Odisseia do cru e do cozido: do nomadismo da fome à fome de sabores exóticos. Metendo Lévy-Strauss na academia do peixe frito.



A cultura alimentar dos lugares conta a história do Homem movido pela fome hereditária a descobrir o mundo. Depois da invenção da agricultura, ajudado pela mãe natureza, o nômade apenas saído do mito da Primeira noite do mundo cobiçou o Ócio e se tornou sedentário.  Primeiro comer, depois filosofar...

Expulso do paraíso, que era o útero da Terra, pelo parto da memória urge caminhar a fim de reencontrar o jardim do Éden sonhado. Uma vez saciado o peregrino do caminho dá asas à imaginação mitifica o mundo e transforma a comida costumeira em arte culinária. 

Este segredo sutil foi desvendado por Lévi-Strauss em sua famosa viagem ao Brasil Central entre os Bororos, que por sua vez deu lume ao famoso livro "O cru e o cozido". Na Amazônia típica curupira come peixe cru, índio o assado, caboco vai de caldeirada por causa do pirão e intelectual do Ver O Peso se alimenta de peixe frito e açaí, deixando o pato no tucupi para os mais ricos do pedaço. Diz-me o que comes e eu te direi quem és...

Viajantes do novo mundo como compartilhavam suas viagens com os leitores com um olhar particular como num passe de mágica, levando-os a outro tempo. Lévy-Strauss leva o leitor a despertar a curiosidade gustativa numa viagem pelo universo mítico ameríndio, uma experiência "antropofágica" sofisticada numa obra que autor mantém relação com sua própria trajetória. 

O ponto de partida do primeiro volume (O cru e o Cozido, 2004 [1964]) foi um mito do povo Bororo, do Brasil Central, sobre um certo desaninhador de pássaros em torno do tema da "conquista da cultura". Daí ele viaja a América do Norte. Nas Mitológicas, a transição de um hemisfério ao outro do continente americano se dá em "progressões em rosáceas", onde avança à medida que se amplia o diálogo mitológico.  Talvez o leitor não esteja avisado que mito não é, exatamente, sinônimo de falso ou mentira. Mas, a realidade vista por outro prisma...

Não é verdade que a idade dos mitos é coisa do passado. No mundo contemporâneo vivemos cercados de mitos e o marquetingue vive explorando a profunda mina mitológica. Os cinco sentidos humanos são excitados pela imaginação com a curiosidade do que se há de ver, cheirar, ouvir, sentir e saborear com aquela "novidade" procurada que ainda falta para completo descobrimento do mundo.

Claude Lévi-Strauss dizia que odiava as viagens e os "exploradores" (naturalistas), mas as Mitológicas são um convite aos leitores para embarcar numa viagem sem nenhuma garantia de nada. Tudo se transformava, então, num mito da mitologia. Quem pode garantir que o mate verde amargo é um rito indispensável da cultura gaúcha e que ir a academia do peixe sem provar açaí puro é como cometer sacrilégio?

Há tabus por toda parte. Nas palavras de François-René de Chateaubriand, autor de Viagem à América (1827), "Por mais diversos que sejam os caminhos, os viajantes chegam ao ponto de encontro."

Por que povos afastados da América do Sul e do Norte elaboraram narrativas com tantos pontos comuns? Os mitos segundo Lévi-Strauss se pensam entre si ao mesmo tempo em que pensam a sociedade de onde eles vêm. Se imaginar é viajar, os mitos não se esgotam suas possibilidades de inventar novos caminhos e atalhos para vislumbrar as possibilidades fundamentais da inteligência. 

No primeiro volume, o cru e o cozido são a dicotomia básica. No segundo (Do mel às cinzas, 2005 [1967]) trata da oposição entre o mel e o tabaco. O mel ligado à ideia de natureza e o tabaco ao mundo sobrenatural. Ambos volumes são voltados a metáforas culinárias na representação dessas passagens, no primeiro o empoderamento da cultura, e no segundo os mitos narram a perda e a regressão à natureza. 

De um lado, a conquista do fogo de cozinha, dos ornamentos, da carne de caça e das plantas cultivadas; de outro, a perda do mel cultivado para as abelhas e as árvores, da carne de caça, das artes da civilização e até mesmo das categorias lógicas. No terceiro volume (A origem dos modos à mesa, 2006 [1968]), vai-se às planícies da América do Norte através de um mito amazônico. Se os mitos dos primeiros volumes operam oposições espaciais (alto e baixo, céu e terra, sol e humanidade), as narrativas norte-americanas do terceiro operam oposições temporais (lento e rápido, duração igual ou desigual, dia e noite), enquanto encenam uma reflexão sobre a moral em termos do comportamento humano e em analogia com os fenômenos cósmicos, astronômicos e meteorológicos. 

A culinária reaparece como uma tecnologia da mediação, que permite a passagem entre esses operadores binários, como do cru ao cozido. Depende dessas tecnologias, do xamanismo e dos rituais, sobretudo, o cuidado e a manutenção de uma ordem cósmica – ou mesmo da condição humana – que se poderia dizer "temperada", assim como um instrumento musical afinado, em equilíbrio. 

Com esta breve compilação queremos provocar uma reflexão: se Lévy-Strauss visitasse o Ver O Peso? Isto é neo-estruturalistas, capazes de adivinhar no peixe frito simbolizações arcaicas e futuristas ao mesmo tempo... Sem esquecer a dialética do Ócio e a violência do império do trabalho, sem o que não há açaí pra ninguém. 


Comentários

Postagens mais visitadas