Plantando a árvore inaugural do Ecomuseu dos Sapararé


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Cueira (Crescentia cujete) árvore originária da América Central que se adaptou a Amazônia e deu motivo a uma verdadeira arte em Santarém e Monte Alegre, no Baixo Amazonas, reconhecida oficialmente pelo IPHAN.



"O Guamá é o nosso rio", palavra de ordem de Pedro Paulo Sousa, idealizador do Projeto Sapararé. Um projeto-escola de canoagem que não se limita a formar canoístas, mas que nasceu talhado talvez para provocar estudo multidisciplinar inovador a partir do município de Benevides em suas respectivas margens no rio Guamá e no Distrito de Benfica, rio dos Sapararé. A envolver e motivar diversas comunidades ribeirinhas e centros de pesquisa para educação ambiental com foco nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com isto, seria o caso de dizer que todos nós que embarcamos, virtual e realmente; nos caiaques de Pedro com seus remadores voluntários atiramos no que vimos e acertamos no que não vimos.

Que bom, então, que nossos antepassados através de nossa própria geração podem ainda nos inspirar a chegar a bom porto recuperado do passado como herança às futuras gerações. Desafio a nós mesmos para concretizar algo maior: qual seja um projeto participativo para Geoparque do Guamá

Área geológica de historia natural e cultural da bacia hidrográfica levando em conta sugestões da UNESCO para criação de geoparques. Por acaso, as primeiras remadas do jovem mocorongo de outrora acabaram por nos levar a plantar a árvore inaugural do Ecomuseu dos Sapararé sob orientação do Ecomuseu da Amazônia e apoio institucional da Secretaria de Estado de Turismo (SETUR), a partir do Distrito de Benfica, município de Benevides, na rota turística Belém-Bragança.

Pedro nasceu e se criou no bairro da Aldeia, em Santarém, ele cresceu ouvindo velhas estórias dos povos das águas do Tapajós, como aqueles casos fantásticos que o padre João Daniel escreveu de memória, no cárcere de São Julião da Barra (Tejo, Portugal) onde ele morreu sob o jugo do Marquês de Pombal, nas 1.219 páginas do livro raro Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas,  volumes I e II (1722-1776). Consta que da Cidade do Pará os padres mandaram índios ir ao Tapajós com canoas baixar drogas do sertão. Meses depois os ditos índios voltaram dizendo eles que estavam em certa paragem quando ouviram vozes de muitas gentes vindas por um varadouro de dentro do mato em direção ao porto. E que eles esconderam-se a fim de não ser vistos pelos caminhantes em número considerável de homens, mulheres e crianças os quais, sem se deter, entraram n'água e sumiram dentro do rio. Mundos paralelos da cultura amazônica, onde botos se transformam em gente e cobras grandes em navios encantados...

Um dia, Pedro deixou sua Santarém natal e veio a Belém como a se preparar para mais tarde descer a remo o grande rio Amazonas até o Pará. Não é brincadeira... Por fim, o mocorongo foi se aconchegar no Distrito de Benfica, antiga Aldeia dos Sapararé à margem do rio que era dos índios missionados pelos jesuítas no século XVII até 1758, quando a aldeia foi elevada à categoria de vila de Benfica. E o Guamá o que tem a ver com isto? 

Em primeiro lugar, na crônica colonial, Guamá é um cacique taino da ilha de Cuba; que substituiu o rebelde Hatuey vindo da ilha de Quisqueya (atual República Dominicana) para iniciar a guerra de guerrilhas contra os cruéis conquistadores que o dominicano Bartolomeu de Las Casas descreveu com infinito horror. Os castelhanos capturaram e queimaram vivo Hatuey e enfim Guamá foi traído e morto por um parente seu. Seu nome resta hoje como município de Guamá, na província de Santiago de Cuba; e no Parque Nacional de Guamá.

Nosso valente Guamá é de 1723, aproximadamente, cacique dos Aruã e Mexiana da ilha do Marajó, segundo o geógrafo Armando Levy Cardoso na obra Toponímia Brasílica. Eu não sei se este nome ("lagartixa", em língua Aruak; penso no "tamaquaré" em Nheengatu, veio do Caribe ao Marajó ou ao contrário, foi do Marajó para Quisqueya (Hispaniola, Haiti) na pele de um dos 36 "negros da terra" capturados pelo espanhol Vicente Pinzón, em janeiro de 1500, na ilha de Marinatambalo). Só sei que povos aruacos foram as primeiras vítimas da Conquista e guardaram eles ódio hereditário aos Cariuá (conquistadores espanhóis e portugueses). Por outra parte, os Tupinambás conquistadores do Maranhão e Grão-Pará antes mesmo da vinda de europeus entraram em confronto com os "nheengaíbas" (falantes da "língua ruim", Nuaruaque) e desde 1615, com a tomada de São Luís do Maranhão, aliaram-se aos portugueses contra os ditos 'nheengaíbas" amigos dos holandeses e ingleses. Vem daí a malquerença hereditária entre as Ilhas e a terra-firme.

Arthur Cezar Ferreira Reis diz que o tal Guamá marajoara era bandoleiro que, de tempos em tempos, vinha do Marajó assaltar aldeias de índios mansos (escravos) dos portugueses e fazia tapiri (acampamento) na boca do igarapé do Aurá. A gota d'água que faltava para as autoridades do Pará mandar capturar Guamá vivo ou morto, aconteceu quando ele atacou a aldeia dos Murubiras... Provavelmente, de surpresa pela retaguarda. Penso que a aldeia dos Murubiras nesse tempo estivesse ao alcance do Furo das Marinhas, próxima à foz do rio Sucurijuquara, na ilha do Mosqueiro. Hoje com mapas Google pode-se ver que através do igarapé do Aurá pode-se chegar próximo às cabeceiras de vários rios e igarapés que desaguam no furo do Maguari, entre estes o rio dos Sapararés (Benfica)... Há uma vasta "devassa" (inquérito) sobre a saga do cacique Guamá e sua guerra contra os antigos desafetos: roubava índios escravos dos portugueses para os vender a traficantes franceses em Caiena a troco de armas e munições, diz o inquérito (cf. Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira, Arthur C. F. Reis, Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, 1947). Devemos, nos lembrar de que em 1659 o padre Antônio Vieira havia evitado a "guerra justa" (cativeiro e extermínio) dos rebeldes Nheengaíbas (carta de 29/11/1659) e fez as pazes com eles. Porém, colonos portugueses frustrados do fornecimento de mão de obra escrava assegurada por "índios cristãos" (tupinambás catequizados) expulsaram os padres violentamente. A consequência, além da condenação de Vieira em Portugal pelo Santo Ofício; foi a volta da pirataria dos "nheengaíbas" (marajoaras) que tivera início com a expulsão dos holandeses (1623-1647) e se prolongou com o dito Guamá até as primeiras décadas do século XVIII.

Por isto, o rio que banha a cidade de Belém ficou sendo "rio de Guamá"... A fim de prender Guamá vivo ou morto, capturar desertores e escravos que o acompanhavam, o capitão João Paes do Amaral foi mandado ao seu encalço até o rio Oiapoque. Voltou de mãos abanando e acabou indo ao Rio Negro reforçar as tropas em luta contra Ajuricaba dos Manaus. No lugar do capitão, seguiu o sargento-mor Francisco de Mello Palheta, da vila da Vigia; que trouxe o café furtado de Caiena. 

Seja como for, é curiosa a coincidência desdes dois caciques de nome Guamá pertencentes ao mesmo tronco linguístico Aruak que, como se sabe, habitou o circum-Caribe a partir do Rio Negro passando ao Orenoco e ilha de Trinidad para o mar das Antilhas e pelo Amazonas até o Pantanal e Nordeste até o Delta do ParnaíbaNaturalmente, quando os guerreiros Tupinambás começaram a descer o Peabiru para o litoral do Sudeste brasileiro em busca da Yby Marãey (terra sem mal) a guerra contra os Tapuia se alastrou, chegou ao Maranhão e Pará: Tapuitapera (Alcântara-MA) e Camutá-Tapera (Cametá-PA) são, provavelmente, dois lugares de memória da conquista tupi da antiga Tapuya tetama (terra Tapuia). Como se sabe, na conquista da Amazônia, o "rio de Guamá" era parte principal do Caminho dos Tupinambás...

Eis que o Projeto Sapararé vem de realizar com êxito a Expedição de Verão 2017 ao Alto Guamá. O sucesso da expedição animou ribeirinhos guameuaras, populações indigenas e quilombolas, cidades da bacia hidrográfica, canoístas, autoridades locais e simpatizantes do remo a "ocupar" amistosamente a Cidade Universitária do Guamá. Isto é, reivindicar compromisso da Universidade Federal e sua vizinhança no desenvolvimento socioambiental sustentável do Rio de Guamá.

Eu queria escrever sobre a oferta de um pé de cueira que voluntários do projeto "Aldeia Marambaia", no Conjunto Médice; estão enviando à comunidade da vila de Benfica (antiga Aldeia dos Sapararé), no município de Benevides, como símbolo de amizade entre as duas comunidades da área metropolitana de Belém. Quer dizer, uma comunhão de interesse para suscitar renascimento da ecocivilização da Amazônia, com base local nas culturas Marajoara e Tapajônica. Claro está que nenhuma comunidade local isolada - ainda que se trate do melhor condomínio do mundo - não poderá mudar o caos urbano, nem evitar a degradação do meio ambiente na área rural. Todavia, "um milhão de aldeias" interconectadas à aldeia global poderá, com tempo e persistência, fomentar cidades educadoras, "universidades livres" e ecomuseus dedicados ao enraizamento da extensão no seios das comunidades locais.

Para tal a rede mundial de computadores muito poderá oferecer ajuda, notadamente através de ecomuseus e museus comunitários em parceria com escolas locais formais públicas ou privadas. O turismo responsável mediante suas diversas modalidades poderá contribuir para aumento de emprego e renda dos municípios. E a descentralização das cidades levar à invenção de aldeias autogestionárias no espírito da "aldeia global" da Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (2030). 

O portador da singela lembrança da cueira da Aldeia Marambaia é o amigo Pedro Paulo, nativo do bairro da Aldeia, na cidade tapajônica de Santarém. Extraordinária coincidência: Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909 - Rio de Janeiro, 1979) recebeu em Santarém a notícia de que seu romance Chove nos campos de Cachoeira havia ganho o prêmio Dom Casmurro.

"Mas quero acabar que tive uma grande homenagem por causa do prêmio. Fui com o meu amigo Cronge da Silveira, em Santarém, tomar tarubá na casa de dona Ana, no bairro da Aldeia. A casa de palha, o chão batido e as moças simples e alegres cumprimentaram o "escritor premiado...” O tarubá é uma bebida fermentada de mandioca muito usada em Santarém. E naquela noite da Aldeia, num banco no terreiro, tomamos o tarubá, bebida da terra e do povo. Não me esquecerei nunca da Aldeia." (trecho de depoimento Tragédia e Comédia de um Escritor Novo do Norte).

O projeto "Aldeia Marambaia" é iniciativa de alguns moradores do Conjunto Médice nos anos de 1990. Pretendia discutir coletivamente a situação de "conjunto-dormitório" remanescente da extinta Cooperativa Habitacional de Trabalhadores Urbanos de Belém (COHATUBE) e contribuir por extensão à consciência socioambiental da área metropolitana de Belém. Na época a adesão ao projeto foi nula, indicativo de uma baixa sensibilidade para o tema entre os próprios moradores do bairro e na municipalidade em Geral. Todavia, passados quase 20 anos, a semente da aldeia parece germinar com a interatividade entre moradores e cidadãos da área metropolitana.

Na evolução da cultura amazônica, pode-se apostar: antes da cerâmica veio a cuia e o balde. O índio e o caboco carregaram muita água em balde de cuia e mataram a sede tomando água na cuia... Banho de cuia tem o seu valor. Açaí e tacacá se não for na cuia perde a graça. 

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, árvore, planta, grama, céu, atividades ao ar livre e natureza
voluntários do projeto "Aldeia Marambaia"
em atividade de fim de semana frente à
Escola Estadual de Educação Infantil e Ensino
Fundamental "Leonor Nogueira", Rua Cafezal,
Conjunto Médice II.




Originária da América Central, foi introduzida na América do Sul. Seu nome científico é Crescentia cujete L. Pertence à família das Bignoniaceae. Possui ocorrência nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.

A cueira atinge até 12 metros de altura. Possui ramos longos, perenes e cheios de folhas até o fim do galho. Possui folhas que medem até 20 centímetros, de coloração verde escura brilhante, simples, alternadas, inteiras e alongadas. As flores são grandes, solitárias, campanulada com cálice, de cor branco-amarelado e são hermafroditas. Os frutos são de coloração verde-clara, arredondados e medem entre 15 a 30 centímetros de diâmetro.


Quando maduras, apresentam coloração marrom-negro e são bem resistentes, sendo utilizadas como caixa de ressonância em berimbaus (instrumento musical afro-brasileiro) e como recipiente para líquidos. Possuem boa frutificação, dando origem a várias sementes. As frutas frutificam entre os meses de janeiro e agosto. As sementes podem ser consumidas depois de cozidas, possuindo elevado conteúdo proteico.



Data: 
26/06/2015 - 11:30
Lucia Hussak van Velthem, pesquisadora associada do Museu Goeldi, escreveu o parecer aprovado pelo IPHAN
Agência Museu Goeldi - Quem mora no Norte do país, conhece, tem em casa ou, no mínimo, já se serviu de uma delas. Pretas, lustrosas e com diversos formatos e gravuras “floradas” em suas superfícies, as cuias são onipresentes no comer, no “banhar”, no celebrar e até mesmo no vestir. Dentro delas cabem história, religiosidade, economia e nutrição. Neste mês de junho, o Conselho Consultivo do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheceu essa tradição e inscreveu no Livro de Registro dos Saberes o“Modo de Fazer Cuias no Baixo Amazonas” como relevante forma de expressão da cultura brasileira.
O parecer foi redigido pela conselheira Lucia Hussak van Velthem, antropóloga, ex-curadora da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), atualmente integrante da equipe do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI.O processo para incluir o modo de fazer cuias no Baixo Amazonas dentre os patrimônios culturais do país teve início em 2003 através de projetos do Museu de Folclore Edison Carneiro do Rio de Janeiro. O acervo da reserva etnográfica do Museu Goeldi, que preserva peças históricas dos povos amazônicos, forneceu subsídios no processo de estudo para elaborar o parecer favorável.
Tradição das pinta-cuias - As cuias ornadas são feitas há mais de dois séculos no Baixo Amazonas, estado do Pará. Um fazer que foi transportado no tempo por mãos femininas. São as mulheres que, principalmente, se encarregam do ofício de transformar os grandes e redondos frutos da cuieira (Crescentia cujete), planta que fornece a matéria prima, em recipientes resistentes e bonitos.A produção de cuias atualmente se concentra em comunidades de Santarém e Monte Alegre -  os cidadãos deste último município, inclusive, são conhecidos como “pintacuias”.
Cuia pra quê? –  A cuia, que no Sul do Brasil e em outros países da América Latina é preenchida com o chimarrão, na Amazônia guarda o tacacá, o açaí e outras comidas e líquidos, isso só pra falar na alimentação. Ela está lá também nos afazeres domésticos de centenas de lares ribeirinhos, na coleta da água dos rios, para tomar banho, desafogar as canoas e “voadeiras”. É um utensílio para mulheres e homens.
Como fazer - Além do uso, o que distingue as cuias do Baixo Amazonas das demais é o seu modo especial de confecção. Usando técnicas tradicionais, reproduzidas e adaptadas de saberes indígenas, as artesãs escolhem os melhores frutos da cuieira, retiram o miolo e os dividem em metades, que são as estruturas das cuias. Estas são lavadas, raspadas com escamas de pirarucu ou folhas de embaúba (tipos de árvore do gênero Cecropia), e expostas ao sol até ficarem com um aspecto liso, interna e externamente.
Aí entra outro elemento natural que dá a coloração escura à cuia: o cumatê, pigmento da planta cumatezeiro (Myrciam Atramentifera). A tintura é pincelada na cabaça por diversas vezes e depois da fixação a superfície está pronta para receber os desenhos, talhados no “couro” da cuia com pontas de faca ou outros instrumentos cortantes. As gravuras mais frequentes são motivos florais, representações da fauna regional e grafismos tapajônicos, também denominados de “indígenas”. Os grafismos inspiram-se na cerâmica arqueológica, originária do povo Tapajó, preservada em museus brasileiros. Sua utilização atual se insere em um amplo processo de valorização do legado arqueológico no município de Santarém. 
Lúcia Hussak van Velthem – Antropóloga e museóloga, Lúcia van Velthem também foi responsável pelo parecer que inscreveu o Carimbó no Livro de Registro das Formas de Expressão do IPHAN, em 2014 e colaborou na redação do dossiê sobre o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, registrado em 2010.  A pesquisadora lembra ainda de outras expressões culturais paraenses que recentemente foram reconhecidas pela instituição, como as Festividades do Glorioso São Sebastião, em 2013, e o Círio de Nazaré, em 2004:  “Todos esses processos exitosos revelam a riqueza e a diversidade das manifestações culturais imateriais, notadamente as de cunho religioso e lúdico do Estado do Pará”, afirma.

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