência. Na indiferença cósmica do fluxo e refluxo da maré nas margens anfíbias do golfão dispersivo e selvagem, sob domínio do sol com a lua, no gigantesco Amazonas em peleja dialética com a correnteza equatorial marítima. Bem ao meio da fronteira oscilante, tal como uma cobra grande, que parte e reparte o profundo Mar-Oceano entre os hemisférios Norte e Sul. Aonde, antigamente, dispartido de Tordesilhas (Espanha) e do arquipélago de Cabo Verde (ex-colônia de Portugal) o célebre “testamento de Adão” veio bater com força de encontro a usos e costumes milenares do “rio Babel”. Lugar quente e superúmido da nova “zona tórrida das antípodas” onde hoje 500 e tantas “aldeias-ilhas-mundos” (micro comunidades locais), dentre três microrregiões formadas por dezesseis municípios, vejetam entre chuvas e esquecimento: ilhamento geral do delta-estuário do maior rio do mundo.

         Com Milton Santos, o descobrimento e invenção do mundo são continuamente feitos através de lento desenvolvimento técnico do Homo artífice em ação no mundo com os outros. Quando as escamas do preconceito cai de nossos olhos a gente pode ver a clara luz do dia, então munidos de boa vista podemos nos insurgir contra o império de antigas ilusões ou dominações. Nestas ilhas à margem da História ocorreram e acontecem ainda mil e uma descobertas e invenções para economia do trabalho e sobrevivência do tempo na geografia dos lugares. A luta pelo empoderamento do fertilíssimo território encharcado (estes Países-Baixos dos trópicos ou ilhas Afortunadas da América tropical) antecede a luta de classes na construção dos tesos e seus cacicados através da engenharia e arquitetura do barro até sublimação da primitiva cultura paleolítica de 5.000 anos de idade pela arte cerâmica neolítica de 1.500 anos. Natureza e Cultura sem fronteiras: o milagre dos cardumes transformados em homens de carne e osso, na apoteose do barro feito diversidade de símbolos e espíritos-caruanas vivos desde sempre e para sempre.

Portanto, esta nossa breve história trata principalmente da “criaturada grande” imortalizada pela pena do “índio sutil”. Confiada na arma miraculosa da palavra e do livro, ela quer provocar o futuro desta significativa parcela da humanidade na cidadania brasileira, mas para isto ressuscitar o barro dos princípios do mundo como elemento de reconstrução do tempo. Para avançar pelos dias do porvir regressa à histórica polêmica dos anos de 1930 a 1940 sobre a opção preferencial do patrimônio histórico nacional entre a pedra colonial ou a cerâmica pré-colombiana. Levanta novamente a velha resistência marajoara à extinção da cultura e da língua dos “índios” por decreto e força de palmatória. Reage à ruína total e final do peculiar modo de ser do caboco ribeirinho face à recolonização da Amazônia.

Quer dizer aos demais Brasis que tenham confiança aos amazônidas brasileiros. Os quais, desde priscas eras, fazem parte dos primeiros povos do Brasil e sempre lutaram por conquistar um lugar ao sol na confederação do Cruzeiro do Sul (nosso velho país-continente do Arapari, doravante União das Nações Sul Americanas).

Queremos suscitar a resiliência do bioma para ressuscitar a ecocivilização neotropical frustrada pela sanha civilizacional estranha, cujo resgate, para escarmento das futuras gerações, pode-se encontrar no romanceiro de Dalcídio Jurandir iniciado com o seminal “Chove nos campos de Cachoeira” estuário dos sete mil rios das “amazonas”; locus onde o homem marajoara largado em plena maré, por necessidade e acaso, se faz feitor da História. Onde, por exemplo, a gente do povo pode “ver” o passado com a ponta dos dedos no sui generis portal chamado “Museu do Marajó” para mais depressa adivinhar o futuro. Agora, guiados pela arte poética e a prosa encantada do “índio sutil”, ao contrário de sua ficção criativa, a gente gostaria de deslendar e desromantizar a “criaturada grande” e nacionalizar a Cultura Marajoara para difundi-la como a mais velha civilização do Brasil brasileiro.

A breve história reclama amparo oficial ao Dia da Cultura Marajoara, lembrança do achado do primeiro sítio arqueológico de cerâmica marajoara, em 20 de Novembro de 1756, o teso do Pacoval, pelo sesmeiro Florentino da Silveira Frade, Inspetor Geral da Ilha Grande. Feito da necessidade com o acaso cujo bicentenário passou em brancas nuvens, enquanto Museu Nacional e IPHAN se digladiavam a ver quem podia mais que o outro e se valia a pena curadoria do barro pré-colombiana ou da pedra e cal colonial acima de tudo. Agora o achado do Pacoval do rio Arari vai fazer 260 anos junto aos 400 anos de fundação de Belém do Grão-Pará: podia motivar os brasileiros a refletir sobres estas coisas do norte  do Brasil.

Com isto o país saber do salvamento do incrível ecomuseu fundado por Giovanni Gallo: tudo com a razoável pretensão de ensaiar historiografia da Amazônia Marajoara sob ponto de vista de sua própria gente. Contra o infinito ilhamento e sequestro da Cultura Marajoara olvidada para maior glória do patrimônio colonial! Fica claro, entretanto, que se deve lutar contra toda sorte de clivagem e maniqueísmo: mas, também não se pode tomar impunemente da sopa global sem graves conseqüências para conservação de identidade própria.

A breve história destas ilhas do fim do mundo, para além de uma historiografia simplesmente municipal, quer começar dos começos dos povos originais. Os quais, cerca do século V, habitaram o maior arquipélago fluviomarinho da Terra onde deram nascença à famosa Cultura Marajoara. Daí em diante nossa história vai até a belle époque amazônica, nos anos 30 do século XX.

Conscientes da falta de meios para tão grande empreitada, nós não podemos desprezar a velha canoa furada no fundo do rio com sua carga lendária. Temos, pois, que operar um resgate impossível lidando com as duas faces da mesma realidade: ou seja, elaborar a fusão da estória com a história. Por fim, o leitor há de julgar se nós conseguimos realizar a façanha ou não. Para tanto, várias vezes, pedimos socorro à imaginação, quando as fontes claudicam e a ciência não chega a tempo com suas luzes para clarear a passagem incerta na selva escura, a suprimir lacunas e dirimir dúvidas. Dentre outros autores, vamos arrimar nossa atenção sobre a notável intuição e experiência de vida de Giovanni Gallo, inventor clarividente do sui generis Museu do Marajó, o primeiro ecomuseu da Amazônia (entidade comunitária periclitante sob indiferença das autoridades responsáveis, desde a criação em 1972 até este exato momento, em 2010). Um incrível personagem à procura de autor.

De Ferreira Penna à Denise Schaan a arqueologia marajoara grita para que a história da Amazônia Marajoara abra a porta à inteligência libertadora e descolonizadora desta que é, sem nenhuma dúvida, uma das mais fecundas regiões do arquipélago cultural dos Brasis. A primeira sociedade complexa amazônica e a mais difundida arte primeva do Brasil. No entanto, faz dó a triste condição de vida de sua gente mergulhada em ignorância da própria terra e da própria história. São populações tradicionais remanescentes de povos amazônidas criativos e valentes, tanto quanto ocorre em relação a outras regiões invadidas e ocupadas pelo imperialismo no mundo inteiro. Todavia a verdade seja dita, a partir de 2003 com o governo federal e de 2007 com o governo estadual; pela primeira vez na história a gente marajoara começou a receber assistência planejada e sistemática: notadamente com o Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária de terras da União, dentro do Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó e programa Territórios da Cidadania. Entretanto, tudo isto é apenas uma mudança de perspectiva que carece ser continuada e intensificada, a fim de que o rico potencial humano da região insular do delta-estuário amazônico se realize com as primícias de uma autêntica ecocivilização, que no passado foi historicamente lesada pelo colonialismo europeu e o neocolonialismo brasileiro durante o Império e a República Velha.

Trata-se de uma tentativa política tardia, sob auspícios da República federativa de 1988 (vinte anos depois da Constituinte), de incluir povos e populações tradicionais amazônicas na História do Brasil contemporâneo. O texto, portanto, aborda relatos antigos sobre os primeiros habitantes da região do Marajó (Marinatambalo, 1500; Ilha Grande dos Nheengaíbas, sec. XVII; Ilha Grande dos Aruans (séc. XVII), Ilha Grande de Joanes (séc. XVIII), aliás Analáu Yohynkáku, (1400-1820). Quer falar de importações de escravos africanos e de imigrações de colonizadores europeus e açorianos, mediante um longo aprendizado “autodidata” in loco e por diferentes leituras que o autor realizou durante muitos anos, tentando achar a si mesmo talvez na indiferença do labirinto amazônico. Purgatório do pensamento crítico a meio caminho entre o inferno verde e o paraíso ecológico.

         A primeira noção que o leitor deve reter é o fato da “ilha” do Marajó, na verdade, constituir área-chave das Amazônias. Esta uma anfíbia, existindo entre o Mar e o imenso Rio. Província fluviomarítima entre o rio Tocantins e o Baixo Amazonas. Principal região cultural do Estado do Pará integrada à metrópole, território do Marajó (16 municípios divididos pelas microrregiões Arari, Furos de Breves e Portel) dotado de população equivalente a de um país equatorial como a do Suriname e superfície geográfica do tamanho de Portugal, por exemplo, da qual mais da metade faz parte do continente, localizada entre os rios Xingu e Tocantins.

Um dos primeiros cronistas coloniais a visitar a “ilha” e a descrevê-la com detalhes, informando sobre os povos “nheengaíbas” (nuaruaques) que ali habitavam, foi o jesuíta Antônio Vieira. Concluindo a pacificação das populações hostis aos portugueses e tupis do Pará, ele informou a Lisboa que o reino de Europa que tivesse os índios do Marajó por amigos e aliados, teria por consequência o vale do rio Amazonas e o Pará inteiramente seguro. Esta percepção geopolítica – malgrado a violência dos colonos contra os padres jesuítas pacificadores das ilhas e opressão sobre os índios pacificados – se verificou acertada nos fatos posteriores: com o feito de conquista e pacificação dos Nheengaíbas, validou-se a memorável entrada de Pedro Teixeira até os confins do “rio das amazonas”, de 1637 a 1639 (base histórica do uti possidetis de 1750). E, em 1823, na luta nacionalista do povo do Pará para adesão à Independência do Brasil os marajoaras novamente se destacaram pela proclamação e combate de 28 de Maio (verdadeira data magna do Pará pós-colonial) na heróica vila de Muaná.

         Obra de errância intelectual e garimpo de diversas fontes, a primeira versão deste texto se terminou de fazer em Belém do Pará no ano de 2005. Último de uma trilogia começada por acaso com o ensaio Novíssima Viagem Filosófica (1999) e continuada com Amazônia Latina e a terra sem mal (2002); a breve história que ora se apresenta é modesta tentativa de abordar, através do caso típico Marajó; o mal-estar neocolonial latino-americano e grave problema da exclusão dos povos originais na História da civilização do trópico úmido planetário. De certo modo, é uma contribuição “nativista” à consciência mozomba sobre o rotundo fracasso humano da colonização do neotrópico sul-americano, mais evidente agora na crise central do capitalismo (codinome “Mudança climática”). A breve história não teria nenhuma importância, se não fosse pelo fato de estar apontando no sentido de uma desacreditada renascença regional, a qual – contra todo pessimismo – poderá mostrar uma saída ao mundo industrial em crise.

         Ainda que seja só um pouco, certamente, a história refeita do homem marajoara servirá para reanimar o diálogo entre “ilhas” ultra-periféricas e subúrbios marginais. Podendo até suscitar debate acerca da filosofia da história, pela corda do arquipélago cultural das regiões à margem da santa madre Civilização universal. A saber: poderá um dia a periferia consertar e concertar a decadente metrópole? Rocinhas e fazendas urbanas podem regenerar o mal metropolitano? Ou a virada historicogeográfica. Doravante: pensar localmente e agir globalmente... Em vez de propagar o requentado ditado universal, cuidar de arquitetar a civilização pluridiversa do futuro. Em vez da idade dos metais, a arquitetura orgânica: nova idade da cerâmica e novíssimo ciclo tecnoecológico da madeira.

Para tanto, longe da ilusão da tabula rasa do Novo Mundo modelado à imagem e semelhança do velho mundo, o novo deste milênio nascerá das pulsões do tempo arqueológico através do rio de Heráclito em perpétuo movimento. Por exemplo, na especificidade de sua ilha, a Martinica; o poeta/profeta Aimé Cesaire intuiu perfeitamente que a História não acabou e que, pelo contrário, a obra humana está apenas no começo.

Na Amazônia paraense tivemos também o nosso bardo da negritude, que foi Bruno de Menezes. O espírito da negritude é a parte radical da humanidade, naturalmente. A diáspora negro-africana é a mola matriz original da mundialização. A velha Europa comparável a um espelho partido, devastada por sua própria avidez em duas grandes guerras mundiais, precisou do célebre Plano Marshall para reconstrução. Entretanto, muito pior que duas guerras mundiais os povos coloniais sofreram genocídios e pilhagens horrendas ao longo de cinco séculos e clamam por nada menos que um Plano Mandela de abolição do apartheid histórico Norte-Sul. Urge compensação socioambiental a todos lesados da Terra. Foi a mãe África quem fez da primitiva aldeia o primeiro de todos os mundos...

O Continente Negro pariu a civilização e também a barbárie da escravidão, com grandes senhores divinizados e míseros cativos infernizados. Depois de milênios é preciso prover a refazenda da aldeia global desde um milhão de aldeias em África, Ásia e América Latina. Porém, a negritude vai além da melanina! Ela é, em essência, o grito de rebeldia contra a opressão e negação do Outro e a luta do oprimido pela tirania e alienação do Trabalho.

Com a destruição imediata das “Índias Ocidentais” pelos Conquistadores, da desconhecida ilha de Marinatambalo (Marajó) ainda em odor selvagem, em fins de janeiro de 1500, foram arrancados os primeiros 36 “negros da terra” (escravos indígenas) da América do Sul. Antes mesmo da humilhação da espécie humana pelo racismo, foi a exploração do trabalho escravo que deu forma à negritude. Se ainda hoje existe trabalho escravo no Brasil carece maior união e solidariedade dos trabalhadores brasileiros sob o amplo pavilhão da negritude internacional, certamente pela geral fraternidade de índios, quilombolas e cabocos. Massagada de “negros da terra” atados ao lupem proletariado do mercado informal que abastece a clandestinidade econômica e marginalização social. O fim da História está longe e não estão extintos os "índios" (primeiros "negros" do Novo Mundo), que a perpetuação do equívoco cartográfico de Colombo condenou ao limbo.

Os povos originários da América pré-colonial não são índios nem hindus. São os primeiros americanos que um dia, no longo passado, ensaiaram os primeiros passos da cultura passando do continente às ilhas do Caribe, e de lá retornaram a Terra-Firme para fazer história autóctone na parte equatorial da América do Sol. Portanto, nossa breve história é um pequenino ramo da enormíssima árvore da ancestralidade de dois mundos. O mundo do Trabalho terá que ser repensado e renovado com mais justiça e liberdade. Como Marx e Engels advertiram, o homem pode e deve estudar e compreender a natureza, pode tirar benefícios dela: só não pode a transformar impunimente sem riscos para sobrevivência da humanidade.

         Eis aonde a breve história das ilhas do golfão marajoara quer chegar. No largo espectro do tempo arqueológico, a história do futuro dá corpo e alma à utopia de sempre (da utopia selvagem dos índios à utopia evangelizadora do reino de Deus): por aí, não há mais velho ou novo mundos, mas apenas um planeta para todos. Um mundo real e finito... Então, a senha do avenir é a revitalização das primeiras nações da Terra.

Sobreviver é preciso, crescer não é preciso!

A área cultural das Guianas, estendendo-se do arquipélago do Marajó até a ilha de Trinidad, é a ponte de integração da grande Amazônia ao mar do Caribe: ela globaliza os "negros" da Terra, do Alasca a Terra do Fogo, do golfo da Guiné, pela "zona tórrida" dando voltas ao mundo, até o Amapá de volta para o amanhã...

         O Nilo e o Amazonas contam o começo e o fim de muitos mundos e culturas diferentes. O Egito é uma dádiva do Nilo e a Cultura Marajoara filha do gigante Amazonas. A antiga civilização egípcia descendente da Núbia fez empréstimos fundamentais a Grécia e Roma. A civilização greco-romana aniquilou as Índias... Por coincidência, quando a antiga civilização romana declinava; na desconhecida e ainda amanhecente Amazônia Marajoara nascia a civilização amazônida em berço nada esplêndido de argila virgem dentre extravagante biodiversidade e homens recém paridos da animalidade tropical. Desta maneira, germinou a arquitetura das terras baixas das Américas cujo renascimento, neste século, será talvez o futuro do planeta na Mudança Climática e tecnológica, se além das necessárias atenções do Brasil e do mundo os próprios marajoaras despertarem da "mundiação" (sono hipnótico) da Boiúna[1]...

         O mundo teve notícia deste fim de mundo depois da "grande noite" medieval, com as Cruzadas e a Renascença que iriam nutrir o espírito de aventura dos Descobrimentos, exportando seu imaginário pelo qual as amazonas do Mar Negro e Capadócia vieram por via imaginária povoar de lendas o "espaço vazio" da "última fronteira" da odisséia de Sagres. A sebastianista Feliz Lusitânia (Pará) arrojada sobre a terra dos Tapuias desde a Nova Lusitânia (Pernambuco), teve logo neste mediterrâneo Mar Doce, nas ilhas do Marajó (do "homem malvado") seu maior desafio. Desde então, o Marajoara (habitante da ilha do Marajó) representou aos conquistadores o enigma tal qual a Esfinge desafiava viajantes da Antiguidade: decífra-me ou devoro-te!... O Brasil está preparado ao desafio amazônico? Marajó ainda (por quanto tempo?) poderia ser (como foi outrora) caminho de iniciação ao país do futuro.

         O autor reivindica descendência indígena por lado paterno e camponesa galega por lado materno, para melhor defender ponto de vista das populações tradicionais ribeirinhas – eis que se faz ensaio de uma história caboca (sic), por contraste ao establishment mazombo – a partir de fragmentos de mitos, relatos e pesquisas. Com os quais se elabora a idéia de re-construir o tempo regional para refazer o espaço.

Desde eclosão das hostilidades entre coloniais católicos da União Ibérica e protestantes dos Países-Baixos e Grã-Bretanha, em 1623, em primeiro plano e em segundo o papel coadjuvante das primeiras nações do Mar Doce, inimigas hereditárias entre si antes da chegada dos europeus; sem deixar de ser o que sempre fomos ficando também brasileiros por conseqüência de 1500 anos de desenvolvimento cultural das ilhas do Marajó e da histórica adesão do Pará à independência do Brasil (1823).

Nunca fomos vencidos nem conquistados. Nós não tomamos partido entre “bandeirantes” e “gringos” nem ficamos em cima da cerca. O que nos interessa fundamentalmente é expressar a "verdade verdadeira" (ou verum factum, a modo talvez do filósofo seiscentista italiano Giambatista Vico) dos cabocos.

Estamos sim bem acordados a respeito do fato de que a História só se repete como farsa, embora o fluxo e refluxo da maré nos possa enganar mediante a dormideira da Cobra grande. Com que se materializou praticamente abaixo da linha do equador a Convenção Universal da Diversidade Cultural com os direitos humanos dos povos originais amazônicos brasileiros e mais nacionalidades de países amazônicos, avant la lettre.

Ao se advogar a humanidade amazônida como fator original de civilização do neotrópico, saída da mesma animalidade que pariu o H. Sapiens sapiens no mundo; esta história estúrdia realça a especificidade do contributo da arqueologia americana na Ilha do Marajó.

         Este modesto trabalho se começou escrever em 2005 e foi revisto e aumentado em 2010. Ultimamente, o autor entrou em contato com o conceito de história social da “Amazônia Marajoara” exposto pelo professor doutor Agenor Sarraf Pacheco, digno cidadão marajoara nativo de Breves; que passa a adotar. Todavia, embora não se tenha grafado e categorizado desta maneira, pode-se achar precedente do conceito na obra clássica do Barão de Marajó, “As regiões amazônicas” e em Alexandre Rodrigues Ferreira, na “Notícia Histórica”. Os quais relatando especificidades da grande ilha da foz do Amazonas e Pará observam identidade territorial distinta das mais regiões amazônicas, terminando o naturalista por dizer que via em Marajó potencialidades de uma província.

         Por um notável paradoxo, foram arqueólogos norte-americanos tais como Betty Meggers, Anna Roosevelt e outros com suas curiosidades científicas que revelaram o passado arcaico do homem amazônida. Acabaram assim por fornecer evidências da antiguidade da Amazônia Marajoara face a incompreensível desinteresse nacional brasileiro diante do trabalho beneditino de arqueólogos e antropólogos brasileiros que, de Ferreira Penna a Denise Schaan, lutaram e lutam ainda por demostrar esta riqueza sem par, que vem sendo dilapidada e dispersa. Com que nossos ancestrais tiram da matéria bruta formas e ideias, transformando-as em artefatos originais da primeira cultura brasileira complexa, cerca do ano 500 dC.

         A monumenta marajoara é fundamento da amazonidade. Por ela constituimos patrimônio do Brasil e da humanidade ao mesmo tempo. A maneira peculiar pela qual o país gigante da América do Sol pode limpidamente se apresentar como o maior país amazônico do mundo.

Com tudo isto em vista, não dá para entender que este povo do extremo-norte brasileiro continue humilhado ao deus dará desde a inverossímil "pacificação" dos Nheengaíbas, no teatro florestal da igreja do Santo Cristo, rio dos Mapuá, em 1659. Enquanto patriotas clamavam pelo fechamento do rio Amazonas à cobiça internacional; denunciando tentativas imperialistas, com exemplo na campanha de 1850 empreendida pelo tenente da marinha dos EUA Mattew Fontaine Maury, sem ao menos se lembrar que a maior defesa que pode haver do território está no próprio desenvolvimento humano das populações tradicionais que, milenarmente, habitam a região através do arco das gerações. As quais sempre manifestaram apego às ilhas filhas da Pororoca e sua consequente integração à terra firme sob a constelação do Cruzeiro do Sul.

         Posto que este trabalho é colocado sob égide da República Federativa do Brasil, conforme a democracia de 1988; vimos a Constituição do Estado do Pará de 1989, em seu artigo 13, alínea VI, parágrago 2º, expressamente determinar: “O arquipélago do Marajó é considerado área de proteção ambiental do Pará, devendo o Estado levar em consideração a vocação econômica da região, ao tomar decisões com vistas ao seu desenvolvimento e melhoria das condições de vida da gente marajoara.

         Este singular dispositivo derivado da Constituição-Cidadã mereceria um capítulo especial que infelizmente escapa das possibilidades da breve história. Contudo, assim mesmo, vale observar a dialética entre o discurso das elites e a práxis do povo. Este sempre a buscar brechas e oportunidades para sobreviver e resistir à opressão e desmemorialização.

Afinal, para que serve uma história como esta? Quando as Amazônias – sempre em mira de biopiratas e cobiça estrangeira – estão em aceso debate entre aqueles que gostariam de fazer delas um santuário ecológico e modernos bandeirantes movidos pelo lucro através de um bárbaro desenvolvimentismo custe o que custar.

Servirá talvez para gritar: tem gente! Isto aqui nunca foi, não é, nem nunca será espaço vazio. A Amazônia Marajoara é nossa! Herdeiros do “índio” discriminado pelos invasores, “extinto” pela ocupação e sobrevivente na figura ambígua do caboco (“extraído do mato”, ladino).

O ribeirinho indeciso entre a civilização e a barbárie. O empoderamento da cultura “pré-histórica” pela gente contemporânea das regiões amazônicas é exigência do desenvolvimento sustentável (sustentada, há de se frisar, por sua própria gente). Ou, então, não haverá descolonização. Necessidade vital justificada pela moderna pesquisa arqueológica (cf. Denise Shaan) e consequente educação patrimonial:

“O passado é sempre escrito e interpretado a partir do presente. Diz Henrietta Moore (1995, p. 51): “nossas representações criativas do passado são moldadas não pelo que sabemos ser verdade sobre o passado, mas pelo que acreditamos ser verdade sobre o presente”. A ressignificação da iconografia marajoara em contextos contemporâneos serve às necessidades do presente. Pode ser usada, é claro, de maneira positiva para sensibilizar as pessoas sobre a importância de aprendermos e conhecermos o passado e, nesse sentido,
sobre a importância de protegermos e preservarmos o patrimônio arqueológico. Através da preservação, garantimos que muitas interpretações ainda serão possíveis nos séculos vindouros e que o passado seja constantemente reatualizado e utilizado de maneira construtiva para criar identidade, cidadania e história.”

 [Denise Schann


[1] A Boiúna (do tupi, "cobra preta") é animal mitológico, o mesmo que Cobra grande: dotada de poder mágico ela pode produzir hipnose em suas presas (inclusive humanos), segundo crença popular. Nas diversas regiões e culturas amazônicas a Cobra grande é onipresente. Herança cabocla que mistura mitos das populações originais amazônicas e lendas da grande serpente marítima de povos estrangeiros.

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