400 ANOS DE BELÉM DA AMAZÔNIA: RELEITURAS DA "HISTORIA DO FUTURO" - A MISSÃO DE VIEIRA NO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ (1652-1661). COLONIALIDADE NO MUNDO PÓS-COLONIAL.


expulsão do Padre Antônio Vieira com os jesuítas do Grão-Pará (1661) em represália dos colonos portugueses, representados na Câmara de Belém, à ação da Companhia de Jesus contra o acordo de paz com os caciques das ilhas do Marajó (1659) e a escravização dos índios (gravura do século XVIII).




A PARTE QUE ME TOCA NO FUTURO DESTA HISTÓRIA


Todo mundo sabe da parte que me cabe neste latifúndio: o amanhã da Criaturada grande de Dalcídio, como dizia Eneida de Moraes a respeito das populações tradicionais no romance de Dalcídio Jurandir. A cabocada geral, etnia nova do florão da América, rebento forte do extremo-norte brasileiro feito de povos ameríndios, pretos e brancaranas sob sol e chuva no equador do Novo Mundo.

Por esta causa eu converso sem preconceito com gregos e troianos, faço negócio com o excomungado Jurupari ou até com o Capeta. No folclore de minha fátria, que é o Marajó velho de guerra, o maior arquipélago fluviomarinho do planeta sito à boca do maior rio do mundo; os sumanos cabocos deram o que fazer até ao diacho a quem eles chamam Berto, com certa camaradagem, fazendo-o mijar nos pés de açaizeiro no açaizal para o açaí pretejar (amadurecer) de vez e começar logo a safra do ano em nossa varja. 

Isto ocorre sempre a 24 de agosto, dia do dito cujo. Tenho pra mim que o nome caboco do coisa ruim é "Bartolomeu", mas dentro do mato se converte de fato no tal de "Berto" na língua ruim do índio nheengaíba malmente batizado e catequizado depressa. Reminiscência, paresque, do massacre de malvados protestantes pelos bons católicos de Paris, na Noite de São Bartolomeu, que o caboco ouviu dizer por boca do mestre padre. Claro que, afinal de contas, a culpa da matança infernal foi do Diabo. Como, por aqui, segundo os brancos tudo que não presta vinha dantes por artimanha de Jurupari para arruinar a obra de Cristo...  Olhai a isto!

Como esta história do arco da velha veio parar nas ilhas do Pará grande? Só podia ser de boca em boca pela teia de catequistas e colonos. E nós com isto? Ora, aqui na varja a gente tem fama de preguiçoso. Mas, de verdade, a gente peleja todo dia desde jito: o trabalho da gente é que não aparece... Portanto, se Deus nosso senhor trabalha eternamente pela salvação de todo mundo, o tal de Berto por mais esperto que seja não pode no sítio se furtar de trabalho honrado e ficar sem nenhum serviço que preste. Por isso no dia dele o Diabo anda à solta e fica doido pra provocar acidentes mortais, dizem os cabocos. Então, o danado trabalhava enquanto caboco tirava folga. Hoje, porém, que açaí dá dinheiro e todo mundo com grana fica festeiro como o diabo gosta, ninguém para de cuidar do açaizal nem no dia do Berto. 


CONTATOS DE PRIMEIRO GRAU


Desde muito tempo antes da chegada dos europeus os índios tupinambás da margem direita do Pará e do lado contrário os índios aruãs, anajás, mapuás, guaianás, tucujús, cambocas e outros mais, chamados vulgarmente Nheengaíbas; viviam em acirrada guerra canibal. Sem saber nada a respeito deste hereditário estado de beligerância no Amazonas pré-colombiano, mercadores holandeses vindos das Antilhas e Guianas pacificamente praticaram escambo com os índios da região das ilhas, passando a ser camaradas deles na troca de "miçangas" (facas, machados, contas de vidro, etc.) por "drogas do sertão" (cacau, urucu, castanha) e "gados do rio" (peixe-boi, tartarugas, pirarucu). Esses estrangeiros traziam suas famílias e escravos negros africanos, que foram provavelmente os primeiros a chegar na Amazônia nesta condição.

Sobre o aparecimento dos primeiros negros na Amazônia, antigo relato da travessia da África para a América pelo rei mandinga Abubakari, duzentos anos antes de Cristovão Colombo, diz que uma flotilha de duzentos caiaques antecipou a expedição do rei com dois mil remadores. Estes primeiros navegadores, segundo o sucessor de Abubakari teria contado no Cairo em peregrinação a Meca, ao se aproximar de um grande rio de água doce foram envoltos por grandes vagas que os tragaram, com exceção de dois caiaques cujos remadores vinham por últimos e que, com grande esforço, puderam desviar-se do turbilhão e depois de muito tempo retornar ao porto de partida para dizer ao rei sobre o acontecimento. Esta história faz paralelo a uma velha lenda marajoara sobre a origem do conhecido fenômeno das Pororocas, na foz do Amazonas. 

Para os cabocos o fenômeno é encantado: são três pretinhos de surgem do fundo do mar como que surfando sobre as ondas, cada um em pé em cima dos principais vagalhões que entram rio adentro por vários quilômetros e cujo fragor começa pelas bandas do Oceano. Desde quando os índios das bocas do Amazonas viram negros africanos? Segundo fontes históricas conhecidas (e os historiadores são obrigados a se limitar às fontes) foram holandeses, pelos fins do século XVI, que introduziram negros escravos nesta região. Não se sabe exatamente o que houve com estes escravos quando da expulsão dos holandeses e ingleses. Sugerem-se que os estrangeiros se retiraram com suas famílias, outros morreram em combate e alguns negros encontrados com seus amos podem ter sido capturados pelos portugueses, dado o valor do "negro da Guiné" comparado ao "negro da terra" (escravo indígena). Em todo caso, assim como a história de Abubakari termina com o registro dos "índios pretos" das Antilhas (Garifunas), pode ser que a Amazônia tenha tido seus primeiros cafuzos (filhos de índios e pretos) desde tempos remotos, na origem dos mocambos (quilombos) do Amapá e Marajó. Já sabemos que os primeiros "negros da terra" (escravos indígenas) da América do Sul foram capturados pelos homens de Pinzón, em 1500, na ilha Marinatambalo (Marajó).

Corsários franceses, pelo lado do Maranhão, também fizeram amizade com os Tupinambás e, convidados, por estes acabaram por estabelecer a colônia de La Ravardiére, convencido pelo aventureiro Charles Des Vaux que o Maranhão prometia mais vantagens que a Guiana. Desta maneira, os franceses penetraram facilmente o Rio Pará chegando até o Tocantins cerca de Cametá. Com isto a guerra canibal entre Tupinambás e Nheengaíbas reacendeu.

Nas Europas sabem o que sucedeu lá naquela noite fatal de São Bartolomeu por culpa, evidentemente, do Cramunhão.  Meus antepassados, de parte a parte, sofreram horrores em diversas guerras de fronteira na Península Ibérica e na América do Sul, principalmente na guerra-civil amazônica a que chamam Cabanagem (1835-1840) onde quase metade da população foi ceifada. Meu bisavô paterno foi recrutado como "voluntário" da Pátria para a guerra no Paraguai, voltou ao Pará para morrer da tuberculose que lá ganhou. Com isto, seu primogênito e meu avô paterno, foi mestre escola em Muaná e Ponta de Pedras onde casou com minha avó tapuia, ficou viuvo duas vezes e teve grande prole em três casamentos, dois destes com mulheres negras. Minha bisavó materna, asturiana de sangue na venta, depois de perder marido e filhos como bucha de canhão naquelas odiosas guerra de Espanha determinou salvar o filho derradeiro, que veio ser meu avô materno mandando-o ao Marajó, praticamente fugido, da Galiza através de Portugal para se exilar no interior de Ponta de Pedras onde se casou a prima dele e minha avó. Tiveram eles cinco filhas e um filho, vivendo em paz até morrer, ela em meia idade e ele com mais de oitenta anos. Breve história de família que faz de mim marajoara de quatro costados.

Eu nasci nos tempos da II Guerra Mundial e me lembro do desabastecimento causado pelo bloqueio da navegação costeira e de notícias da guerra pela rádio "A Voz da América". Minha mocidade, praticamente, foi parar no lixo da Guerra Fria com a Ditadura militar (1964-1988) e quando acaba vou envelhecendo a ver o Diabo solto no redemoinho do aquecimento global, que traz ventos aziagos do que já chamam a III Guerra Mundial... 


DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL E DA CHUVA


"... não fiz mais do que desmanchar uma meia velha, dessas que serviam para guardar dinheiro, mas a meia que desmanchei daria um punhado de lã, ora o que aí está corresponde à lã de cem ovelhas, e quem diz cem diz cem mil, que explicação se encontrará para este caso,..." (Maria Guavaira) "Jangada de Pedra" / José Saramago.



Muitas vezes, em nossos dias a civilização ocidental se parece a "uma meia velha, dessas que serviam para guardar dinheiro"... Com o aquecimento global e mudança climática urge desmanchar esses velhos apetrechos coloniais de juntar dinheiro, lá e cá; que a global colonialidade dos espíritos alberga e reciclar o material e cultural usados para refazenda duma economia real. 

A metáfora da jangada extravagante de Saramago vem a calhar na atual conjuntura, não só para Espanha e Portugal se voltar às suas origens de ultramar e se desgarrar do fetiche racista da deusa Europa; porém para o Brasil e mais países-irmãos de língua portuguesa se enxergar no mapa-múndi como porto seguro do país do futuro.  Oxalá a jangada de pedra, não digo remontar o Amazonas com risco de encalhar no mar de aluvião e se confundir com a ilha do Marajó; mas quem dera uma escala frutuosa na ilha de São Luís do Maranhão, a folhear os quatrocentos anos de invenção da Amazônia.

A teoria do segredo dos descobrimentos portugueses (cf. Jaime Cortesão) escondeu as antigas navegações da corrente equatorial marítima no oceano Atlântico e o achamento do Brasil até seu descobrimento (1500), forçado pela viagem de Colombo (1492). A conquista da Guiné pelo reino de Portugal e levantamento da fortaleza de São Jorge da Mina certamente foi ao encontra da corrente equatorial e ainda pode localizar, no mar invisível dos encantados onde residem a grande aventura marítima de Abakari e a lenda do rei Dom Sebastião, vestígios da ancestralidade afrolusitana em casas de Mina no Maranhão e Pará. 

Mas ainda na ressurreição radical da esperança e alegria do humanismo no subversivo "Evangelho Segundo Jesus Cristo", a jangada de Saramago poderia vir de bubuia na corrente equatorial marítima aportar na costa do Salgado Paraense ou na Baixada Maranhense. Hegel estava certo, porém sua filosofia estava de pernas para o ar: os pais da igreja também eles não andavam errados na perspectiva revolucionária daquele tempo; todavia educado na Bahia de Todos os Santos e iniciado nos mistérios do Maranhão e Grão-Pará o profeta Antônio Vieira, com olhos fixos na utopia evangelizadora, colocou os pés da missão amazônica no chão da realidade decifradas as trovas sebastianistas do sapateiro Bandarra em requintada arte política da independência das nações frente a quaisquer impérios, segundo a lei do mais fraco (codinome resiliência do Homo sapiens: na Amazônia, graciosamente taxidermizado, na "Viagem Philosophica" pelo sábio Alexandre Rodrigues Ferreira, como "H. Sapiens, var. Tapuya"). 

A Criaturada agradece.

Então, trezentos anos antes do evangelho profano de Saramago, Vieira com sua heresia judaizante já estava a vogar em águas turvas, em sua canoa furada a reclamar consertos a toda hora; como as tábuas da Lei na arca da aliança traduzidas em cerâmica marajoara trazia ele no velho baú barroco por acaso debaixo de panacarica indígena, a enigmática, para o século XVII, "História do Futuro": vasta compilação de antigas profecias repensadas com vislumbres do porvir no cenário desconhecido do novo Nilo -- que é o rio das Amazonas --, onde o padre grande dos índios re-suscita ideias para o bem de toda humanidade.

E os filhos da loba romana que, em nome de Jesus Cristo, matam e despedaçam os cordeiros antes de mirar a estrela Polar atravessando no trilho de Colombo; fariam melhor em ser passageiros da jangada de Saramago à deriva no Mar-Oceano para o hemisfério Sul sem cartas náuticas, astrolábio e piloto tal qual navegou durante séculos a arca de Noé apenas guiada pela fé cega, fado afiado; sobre as imaginárias águas do Diluvio até tomar pé nos píncaros da ciência e desembarcar no terreno da realidade. Caminhamos...

Consta que, no dia 29 de abril de 1659, Vieira ao profetizar o Quinto Império a bordo de uma pequena canoa a remos na qual uns índios o levavam subindo o rio dos Tocantins rumo à aldeia do Camutá (Camutá-Tapera, hoje Cametá-PA), concebeu a utopia evangélica de pacificar todos filhos do velho Abraão saídos da Caldeia em busca da Terra Prometida, a começar pela pacificação das tribos perdidas do Cativeiro da Babilônia dispersas no rio Babel (Amazonas). Por esse caminho de Jerusalém além fronteiras não poderiam, na romaria fluvial do Círio de Nazaré, se irmanarem as cidades de Belém da Amazônia, Judá e Palestina? Um mundo sem imaginação e milagres é mundo sem esperança e alegria. Onde a alegria não vem a esperança se vai... Onde não há esperança a alegria foge. Não foi sem graça que "fizemos Cristo nascer na Bahia ou em Belém do Pará" ("Manifesto Antropofágico" (1928), Oswald de Andrade).

Quem duvida? Algum pajé, por artes mágicas, a povoar sonhos do payaçu durante paragens de descanso e o magro comer feito de peixe seco e chibé entre espichados dias de viagem colocou visões da Terra sem males na cabeça do pregador do "Sermão aos Peixes" (São Luís-MA, 1654; a caminho de Lisboa em demanda à lei de abolição dos cativeiros dos índios de 1655). A oração do sol, dizem índios e cabocos, é poderosa para surtir encantos a pessoas ausentes, quanto mais incutir intuição do paraíso selvagem durante o espetáculo introspectivo do pôr do sol sobre a infinidade de águas do rio Babel.  Se os índios depois da desmesurada andança até os confins do Alto Amazonas já estavam desiludidos em poder ir ao encontro da Yvy Maraey, talvez ouvindo a pregação do paraíso cristão, secretamente, como a sorte grande que de repente bate às portas do felizardo, o paraíso procurado na terra lhes viesse ao encontro. Simples coincidência, talvez, Vieira longe da corte começa a imaginar a segunda vinda de Cristo com seu reino realizado na Terra... A partir do reino de Portugal, no Brasil, mais precisamente no Maranhão (cf. "História do Futuro").

Não se acha escrito em nenhum papel projeto de Vieira sobre a vinda da família real portuguesa ao Maranhão, caso Lisboa fosse invadida pelos holandeses. Tampouco, o Marquês de Pombal manifestou vontade explícita em dar efeito à sugestão de Vieira -- talvez por não dar braço a torcer, quanto estava em conflito aberto com os Jesuítas por causa do adultério de Dom José I e as ilações metafísicas do padre Gabriel Malagrida dizendo este que o terremoto de Lisboa fora castigo divino pelos pecados de el-rei -- trazendo a corte para Belém do Grão-Pará. Contudo não faltam especulações nestas direções, notadamente quando se vê a obra do arquiteto Landi em palácios e igrejas do Pará que, segundo essas interpretações, não se justificariam de outra maneira. Ademais, há quem diga que Pombal teria proposto secretamente a Castela permuta de Portugal continental com as ilhas da Madeira e dos Açores pela colônia espanhola na América do Sul, que Espanha não aceitou. Se não é verdade, pelo menos Mazagão no Marrocos se transplantou a Mazagão na Amazônia portuguesa.

Ora, o padre grande dos índios e um companheiro jesuíta, talvez o padre Manuel Nunes, que o acompanharia ainda a quatro meses depois à perigosa ilha grande dos Nheengaibas para dar cabo a 44 anos de guerra desde a tomada do Maranhão (cf. Carta à regente de Portugal Dona Luísa de Gusmão, datada de Belém-PA a 11/02/1660), tecia com índios "nheengaíbas" cativos do convento de Santo Alexandre as pazes entre portugueses e a multidão nuaruaque das ilhas do Grão-Pará.

A primeira tentativa de paz aos Nheengaíbas, em 1656, conduzida pelo padre João de Souto Maior fracassou com mortos e feridos surpreendidos pelos índios guerrilheiros no meio da noite, como as tentativas armadas anteriores. Souto Maior regressou a Belém e nesse mesmo ano foi ao rio dos Pacajás acompanhando colonos na jornada do ouro, outro fracasso que custou a vida do padre e dos garimpeiros vencidos pelas febres e a fome.

No início de 1659, a junta das missões recebeu ultimato da Câmara de Belém para, finalmente, preparar a "guerra justa" contra os Nheengaíbas autorizada por Lisboa e a ser levada a efeito pelo governo da colônia. A guerra justa era exceção nos termos da lei de abolição dos cativeiros, para o caso de índios rebeldes ao batismo católico e desobediência ao rei de Portugal. Os índios do Marajó, portanto, caiam no artigo previsto por serem pagãos e acusados de praticar pirataria contra embarcações portuguesas, cujos produtos e "peças" (escravos) trocavam com traficantes franceses de Caiena, seus compadres de priscas datas. 

Colonos, soldados e padres no Pará dependiam de "índios cristãos" (tupinambás batizados e escravos indígenas capturados por estes, ditos "negros da terra") e a comunicação era feita em língua-geral (Nheengatu): os brancos aprendiam coisas da terra conforme os tupinambás lhes transmitiam e entre tupis e não-tupis a conversa era em nheengatu. Portanto, havia ali mundos paralelos onde o português servia exclusivamente à camada superior em correspondência com a metrópole, o tupinambá se reservada à intimidades das malocas tupis e entre a massagada cativa cada um se comunicava como podia, cuidando de aprender logo a língua-geral com que todos se entendiam.

Evidentemente, índios da Costa-Fronteira do Pará (Marajó) eram a mina de braço escravo onde os tupinambás iam buscar as "peças" demandadas pelo colonizadores, cada vez mais distantes e difícil de capturar. Os jesuítas tinham cativos de seu serviço, sendo eles mesmos em Murtigura (Vila do Conde) que faziam triagem dos "brabos" recentemente chegados do sertão com as 'tropas de resgate" e passavam a lhes instruir nos ofícios e a falar a língua-geral. Foram estes índios "tapuias" (não-tupis) preciosos informantes dos jesuítas através do Nheengatu. Vieira quanto escreveu à rainha ou elaborou a "História do Futuro" (para se defender no tribunal da Inquisição onde estava processado) omite ou inventa nomes para seus informantes "nheengaíbas", por motivos óbvios.

Diz ele que foram dois índios "embaixadores" levar aos tuxauas nheengaíbas uma carta do seminário com proposta de paz a fim de evitar a "guerra justa". Conhecendo um pouco de antropologia pode-se duvidar do relato formal, mas sabendo que os índios das ilhas, peritos em camuflagem; frequentavam assiduamente as cercanias da Cidade sem ser vistos ou impedidos pelos soldados e inimigos hereditários indígenas; é plausível crer que havia mais correspondência entre cativos e seus parentes selvagens que se pode imaginar.

Por isto, a surpresa da chegada dos emissários com uma comitiva de caciques, onde Piié se destaca como o mais ladino, na quaresma de 1659. O nheengaíba diz já conhecer a fama do padre grande por notícia dava por seus parentes e que estes nunca quiseram a guerra contra o rei de Portugal, enfim a guerra existe por culpa dos portugueses desobedientes ao monarca (se é verdade que o tal Piié acusa "portugueses" queria dizer Tupinambá, ou o intérprete traduziu mal e o padre chumbou desta maneira para atingir os escravagistas). 

Vieira diz que quer ir imediatamente com os nheengaibas, mas Piié responde ser preciso preparar aldeia nova na beira do rio para receber os padres, pois com a guerra todos tinham ido morar dentro do mato, pelas cabeceiras dos igarapés, onde os inimigos não os poderiam matar ou capturar. E que pelo mês de junho quando as chuvas diminuíssem voltariam os índios a Belém para levar o padre ao Marajó. Já os colonos ridicularizam as tratativas de paz e Vieira toma coragem e vai a Cametá quando ele escreve a famosa carta secreta ao bispo do Japão, seu confrade e amigo André Fernandes.

O bispo do Japão tinha sede em Lisboa e a evangelização da China e Japão ficava a cargo de jesuítas sob regime do Padroado Português (acordo entre a Santa Sé e o reino de Portugal) face a dificultosa questão de "inculturação" (flexibilização da catequese) aos ritos chineses. Esta a possível explicação sobre a mensagem de Vieira à autoridade capacitada a entender a necessidade da nascente igreja particular da Amazônia portuguesa. Uma experiência missionária de larga escala para o mundo que o português inventou ou queria inventar.

Em junho, quando Piié e seus companheiros voltaram a Belém com uma flotilha de grande canoas, guardas do forte do Presépio temeram por um ataque dos índios do Marajó: fosse por que fosse o padre grande alegou doença e pela segunda vez não acompanhou os temidos e odiados Nheengaíbas jurados de extermínio e cativeiro pelos portugueses e seus aliados tupinambás. Enfim, pelo mês de agosto do mesmo ano saiu Vieira para Cametá a fim de equipar canoas com "índios cristãos" (leia-se tupinambás) e pequeno destacamento de praça, com destino à ilha grande dos Nheegaíbas. O piloto da jornada Vieira não disse, mas se pode adivinhar se nos lembrar dos dois "embaixadores" que foram levar a inverossímil "carta-patente" a índios que não falavam ainda sequer a língua-geral, muito menos o português. Por certo, Vieira iria precisar de intérpretes em "nheengaíba"... Lá, no sítio dos Mapuá, falar português ou nheengatu àquela altura era o mesmo que falar grego.

Quem conhece geografia da região, considerando viagem a remo de Cametá até Breves nos dias atuais há de concordar que dobrando a boca do Tocantins ao Pará, ou vindo por dentro de algum igarapé para varar já em Oeiras (antiga aldeia do Araticum), iria costear a margem direita até cerca da baía de Bocas a fim de atravessar em segurança e hora certa para a boca do Mapuá, dentro da temida ilha grande. Pela primeira vez na história, franqueavam os Nheengaíbas seu território ancestral a inimigos hereditários e seus amigos "cariuás" (malvados). Região de Furos que dá acesso aos centros do Anajás e Arari, no coração da ilha, vasto território do tamanho da Holanda, diga-se de passagem.

Pelo dia 22 de agosto os portugueses com seus "índios cristãos" entraram no rio dos "Mapuaises" [Mapuás] e logo encontraram-se com os anfitriões que vinham com trombetas improvisadas feitas de folhas verdes de palmeira inajá e gritos de "pocema" (alegria), paramentados com seus cocares vermelhos de pena de guará. No fim da tarde estavam instalados na aldeia nova com maloca para servir de igreja do Santo Cristo. Mas os visitantes ainda tiveram que aguardar outras nações indígenas igualmente convidadas para o ato cerimonial... 

E aí, de 23 para 24, dia do Berto; o Diabo meteu-se à delegação dos portugueses. Dizendo o sargento da praça que os tupinambás estavam inquietos, desconfiados dos nheengaíbas estar preparando uma cilada para os matar a todos... Vieira, escreve na carta à rainha, que precisou de toda energia para despedir soldados e "índios cristãos" a retornarem deixando-o só com o padre que o acompanhava até concluir a cerimônia. Vista a firme decisão de Vieira ficaram portugueses e tupinambás quietos ao canto e ainda demorou mais dois dias para chegar a última etnia, a dos "Mamaianases" [Mamaianá] reputada dentre as mais bárbaras. 

Sem mais espera, logo que os Mamaianá se apresentaram, Vieira celebra missa com nheengaibas e tupinambás separados por uma fileira de soldados da praça de Cametá. Diz ter selado as pazes com ata lavrada e os chefes nheengaibas batizados juraram vassalagem ao rei. Com exceção de Piié que protestou lealdade, referindo que os primeiros a jurar deviam ser os próprios portugueses pois não cumpriam suas promessas.

Que nem Bandarra foi profeta, Piié foi verdadeiro pajé! No caso, o destrambelhado rei Dom Afonso VI, que seria deposto pelo próprio irmão Pedro de Bragança com justificativa de incapacidade física e mental, inclusive para consumar o casamento real; deu o dito pelo Padre fiado na palavra de el-rei pai, por não dito. E assim, sem mais considerações, doou el-rei filho a ilha dos Nheengaíbas ao secretário de estado Antônio de Sousa de Macedo para criação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), expropriada aos índios sem dez reis de mel coado em pagamento de indenização. 

Mas a tal capitania panema sofreu tenaz oposição dos "índios bravios, desertores e escravos fugidos que existiam pelos centros da ilha" (cf. Alexandre Rodrigues Ferreira, "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó"). Vinte e cinco anos se passaram até que um corajoso carpinteiro chamado Francisco Rodrigues Pereira (1680) tomasse a peito levantar o primeiro curral de gado, no rio Arari, trazendo algumas cabeças de vacas e cavalos cabo-verdianos que perambulavam pela Cidade do Pará. Mesmo assim na preguiça da distância metropolitana de seus senhores e entregue ao deus dará a ilha grande pariu a baronia de Joannes e suas sesmarias de cartório, finalmente incorporada à coroa (1757) mediante régio pagamento ao último barão transformado já em Visconde de Mesquitela, quando todos os ditos barões jamais meteram um prego para aumento na herança recebida de mão beijada.

Saindo de Mapuá de passagem de volta a Cametá, Vieira levou do Mapuá pacificado índios nheengaíbas para fundar as aldeias de Aricará (Melgaço) e Arucará (Portel). Em 1661, esgotada a paciência dos colonos, Vieira com seus jesuítas foram expulsos do Pará...  Já se sabe que o Diabo são os outros (segundo Sartre) ou Jurupari, na concepção medieval dos padres capuchos da França Equinocial que viam o catolicismo cercado de demônios por todos lados: ignorantes de Freud cuja teoria não chegou ao Maranhão e Pará antes do século XX, pobres missionários da rainha católica Maria de Médici, metidos goela abaixo do colonialista calvinista La Ravardière como condição obrigatória de catequizar índios antropófagos e colonizar com auxílio da coroa de França terras incógnitas debaixo da linha do equador da América do Sul, frescamente conquistadas na busca da Terra sem males (lugar mítico onde não há fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte; segundo a antiga crença dos caraíbas ou pajés açus) pelo bon sauvage Tupinambá aos bárbaros Tapuias. 

São Luís do Maranhão tomada aos franceses pelos portugueses vindos do Ceará em aliança de armas com os tupinambás de Jaguaribe, em 1615, a guerra colonial se expandiu com a construção do forte do Presépio (1616) até a Costa-Fronteira do Pará (ilha grande dos Nheengaíbas, depois dos Aruans, de Joanes ou Marajó, um dia dita de Marinatambalo por Pinzón (1500), aliás Analau Yohynkaku dos aruãs), na suposta linha de Tordesilhas (1494-1777) rompida com a expulsão dos holandeses e ingleses (1623-1747), deu espaço ao uti possidetis de 1750 iniciado com a entrada de Pedro Teixeira e seus 1200 tupinambás de arco e remo (1737-1739), em viagem de Belém a Quito (Equador), ida e volta.

O capitão Pedro Teixeira (1637/39) plantando o marco lusitano na baliza do rio do Ouro, no Alto Amazonas; chancelou no tempo e no espaço os contérminos ideais da fronteira setentrional da Amazônia portuguesa, arrancada um dia distante do chão de pedra da velha Lusitânia para atravessar o Mar Portuguez e ir morar em Olinda (Nova Lusitânia, Pernambuco) e chegar em Feliz Lusitânia (Belém do Grão-Pará). Vieira (1659) a pacificar índios da boca do Amazonas com base na abolição dos cativeiros (1655) por ele obtida junto ao rei dom João IV e os trazendo ao partido português. E o arguto Alexandre de Gusmão (1750) com sua diplomacia luso-brasileira do uti possidetis real contra o uti possidetis juris espanhol. Três vidas de real grandeza que se entrelaçam por diferentes caminhos para chegar a destino comum.

Eis o tecido orgânico da territorialidade brasileira urdido pelos próprios brasileiros de diferentes origens e regiões, defendida por nossos maiorais para reconhecimento das mais nações do mundo. Com esta arquitetura das fronteiras sul-americanas, espinha dorsal da integração pós-colonial no novo continente; já se vislumbra a Pátria grande: a geografia nos fez americanos e a história iberianos (cf. "Novíssima Viagem Filosófica", José Varella Pereira).

Mas, o relato arcaico da crônica colonial pode dar falsa impressão aos leitores do século XXI de que a invenção da Amazônia se fez aos bel prazer de alguns poucos potentados, reis e visionários sobre o espaço vazio. Por isto é preciso reler os velhos textos em novo contexto, onde conhecimentos modernos entram a confirmar ou retificar dados antigos. Mas, já há tempo Vieira contradiz a versão de espaço vazio onde a ação e a vontade do índio livre ou escravo não conta para nada... 

Num jogo sofisticado de linguagem entre dois mundos, o padre grande longe de se contentar apenas do púlpito para seduzir aplauso de reis e rainhas, viu o chão da realidade bruta ao comparar o tal rio das Amazonas com a Babel mitológica da Mesopotâmia (cf. José Ribamar Bessa Freire, "Rio Babel - a história das línguas na Amazônia"), onde Javé confundiu insensatos descendentes de Noé de tal maneira que não se compreendiam mais entre diversas línguas desconhecidas umas das outras. Apenas em Marajó os "nheengaíbas", em vez de uma, falavam várias "línguas ruins", incompreensíveis aos colonizadores e a seus indispensáveis guias tupis (falantes do "abaenga", a boa língua tupi-guarani; que deu base à lingua-geral amazônica ou Nheengatu).

Logo, a "Tapuya tetama" (terra tapuia) era mais que terra despovoada e vazia onde também vinha de fora a andeja nação Tupinambá, saída há tempos da Amazônia boliviana através de um largo percurso através do Chaco e do litoral do Brasil para norte e oeste até topar os confins do gigantesco Amazonas, se desvanecer do paraíso na terra que tanto procurava. Certo que o choque com inimigos resultava em empréstimos mútuos diante da massa avoenga (tamuya, tamoio, avô; depois tapuia, inimigo). 

O vasto, diverso e aparentemente vago mundo sul-americano ainda estava em evolução quando desenfreadas hordas europeias, tecnicamente superiores; arrombaram as frágeis portas do novo Éden. Todavia, os anjos guardiões do paraíso tropical eram minúsculos e invisíveis a olho nu e vieram a receber nomes latinos para conhecidos sintomas de doenças tropicais, com que o desastre final foi retardado, pelo menos, por duzentos e tantos anos. Também aí no terreno das trocas culturais entre o velho e o novo mundo a tese do espaço vazio sai reprovada, através de inventos como a borracha, drogas e remédios, e até a sugestão da revolução francesa (1789) pelo bom selvagem.

Na Amazônia nativa eram muitos povos das águas e muitas línguas dentre formidável biodiversidade: é de se notar que a teoria da evolução das espécies nasceu primeiramente da viagem de Darwin às Galápagos, mas amadureceu no diálogo de Alfred Wallace com o pai do evolucionismo, em viagem pelo Pará e o Rio Negro. Ao olhar intuitivo de Vieira -- sempre ele a buscar entender sinais misteriosos de profetas da Antiguidade nos signos nascentes da Modernidade --, não passa despercebido aquela gente a quem "as águas roubaram suas terra". Que por adaptação já não anda com as próprias pernas, mas com os braços sempre a remar. As matas submersas dão frutos de que se precisa para tudo e a pesca faz o milagre dos peixes para matar a fome.

Com tais diferenças de tempo e espaço as tentativas armadas dos portugueses com seus inseparáveis arqueiros tupinambás para invadir e ocupar as ilhas dos Nheengaíbas (Marajó) resultaram inúteis, apesar de elevado número de mortos e feridos entre forças atacantes e defensivas. As "tropas de resgate" (caçadores de escravos) e canoas de "drogas do sertão" (carregamento de cacau nativo, urucu, pimenta, salsaparrilha, etc.) que passavam entre o amazonas e o Pará eram assaltadas nas Ilhas por "piratas" nheengaíbas. 

Desesperados os colonos pressionaram seus representantes na Câmara de Belém para obter do governo colonial a "guerra justa" (cativeiro e extermínio) contra os rebeldes Nheengaíbas. Trata-se, evidentemente, de um jogo no qual só havia um único perdedor: o índio fosse como fosse. A colonização da Amazônia já tinhas suas primeiras vítimas, em 1619, com enganados casais açorianos aos quais o mercador e dono de navio Simão Estácio da Silveira prometera num folheto o paraíso no Maranhão: aqui logo o que se viu foi o inferno verde e a mais extrema pobreza diante de uma exuberante riqueza natural que parecia zombar dos iludidos colonos. Incapazes de levar a feito suas lavouras de costume começaram os colonizadores por roubar as roças dos índios, invadir suas terras e fazer seus filhos e filhas escravos.

Não sabiam com quem estavam se metendo. A gota d'água foi quando um filho do governador do Maranhão roubou a mulher mais nova e uma "venábulo" (lança de caça, zagaia) do cacique e pajé da aldeia de Cumã, chamado Pacamão. Dezenas de colonos foram massacrados pelos tupinambás com vingança das muitas ofensas que sofriam dos ingratos portugueses. Logo a guerra ao colonizador se alastrou ao Pará e, em 7 de janeiro desse mesmo ano, o cacique Guaimiaba ("cabelo de velha") comandou assalto ao forte do Presépio sendo morto sobre os muros da fortaleza. Com a morte do chefe os índios se dispersaram pelas matas dos arredores de Belém onde foram perseguidos. Pelo Maranhão, desde o Gurupi ao Guamá, a represália dos portugueses foi excessiva. Notabilizando-se em terror o capitão Bento Maciel Parente e Pedro Teixeira, que ficariam famosos.

A Amazônia brasileira é uma dádiva da mestiçagem física entre índios, brancos e pretos cozida no caldo de cultura do messianismo sebastianista com a utopia selvagem da Terra sem males: mas, tal qual o mar salgado são lágrimas de Portugal, por via de infinitos males germinou na paisagem convulsa e sangrenta do Novo Mundo a história do Brasil, doce e violenta ao mesmo tempo.


DEUS E A HISTÓRIA NÃO SÃO PARA OS MORTOS
 

José Honório Rodrigues ensinava que aos olhos de Deus todos estão vivos (pena que aos olhos de dogmas religiosos muitos desses viventes de Deus estejam no fogo do inferno nesta ou noutras vidas, quando não no limbo). Não importa qual tenha sido o deus de José Honório, quanto a mim pobre agnóstico ou ateu graças a Deus, às vezes me consolo com o deus de Espinoza, que é meio zen-budista. Então seria eu zen-bubuia? Já na história a última palavra não é dos vencedores de épocas passadas, mas sim das novas gerações que resistem e se empoderam da memória. Vieira desafiou a seus inimigos com certa dose de profecia, séculos antes de Che Guervara, ao dizer: "de derrota em derrota até a vitória final". São poucos mortos cada vez mais vivos em contraste com muitos em vida neste mundo como mortos. 

Os professores deviam colocar aviso em sala de aula, dizendo aos alunos: Cuidado, o mapa não é o território. E, sobretudo, adverti-los de que certa ou errada a historiografia pode ser qualquer coisa, mas não a história propriamente dita.

Claro que eu como todo pequeno burguês da província cultural do Pará ouvia falar de Vieira como também do célebre Marquês de Pombal sem jamais saber que eles, para os primeiros séculos da Amazônia brasileira, apesar de opostos um ao outro são como as duas faces da mesma moeda. Era caso de dizer, dai a Vieira ou que é de Vieira, e a Pombal o que é de Pombal... 

Falar da invenção da Amazônia sem Vieira e Pombal é como entrar na floresta sem mateiro e cachorro; navegar alto mar sem levar bússola. Aliás, a primeira vez que tomei nota da existência do déspota esclarecido de Portugal foi numa sessão de pajelança na ilha do Marajó, onde uma senhora "experiente" (curadora) vindo especialmente de Icoaraci para socorrer a um pobre descendente de enganados casais dos Açores, que se achava doente do corpo e do espírito; entre caruanas (espíritos telúricos) e orixás, a mulher invocou o espírito do falecido Marquês de Pombal (já convertido em vódum no rito afro-amazônico) para remediar a saúde física e psíquica de nosso amigo ribeirinho abalado por renitente panariço no dedo indicador da mão direita, não o deixando trabalhar. Cuja causa fora atribuída a feitiço, provavelmente, lançado por algum vizinho invejoso morador rio abaixo ou rio acima. 

Eu era um rapaz ignorante e pouco afeito ao respeito de tamanhos mistérios, já "herege" (descrente) por absoluta falta de fé...  E o compadre, "muito gente boa", me aconselhava: as coisas não dão certo pra ti porque nunca dizes 'se deus quiser'... Percebia eu que esse ditado tal qual fórmula mágica funcionava, mais ou menos, como misto de desejo e fé. Que nem "tomara", "oxalá" e o trivial "com certeza". Ora, não é que artistas de teatro mandam à merda uns e outros para lhes dar sorte? Então, o mantra caboco funciona a quem lhe crê. Já dizia meu velho pai "a fé é que cura, seu cara de mucura". Será? Por um problema qualquer eu estava mais para discípulo de São Tomé, apóstolo das Índias e protetor dos lavradores.

Em tempo: por acaso, entre livretos de cordel e ervas milagrosas da feira do Ver O Peso, havia eu topado e comprado barato um manual usado de medicina popular, donde pelo sintoma aventei que o mal do compadre era panariço que se podia, antes, remediar com compressas de álcool canforado. Mas nada, o homem teimou que era feitiçaria e o dedo inflamou que nem tomate maduro. Noites em claro, dores e desengano dos curadores, finalmente, venceram a paciência do compadre que aceitou conselho para pegar canoa e viajar a Belém. Onde foi bater na Santa Casa de Misericórdia e o médico de plantão lancetou-lhe o tumor dizendo-lhe que ficaria bom mas o dedo para sempre atrofiado como um espeto... Pena, pois no começo da doença e sem sequelas o remédio era aquele mesmo receitado pelo surrado manual de "Medicina Popular". 

Lá ficou nosso amigo até o fim da vida com defeito na mão e a alma machucada pela descrença dos pajés. Com mais algum tropeço seria ele, como tantos em parelha situação, candidato a conversão ao protestantismo que, no século XVII, moveu a cruzada amazônica do padre Vieira contra holandeses e ingleses. A diabolização de Jurupari e decadência dos pajés explicam hoje em dia a leseira amazônica. Sobre a falência multipla do catolicismo popular viceja hoje em dia a glória e prosperidade de pastores afoitos de igrejas pentecostais temerários, pisoteando ícones da Virgem e de Iemanjá; como outrora nos albores do cristianismo fanáticos como o Cirilo, bispo de Alexandria; vandalizavam cultos pagãos.

O BEM E O MAL JUNTOS NO VENENO E NO REMÉDIO

Como todos pregadores, Vieira tinha ganas de falar e talvez precisasse ouvir e ver mais... Ele atirou no que viu e acertou no que não viu: sua "heresia judaizante" (o Quinto Império do mundo ou o Reino de Jesus Cristo consumado na terra) seria anúncio ecumênico do futuro fazendo ponte aos direitos humanos e à diversidade cultural.

Bem diria o padre Giovanni Gallo, jesuíta que "implodiu" em meio a contradições do Concílio Vaticano-II na Amazônia Marajoara, em seu livro-reportagem "Marajó, a ditadura da água"; o pajé é um especialista em sociedade não-especializada, que no lugar se comporta como centro nervoso do universo. Porém, esse homem poderoso no seio da comunidade, que liga o mundo humano ao mundo dos espíritos das plantas e dos bichos encantados; também é um pobre dentre muitos outros carentes de remédio do posto médico e de escola dos brancos: saberes tradicionais e modernos não se excluem nestas paragens do rio Babel. A diferença entre o veneno e o remédio está na dose. As matriarcas da cultura Marajoara já sabiam disto, revela a arqueologia neotropical, há mais de mil anos atrás.

VIRADA AOS TEMPOS MODERNOS

Estamos falando de Vieira: uma personalidade complexa e genial na transição da Idade Média para a Modernidade, no século XVII luso-brasileiro. Esta ambiguidade que vem das margens do tempo e do espaço e que ainda hoje sebastianismo popular e barroco latino-americano representam. Para encurtar conversa, politicamente falando, fui alfabetizado por mãos de minha avó Sophia (na verdade tia e mãe adotiva de meu pai caboco Rodolpho Antônio) que, delicadamente, me fez ler de um fôlego só o primeiro romance que li na vida, "Marajó"; obra reveladora do 'índio sutil" meu tio e mestre. Uma leitura caboca afobada, diga-se logo a bem da verdade... Mais tarde, com ajuda crítica de mestre Vicente Salles li "Marajó", de novo, para descobrir as raízes ibéricas que estão nele, conservadas na sociologia da grande ilha (maior que os Países Baixos), onde "griôs" locais contam e aumentam um ponto...  A partir daquele chamado da africanidade marajoara mato adentro do Paricatuba -- "Missunga"... -- caíram-me as escamas dos olhos e vi claro a criaturada em seu drama milenar e a negritude além da melanina em meio à luta de resistência. 

Mais que isto apenas, me achei no mundo entre iguais das diversas diásporas da humanidade. Ou seja, compreendi por que Dalcídio diz ser o caboco marajoara um cidadão do mundo. E, pois, anos mais tarde por acaso no dia 25 de julho de 1995 (dia de Santiago e dia do agricultor), no lugarejo dito Antônio Vieira (antiga aldeia de índios "Guaianases", depois lugar de Vilar e Pau Grande), beira da baía do Marajó, no município de Ponta de Pedras descobri o payaçu dos índios para além da propaganda acadêmica da obra do "imperador da língua portuguesa".

Pena que esse Vieira que chama minha atenção não encontra interesse acadêmico. Mas, trezentos anos depois do controvertido missionário da Amazônia portuguesa, do mesmo modo como pajés descendentes dos antropófagos tupinambás canibalizaram a história do Marquês de Pombal para metê-lo na umbanda em socorro desta gente enganada pelas cortes d'além e d'aquém mar; também o conquistador das almas do rio Babel começa a ser assimilado pelo povo através do mito de Dom Sebastião. A prova está à margem da História entre populações tradicionais do Pará e Maranhão, de uma maneira que o payaçu jamais imaginou. Com o turcos encantados, Dom Sebastião fez morada à beiramar, em São João de Piradas, percorre com cavalaria celestial os Lençois Maranhenses... E eu já não me espantaria se o payaçu apompanhado de caciques das duas margens da vida e terceira do rio, aparecer em casa de Mina na hora de batuque.

Disse o bispo de Ponta de Pedras, Dom Angelo Rivatto; durante a homilia em missa campal no dito vilarejo Antônio Vieira, que naquele mesmo lugar houve o encontro histórico entre o superior das missões e os sete caciques do Marajó para fazer as pazes depois de muitos anos de guerra entre os índios das ilhas e os portugueses do Pará. 

Aquilo, para mim, foi o "estalo" do padre Vieira... Por curiosidade fui pesquisar a veracidade da informação e cheguei à conclusão que o encontro referido daria material para um baita filme documentário. Infelizmente, não foi lá na margem da baía e antiga aldeia Guaianá (ou "Guaianases" como escreveu Vieira (1660) e Alexandre Rodrigues Ferreira, "Guaianazes" na "Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó, em 1783), mas sim no rio dos "Mapuaises" [Mapuá, no município de Breves], segundo Serafim Leite, "História da Companhia de Jesus no Brasil". Sobre a grafia do português colonial para nomes brasílicos a crítica informa que já se comeu muitos 'ananases' (ananás) neste país. 


O JESUÍTA DE DOM SEBASTIÃO NO RIO BABEL

Se o poeta sapateiro de Trancoso, Antônio Eannes Bandarra, foi profeta da ressurreição do encoberto rei Dom Sebastião na pessoa física do Conde de Braga, coroado rei Dom João IV, para restaurar a independência e monarquia de Portugal: não poderia talvez o padre grande dos índios profetizar segunda ressurreição de Dom Sebastião, isto é, do falecido Dom João IV (1656)?

Em uma Amazônia portuguesa ainda em odor selvagem, aberta aos ventos da cobiça dos inimigos dos descobrimentos do mundo pela lusitanidade mãe; Amazônia mátria do surrealismo natural, última fronteira do mundo ocidental; no meio do mundo à beira mar plantado... Aqueles nove anos de missão para Vieira (1652-1661) era tempo de tudo ou nada: a morte do rei amigo e confidente deixava o astuto diplomata da Restauração do trono português, confinado em seu auto exílio e entregue à vindita de seus inimigos. 

Eis porque a metáfora arriscada a caminho da aldeia do Camutá (Cametá atual) sobre a profecia do condenado de Trancoso ("Bandarra é verdadeiro poeta"). O risco era mal calculado, pelo visto, o payaçu estava às cegas em seu labirinto amazônico. Precisava encerrar sua missão no Maranhão (atenção, quando se diz "Maranhão" na crônica setecentista que dizer Amazônia) e voltar depressa à corte sob regência da rainha viúva e tutora legal do filho menor e príncipe herdeiro. 

Na rede de intrigas palacianas a carta secreta do jesuíta d'el-rei no Maranhão ao bispo do Japão não tardou a cair no conhecimento do Santo Ofício requisitada para processo e condenação do réu sob acusação de heresia judaizante (o chamado "quinto império" prefigurado na diáspora judaica pelo monge Joaquim de Fiori e alimentada nos guetos por convertidos judeus e mouros ao cristianismo, onde o Sebastinismo português foi beber em sua fonte cristã-nova na esperança de enfrentar e liquidar o antissemitismo alastrado na Europa). 

As colônias ultramarinas não podiam ficar a salvo de espias com agentes espalhados desde a cúria romana até as irmandades e ordens religiosas sertão adentro do rio Babel (Amazonas), assim que negociantes, sertanistas e senhores terra e escravos que constituíam o pacto colonial entre o altar e o trono. 

Vieira com seus companheiros e índios cativos catequizados no convento de Santo Alexandre tramava alicerces teóricos do "quinto império" com fundamento numa proposição para pax amazônica podendo empolgar o reino de Portugal e a cristandade em geral (cf. "História do Futuro" e "Chave dos Profetas"). Aí o mapa da época não é mesmo o território ocupado milenarmente por, pelo menos, 50 mil almas de índios rebeldes e belicoso chamados, genericamente, por seus inimigos hereditários tupis, de Nheengaíbas (falantes da "lingua ruim", na verdade diversas línguas nuaruaques de tronco comum Aruak).

A perene lição ecumênica de Vieira nos diz hoje mais que nunca que a guerra serve mais depressa às conquistas. Mas, sem justa paz, tais conquistas de terras e glórias suscitadas pela cobiça são insustentáveis no tempo. Nada valem sem justiça e segurança da paz das almas que habitam o lugar no mundo achado e por achar.

Ao contrário, o sangue derramado clama por vingança e as riquezas roubadas levam com elas como maldição mais injustiça, sofrimento e perdição. A "ressurreição" do defunto Dom João IV (carta secreta de Cametá, Pará, de 29/04/1659, dita "As Esperanças de Portugal" do Padre Antônio Vieira, superior jesuíta das missões do Maranhão e Grão-Pará, ao bispo do Japão, jesuíta André Fernandes;
com notável semelhança da tese do rabino português de Amsterdã (Holanda) Menasseh ben Israel (nascido Manuel Soeiro, na Ilha da Madeira), amigo de Vieira, dizendo ser os índios do Novo Mundo descendentes das tribos perdidas do cativeiro da Babilônia)

O descobrimento do rio das Amazonas (Uene, simplesmente "rio" em língua aruaque; Paraná-Uaçu, "rio grande" em tupi; Marañon dos castelhanos e Amazonas dos portugueses), por Francisco de Orellana (1542) ocorre no contexto da conquista do Peru por Francisco Pizarro em nome império dos Reis Católicos, em 1530. Em Cajamarca deu-se o famoso encontro andino com desfecho desabonador para a civilização cristã, conforme já se tornara célebre desde a chegada de Cristóvão Colombo, nas Bahamas (ilha Guaanani, depois Salvador), em 12/10/1492, e o dominicano Bartolomeu de Las Casas deixou documentado. Não saciados da fome de ouro nas Antilhas, as matilhas de conquistadores com Hernán Cortes invadiram e saquearam o México desde 1519 e onze anos mais tarde era chegado o fim do império Inca. 

Embora o rio Amazonas tenha suas extremas fontes no Peru próximas à cidade sagrada dos Incas, Macho Picchu;  a invenção da Amazônia começa a partir de Quito, cerca de 1540, com a imponente e desastrada expedição de Gozalo Pizarro ao país da canela, na região da selva equatoriana, dez anos depois do massacre de Cajamarca, a morte dantesca de Atahualpa em mãos do perverso Francisco Pizarro e a tomada de Cusco. Como sabemos pelo relato de frei Gaspar de Carvajal -- que não fala em amazonas em nenhuma parte e chamou de "rio grande de Orellana" ao dito Amazonas --, terminou muito mal a primeira aventura amazônica na selva equatoriana, para a qual Francisco Orellana, alcaide de Puerto Viejo, no golfo de Guayaquil, chegou atrasado: abandonados pelos aterrorizados índios, perdidos na selva e famintos os aventureiros comeram a sola dos próprios sapatos para sair com vida e em busca de socorro Orellana acaba desertando, roubando comida nas aldeias ribeirinhas, lutando e matando índios no caminho para o mar. Quando, supostamente, para fugir à forca que inevitavelmente o esperava transformou indígenas em guerreiras amazonas que lhe deram combate próximo à atual cidade de Óbidos (Pauxis), no estado do Pará. Seguiu-se daí toda fabricação lendária do ciclo das Icamiabas e muiraquitãs. Na realidade, dizem alguns, as tais 'amazonas' seriam monjas do Inca, chamadas "virgens do sol", donde segue a lenda do El-Dorado ligada ao "tesouro do Inca" que teria sido levado pelas monjas para dentro da selva: uma tentativa dos próprios incas para induzir os espanhóis a deixar o Peru.





"O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive."
Antônio Vieira 

Indígenas protestam em frente a barreira policial na Câmara. Foto: Myke Senna / Mídia NINJA

será este o triste fim da "História do Futuro"?

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