O empate da capitania dos Barões de Joanes: índios bravios, desertores e escravos refugiados contra as sesmarias.

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Terra Quilombola (Município de Salvaterra, ilha do Marajó), fragmento do antigo território indígena na Ilha dos Nheengaíbas (comunidade de diversos povos Nuaruaques) dada pela coroa portuguesa ao donatário António de Sousa de Macedo como capitania da Ilha Grande de Joanes (1665-1757) expropriada às ordens religiosas para doação aos Contemplados e criação da Fazenda Nacional: foto de Vicente Azulay do Nascimento.



MARAJÓ É UM GRANDE MUSEU A CÉU ABERTO


Empate significa situação de jogo ou disputa sem decisão, trata-se de um substantivo masculino. No caso dos índios da nossa história é verbo transitivo direto no sentido de sustar, suspender e embaraçar a ocupação colonial da capitania da Ilha Grande de Joanes. Quer dizer, desde o século XVI ou mesmo antes, muito antes de Chico Mendes e Wilson Pinheiro com seus companheiros seringueiros no Acre usarem a tática do empate a fim de impedir a destruição de seringais nativos por latifundiários encapetados; na região das Ilhas no delta-estuário do maior rio do mundo, uma incrível confederação de caciques dos chamados Nheengaíbas ("falantes da língua ruim"), Nuaruaques, na verdade; empatou até 1680, mais ou menos, a ocupação da ilha do Marajó. 

Foram 64 anos, exatamente, que os Nheengaíbas mantiveram ao largo os colonos portugueses, desde a fundação do forte do Presépio (1616); impedidos de botar os pés na ilha grande face ao perigo mortal dos índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam pelos centros da ilha. Enfim, vencendo o temor e contrariando vozes de advertência, o carpinteiro Francisco Rodrigues Pereira atravessou a perigosa baía do Marajó com umas cabeças de gado cabo-verdiano a bordo e foi levantar o primeiro curral (1680), numa sesmaria do rio Mauá, tributário da margem esquerda do Arari... 

A ilha grande se chamou de Joanes devido à corruptela em língua portuguesa, do nome dos índios Iona ou Sacaca; ou Marajó (do tupi marãyu, "malvado"). Em geral, prevalece a tradução de Mbaraió, com significado de "barreira do mar". Todavia, fontes jesuíticas as mais antigas citadas pelo historiador Serafim Leite, que consultou a biblioteca dos Jesuítas no Vaticano; na volumosa obra História da Companhia de Jesus no Brasil; dão como certo que o rio Marajó-Guassu (Marajó-Açu, isto é, "Marajó grande", por diferença do curso acima "Marajó-Ité", "feio" ou "inferior" como em igarité, semelhante à igara (caravela); deu nome a toda ilha (por conseguinte, aos mais acidentes geográficos que levam o mesmo topônimo.

Ora, conhecendo a geografia da região insular sabe-se que o rio Marajó-Açu tributário do Rio Pará após descer dos campos alagados e drenar com o Arari e o Anajás emendados os centros da Ilha, deságua na baia do Marajó: aí estas águas grandes longe de ser barreira do mar distante na Contracosta; é rio franco que abre passagem para o interior da ilha. Donde este rio se comunica ao Arari e ambos ao rio Anajás Grande através do Anajás Mirim, longa estrada de água que vara em direção ao Macapá e aos Furos de Breves através do Aramá. De fato, para quem vem da terra-firme (continente), pelo lado meridional do Pará e o Guamá descendo de muito longe pelo antigo Caminho do Maranhão; o Marajó profundo começa no Itaguari (Ponta de Pedras, na tradução da língua-geral ou Nheengatu para o português). 

A mim me parece que o rio Marajó-Açu era caminho antigo do índio "malvado" (o temível Aruã) em suas incursões bélicas desde o Cabo do Norte (Amapá) até o Pará. A "barreira" aí nem mar, nem rio; era o bárbaro Aruã - o próprio marãyu, na "boa língua" do inimigo tupi surpreendido com a inesperada emboscada e a morte súbita causada pelo dardo envenenado. O empate mortal da busca da mítica Terra sem mal a caminho do Araquiçaua ("lugar onde o sol ata a rede", do nheengatu ara, dia; ky, rede e xawa, lugar).

Fato espantoso para mente mágica do índio canibal acostumando ao combate leal do porantim ou tacape. Todavia, o inimigo marajó (aruã) era índio canoeiro por excelência, criado na guerra antropofágica Galibi, vinha ele do Norte distante assaltar às ilhargas de Belém e retrocedia ligeiro a fim de passar temporadas de ócio com seus parentes Palikur no Oiapoque e negócio em Caiena. Este empate formidável - ponta de pedras no caminho do Paraíso selvagem -, o guerreiro Tupinambá nunca esperou nem nos piores pesadelos dos pajés-açus em comunicação onírica com o artioso espírito Jurupari...

marajoara "malvado" era índio de emboscada que manejava zarabatana feita de paxiúba e atirava dardos de talo de patauá ervados (envenenados). Ademais, possuía canuá (canoa grande feita de tronco para uso de vela de jupati), capaz de realizar verdadeiras batalhas navais atacando e fugindo rapidamente diante do inimigo tupinambá em suas primitivas ubás a remo. 

Primeiramente, portanto, o empate dos Nheengaíbas danados atrapalhou a brava nação Tupinambá na conquista da Tapuya tetama (terra Tapuia) ou Maranhão e Grão-Pará além da terra-firme (continente) impedindo que os buscadores da mítica Yby Marãey ("terra sem mal") passassem adentro do Paraná-Uaçu ("rio grande" ou rio das Amazonas. Em sua longa carta ao rei Afonso VI, datada de 29/11/1659 e publicada em 11/02/1660, o padre Antônio Vieira descreveu em mil e uma peripécias as pazes concertadas, em 27/08/1659, com os sete caciques Nheengaíbas liderados por um certo Piié dos Mapuá, considerado o mais ladino entre todos eles. Desconfio que o padre grande inventou este índio e colocou palavras suas na boca da criatura: o que não traz prejuízo ao fato histórico de que nunca se sabe verdadeiramente o nome próprio de um índio. Em segundo lugar, o suposto cacique nheengaíba não disse nada durante as tratativas de paz e na igreja do Santo Cristo, na improvisada aldeia de Mapuá baixada provavelmente do rio dos Anajás; que Vieira não tenha dito antes contra o sistema colonial português no Maranhão e Grão-Pará, de viva voz no Sermão aos Peixes, proferido em São Luís do Maranhão (1654), quando o padre foi de passagem a Lisboa pleitear a Lei de abolição dos cativeiros indígenas (1655), base das negociações de paz com os famigerados Nheengaíbas através de dois índios "embaixadores" parentes dos ditos cujos (cativos no Convento de Santo Alexandre). Vieira não disse o nome destes índios embaixadores que não queriam ir levar a inverossímil "carta-patente" às nações Nuaruaques, nem de outro qualquer dos caciques insulanos que, aliás, comparecem ao teatro da paz de Mapuá com seus guerreiros empenados com plumas vermelhas de guará para festa, mas não com suas mulheres e crianças... Qualquer sertanista sabe que índio sem mulheres e crianças é sinal de desconfiança e mau presságio. Ainda mais, escreveu o padre, que o Diabo compareceu de 23 para 24 de agosto (Dia do Berto) para semear discórdia entre os "índios cristãos" (tupinambás) de costume que foram como remadores da escolta com soldados da praça de Cametá... O caso foi que os Nheengaíbas não quiseram logo no dia 22 começar a missa e o sermão das pazes sem que chegassem todos convidados dos donos da aldeia, os Mapuá; parentes dos Aruã e Anajá. Então, portugueses e tupinambás começaram a murmurar, dizendo eles que os ardilosos Nheengaíbas estavam cercando o sítio para atacar a expedição. Vieira alertado passou um carão aos agitadores, mandando-os de volta para ficar somente ele e seu confrade. Finalmente, começaram a chegar os temidos Aruã, Anajá, Camboca, Guaianá, Pixi-Pixi, por último os Mamaianá mais pessimistas que todos. Até os Tucujus (do Amapá) vieram espiar o que estava acontecendo. Sem mais demora o payaçu rezou a missa, disse sermão e mandou os caciques pressentes prestar juramento de vassalagem a El-Rei de Portugal. Mas, o tal Piié não jurou dizendo ele que se havia guerra a culpa era dos portugueses que violavam a lei do rei (o que o padre atestou ser verdade).

O acordo de Mapuá teria dado termo a 44 anos de guerra dos índios do Marajó e os portugueses, inclusive a expulsão dos holandeses e ingleses (1623-1647), desde a tomada de São Luís (1615). Enquanto a Câmara de Belém havia requerido a guerra justa (cativeiro e extermínio) contra os ditos índios acusados de pirataria de canoas de tropas de resgate (caçadores de escravos) e drogas do sertão (produtos extrativos florestais). Os índios piratas fariam tráfico com a colônia francesa de Caiena; mas os padres Jesuítas saíram em defesa dos mesmos dizendo que aquela guerra além de injusta seria impossível de vencer. Visto que a ilha é um labirinto de ilhas e rios desconhecidos, como uma fortaleza natural onde algo como 20 mil índios sem morar em nenhum lugar fixo, devido o estado da guerra; ficavam ocupando toda a ilha... Um território de 104 mil km², maior que o estado do Rio de Janeiro, ou Alagoas ou ainda Sergipe. Hoje com mais de 500 mil habitantes, semelhante a alguns países independentes.

A prova de que Vieira não blefou a respeito do acordo de paz de 1659 está na fundação, imediata, das aldeias de Aricará (Melgaço, 1758) e Arucará (Portel, 1758) com índios nheengaíbas levados de Mapuá. Aricará e Arucará são, provavelmente, nomes dos tuxauas das respectivas aldeias, conforme costume da época. A leitura pós-colonial que se deve fazer sobre o empate dos Nheengaíbas levará em conta que a historiografia luso-brasileira oficial exalta a conquista portuguesa e apaga a indispensável participação de remos e arcos tupinambás. Já a crônica jesuítica coloca em primeiro plano o papel dos missionários num contexto inverossímil sobre os "índios cristãos" (tupinambá), vistos como estúpidos comedores de carne humana e "índios pagãos" ansiosos pela graça do batismo católico. 

Em realidade, dentro do complexo processo colonizador índios de diferentes etnias e um século mais tarde negros escravizados importados através do Maranhão ou refugiados das colônias holandesa e francesa nas Guianas (cf. Flávio dos Santos Gomes, A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX); desenvolveram uma história invisível, apenas pressentida através do folclore e de costumes tradicionais. 

Outra evidencia da veracidade do relato do payaçu dos índios, no que concerne às tratativas de paz com os rebeldes Nheengaíbas em que pesem as tintas barrocas carregadas para impressionar a distante corte de Portugal após a morte de Dom João IV, o rei amigo de Vieira; é o fato de que, ato contínuo, à fundação das aldeias de Aricará e Arucará os escravagistas portugueses se levantaram com violência contra os Jesuítas expulsando-os do Pará em represália pelo desarme da "guerra justa" já autorizada por Lisboa ao governador do Maranhão e Grão-Pará (1621-1751), André Vidal de Negreiros. Todavia, as duas aldeias nheengaíbas que vieram a ser vilas de Melgaço e Portel amazônicas sobreviveram no território reconquistado; que antes fora seu até Cametá, provavelmente. E que agora constitui a parte continental da mesorregião Marajó, microrregião de Portel mais precisamente. 

Quanto à Ilha dos Nheengaíbas ou Ilha dos Aruans, tão logo os padres foram obrigados a deixar o Convento de Santo Alexandre a caça aos "negros da terra" recomeçou com o indispensável concurso dos "índios cristãos" (tupinambás catequizados) e de novo a guerra de guerrilhas dos famigerados Aruãs e Anajás que, pouco a pouco. com a decadência do mito da Terra sem males, fadiga das guerras, epidemias devastadoras e fome transformaram o orgulhoso guerreiro antropófago de outrora numa sombra do passado sob a figura dos caboclos saídos do Diretório dos Índios que, por isto, se envergonham da origem indígena. Em Portugal, Vieira preso, processado e condenado pela Inquisição; dado o golpe da maioridade do deficiente rei Dom Afonso VI, já não haverá mais ilha de Nheengaíbas, nem de Aruans; para dar lugar então à Ilha Grande de Joanes (grande confusão com os "joanes" quase extintos, aliás Iona ou Sacaca; e algum Johannes perdido nos mares da historiografia colonial).

De modo, que a teoria do Empate está de pé: cerca de 1723, enquanto no Rio Negro ao mesmo tempo o bravo Ajuricaba cacique dos Manaus se levantava frente a caçadores de escravos das tropas de resgate; no Pará velho de guerra era vez de Guamá, cacique dos Aruã e Mexiana; vingar sua gente de seus antigos opressores assaltando e levando terror a aldeias de "índios mansos" (escravos) dos entornos de Belém para os capturar e ir traficar com os franceses de Caiena a troco de armas e munições com que prosseguir a velha guerra que Piié, segundo palavras de Vieira; aceitou dar por encerrada, porém não concordou em se tornar súdito de El-Rei. Por acaso, nessas correrias na fronteira do Oiapoque acabou que o sargento-mor Francisco de Mello Palheta, homem bom da Vigia, mandado substituir o capitão João Paes do Amaral, enviado ao Rio Negro reforçar tropas contra Ajuricaba; no comando de tropa de guarda-costa voltou ao Pará sem o bandoleiro procurado vivo ou morto, mas em compensação com o cobiçado café furtado de Caiena que iria levar riqueza a São Paulo de Piratininga e São Sebastião do Rio de Janeiro.

SEM TUPINAMBÁS E JESUÍTAS O GRÃO-PARÁ
TERIA SIDO UMA ENORME GUIANA HOLANDESA.

Nos fins do século XVI mercadores holandeses com colonos e escravos africanos instalaram feitorias no Amapá, Marajó, Xingu e Baixo Amazonas até Gurupatuba (Monte Alegre) praticando escambo (troca direta de missangas, isto é, facas, machados, anzóis, espelhos e contas de vidro; por gados do rio, que são peixes-bois, tartarugas e pirarucus ou drogas do sertão, o cacau nativo, urucu, pimenta, quinino, ipecaconha e salsaparrilha). Em amizade com os índios desde as Guianas, holandeses, ingleses e franceses desafiaram o "testamento de Adão" (tratado de Tordesilhas entre os reinos de Espanha e Portugal de 1494, homologado pelo papa Alexandre VI, dividindo o mundo ultramarino entre as duas coroas católicas da Pensínsula Ibérica).

A suposta "linha" limítrofe de Tordesilhas passaria no Brasil sobre as atuais cidades de Belém do Pará e Laguna, em Santa Catarina. A posse de Portugal ficava a leste da repartição por um meridiano de 370 léguas a partir de Cabo Verde para o ocidente. A Espanha, então, cabia a porção a oeste, ou seja toda Amazônia atual desde a baía do Marajó... Por isto, o cartógrafo real Duarte Pacheco Pereira que, estivera nas negociações de Tordesilhas, foi mandado secretamente ao Pará, em 1498, a fim de fazer observações astronômicas "in loco" possibilitando o "descobrimento" (revelação) do Brasil em 1500, por Pedro Álvares Cabral mandado em embaixada com grande frota à Índia. Pinzón achou, porém não "descobriu" a foz do rio Amazonas ao qual chamou de Rio de Santa Maria de La Mar Dulce; mantendo o achado sob segredo pensando que pertencia à coroa de Portugal nos termos do tratado de 1494.

Aí está o famoso "espaço vazio" da historiografia colonial, habitados por milhões de nativos que o ocupavam há milhares de anos e falavam outras tantas milhares de línguas diferentes, como ensina José Ribamar Bessa Freire, na obra fundamental dos estudos amazônicos, Rio Babel, a história das línguas na Amazônia. Os Nuaruaques, ditos "nheengaíbas" pelo inimigo hereditário tupinambá, mais tarde chamados de Marajoaras pelos portugueses; pertenciam, portando, ao vasto circum-Caribe com numerosos povos de cultura e tronco linguístico Aruak. Amigos dos panaquiris (brancos holandeses e ingleses) por causa do comércio. Odiavam os Kalina (caribe, donde a origem da palavra canibal) devido à guerra antropofágica na qual eram vítimas e ao rapto das mulheres aruaques invejadas pelo segredo do curare (veneno para flechas) e manipulação da mandioca brava, venenosa. Sendo mais numerosos e antigos nas terras baixas costeiras da Amazônia, os povos aruaques chegaram até o Pantanal e o Delta do Parnaíba (Piauí, no Nordeste). Onde, em conjunto com os Tapuia ou Gê, passaram a guerrear contra a invasão dos Tupinambá.

Recuaram os "nheengaíbas" para a região das Ilhas do Pará onde resistiram com êxito, primeiramente ao inimigo hereditário Tupinambá e depois de 1615 - ano da tomada de São Luís do Maranhão -, aos portugueses aliados aos guerreiros tupi cristianizados. O empate dos índios Marajós, três séculos antes dos seringueiros do Acre; instintivamente combinou guerra e paz em relação aos colonizadores. Souberam os camaradas de Piié negociar o apoio dos Jesuítas em conflito com os colonos escravagistas. Cumpre observar o papel dos índios escravos dos padres como intermediários entre seus parentes nas ilhas e o Convento de Santo Alexandre, eram eles tradutores das línguas "dificultosas" e a boa língua nheengatu. Fato semelhante ao relatado pelo sargento-mor de milícia da vila de Monforte (aldeia de Joanes), índio sacaca Severino dos Santos ao naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, na Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó (1783).

Tempos passados, no Acre seringueiros de Chico Mendes com movimento semelhante do empate dos índios das bocas do Amazonas, conseguiram mostrar ao Brasil e ao mundo que madeireiros e fazendeiros atacavam povos da floresta tal qual diabos velhos Bandeirantes de outrora. O empate na Floresta foi, então, percebido como contra-ataque não-violento de populações tradicionais ao colonialismo na Amazônia. 

Atores do empate e seus aliados socioambientais nas cidades dilaceradas pelo consumismo alienado se tornaram como árvores, pássaros, raízes, animais e cursos d'água. Caruanas (forças resilientes da mãe Natureza), vóduns e orixás, santos e anjos protetores da igreja de Jesus Cristo estavam todos com essa gente antigamente lesada pela Civilização cristã. 

Mortos ressuscitavam no Kuarup, mulheres se tornavam seringueiras, castanheiras, cueiras, farmácias vivas. Velhos se levantavam como guerreiros e voavam feito pássaros, os bichos também entravam no Empate, insetos, as larvas, o general Plasmódio empatava a cobiça estrangeira do "celeiro do mundo"... Os homens mateiros viraram pés de sapucaia, sapopemas, tucumanzeiros onde mora o espírito da mata Surrupira. Crianças brincavam sem medo da Matinta Perera e eram como igarapés, os lagos, orvalho, subiam pela ramagem da Samaúna para se tornar nuvens e chuva.


Porém, no ano de 1988, um tiro assassino ecoou no coração da floresta. Acabou a brincadeira; pássaros voaram alarmados, os bichos correram a se esconder no oco do mundo. A bala matou Chico Mendes aos 44 anos de idade, seringueiro, líder sindicalista,  a mando do estúpido fazendeiro Darly Alves. O motivo do crime foi a atuação de Chico em defesa do seringal Cachoeira que Darly em sua loucura desejava transformar em pasto para gado. Na verdade, o fazendeiro idiota é só um instrumento de ocupação em nome de um poder estranho. Chico Mendes não foi o primeiro nem seria o último a ser morto por defender a Amazônia: ele se tornou herói da Criaturada grande de Dalcídio, símbolo da luta de índios e negros lesados na Conquista da antiga terra dos Tapuias. Dois anos após do crime, o sindicalista da floresta foi homenageado com a criação da Reserva Extrativista Chico Mendes: o homem amazônico à margem da História, no dizer de Euclides da Cunha; expulso do paraíso ecológico como predador irreconciliável com a Natureza; mediante rito e sacrifício do sangue derramado do seringueiro Chico não só entrou no cerne da história como passou ele a ser considerado protetor número um do meio ambiente. Era, pelo decreto de 13 de março de 1990, a primeira reserva extrativista a par das terras indígenas e quilombolas, com que o Brasil se colocou na vanguarda da conservação das florestas tropicais.

E a velha ilha dos Nheengaíbas, Marinatambalo ou Analau Yohynkaku; berço da ecocivilização Marajoara de 1.600 anos de idade, também está refazendo a história de sua Criaturada grande desde 1939, com Dalcídio Jurandir escrevendo na vila de Salvaterra, antiga pátria Iona ou Sacaca; os primeiros dois romances da saga romanesca do Extremo Norte. Em 1972, o conjunto da obra dalcidiana recebeu o "Machado de Assis", da Academia Brasileira de Letras e no ano seguinte, o marajoara que veio de longe, padre Giovanni Gallo - Leonardo Boff caso ainda não tenha feito, deveria mostrar ao Papa Francisco a obra do jesuíta que implodiu na ilha do Marajó -, inventou o primeiro ecomuseu brasileiro, com nome de O Nosso Museu do Marajó

O Pesqueiro Real que antecedeu a Capitania da Ilha Grande de Joanes (1665), com sua história humana deplorável (cf. Alexandre Rodrigues Ferreira, Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, ou Marajó, Lisboa, 1783) servindo de cativeiro a índios sacacas para pesca e moqueio de tainha que foi "moeda corrente" até meados do século XVIII no pagamento de funcionários do governo, soldos da tropa e côngrua dos padres; conheceu dia de libertação com a criação da primeira reserva extrativista marinha na Amazônia: a Reserva Extrativista Marinha de Soure (dita dos Maruanases), criada pelo decreto de 22 de novembro de 2001. Seria caso de proclamar: o Empate deu certo! 

Chico Mendes estendeu sua proteção sobre as populações tradicionais amazônicas, desde os confins do Acre até a Amazônia Marajoara. Seis anos depois, a lei 11.516, de 28 de agosto de 2007, criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Mas, a Criaturada ainda carece se empoderar de toda esta longa história: empatar a grilagem das fontes históricas do Povo Brasileiro.
O descobrimento da Amazônia Marajoara resta a fazer, embora se fale desta fundamental e incontornável região amazônica desde 1500, com a viagem de Vicente Pinzón, quando ele passou pela foz do Amazonas e assaltou uma aldeia, provavelmente, Aruã e levou dali 36 "negros da terra" (índios escravizados) e uma mucura a qual chamou de "animal monstruoso" (ver O Novo Éden, de Nelson Papavero et. al.). Pinzón escreveu que os índios chamavam Marinatambalo àquela que se chama ilha do Marajó. Enquanto Ferreira Penna diz que ouviu um dos últimos falantes da língua aruã, chamado Anselmo José; dizer que a ilha se chamava entre eles Analau Yohynkaku... Segundo o esquema de fases de ocupação do Marajó, os Aruã foram os últimos a chegar por voltas de 1300 e os primeiros a entrar em choque com os portugueses do Pará e seus aliados Tupinambá.

Além do relato da viagem de Vicente Pinzón, de interesse para biogeografia e história do Marajó, O Novo Éden apresenta o mameluco Diogo Nunes (fonte de 1538) que reporta migração em massa de Tupinambás de Pernambuco ao Alto Amazonas, antes de Orellana e Carvajal (1542) e a Notícia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lugares que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas; texto de autor anônimo encontrado na Biblioteca Real do Porto (Portugal) e considerado como primeira fonte biogeográfica sobre a ilha grande do maior arquipélago fluviomarinho do mundo. [nota:
Noticia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lugares que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas. Revista do Instituto Historico e Geographico do Brasil, Rio de Janeiro 67 (1): 294-301. [Cf. Papavero & Teixeira, 2000x]. [Seg. o Prof. José Varella (comum. pess.), seria da autoria de Florentino da Silveira Frade]. In "Nomes populares conferidos à Panthera onca (Linnaeus, 1758) (Mammalia, Carnivora, Felidae) no Brasil -- https://www.revistas.usp.br/azmz/article/view/126851].

A arqueologia marajoara aponta a um passado de 5.000 anos, aproximadamente, dos começos do povoamento das terras baixas da América do Sul. O chamado paleo-Índio andou errante nesse enorme espaço labiríntico, rico em biodiversidade, deixando gravado nas pedras do Baixo Amazonas, notadamente em Monte Alegre, sua odisseia. Na ilha grande do arquipélago do Marajó o nômade inventou o paleolítico amazônico cerca do ano 400. Quer dizer, a primeira cultura complexa da Amazônia (ler "Cultura Marajoara", Denise Shaan). O descuido e maltrato da história e herança patrimonial do povo marajoara é uma vergonha da civilização luso-brasileira, que se soma à dívida moral do Ocidente em relação aos povos nativos da África e da América. 

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