Uma viagem ao país da Princesa (5).

Meteorito Santa Luzia, encontrado em Luziânia,  também resiste a incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro (Foto: Reprodução/ TV Globo)
além da "pedra de Bendegó" achada na Bahia, o meteorito Santa Luzia (Luziânia-Goiás) foi incorporado ao acervo do Museu Nacional, resistiu à infernal abrasão da entrada na atmosfera terrestre e caiu do céu com estrondo em solo brasileiro como um augúrio, de modo que o incêndio do Museu Nacional para os ditos meteoritos foi apenas um refresco da memória do fogo.  O céu e a terra resumidos na mente humana.

Agora a "pedra de raio" segundo tradição popular das estrelas cadentes; faz parte do desolado cenário da tragédia do Museu Nacional e os meteoritos parecem em meio à criativa ruína, a concretude da "queda do céu" do empolgante mito yanomami, atingindo em cheio o coração do Brasil. Nossa civilização tropical na última fronteira da Terra, resumindo culturas e civilizações do mundo inteiro.  Santa Luzia (santa de luz), sua relação com a cegueira na iconografia católica, está ligado ao nome Luzia (Lúcia) derivado de luz, ao sentido da vista. Mas também à faculdade de captar a surrealidade. Por isto Dante de Alighieri, na Divina Comédia, lhe atribuiu a graça iluminadora. Seja, antão, coincidência de nome do fóssil humano mais antigo das Américas, encontrado no complexo paleolítico do Homem de Lagoa Santa (Minas Gerais), lúcida inspiração para despertar a consciência do "perspectivismo ameríndio" (cf. Eduardo Viveiros de Castro. 



Esta é a quinta e última postagem da viagem ao país da Princesa encantada. Como escrevi logo ao voltar a Belém depois da viagem à ilha de Maiandeua, recebi de presente de meus filhos no dia dos pais a desejada obra A Queda do Céu - Palavras de um xamã yanomami, de autoria de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Um presentão, diria minha mãe! Então, me lembrei que, há 41 anos, após conhecer a ilha de Maiandeua (Algodoal) fui a fronteira Brasil-Venezuela em trabalho da Comissão de Limites (PCDL) na Terra Indígena Yanomami, entre fins de janeiro e inícios de maio de 1977. Nunca dantes eu havia visto de perto "índios" em seu próprio território, embora desde pequeno soubesse eu que a mãe de meu pai, minha avó Antônia, era indígena marajoara e morreu de parto de gêmeos para dar vida ao meu genitor, um dos quais natimorto... Por este motivo papai nunca festejou seu aniversário de nascimento. Com tantos casos de índio na família, até me ocorreu, na juventude, certa vez sonhar com o retorno ao lar ancestral: era uma velha e silenciosa aldeia situada na beira de um rio desconhecido, situado nas funduras do tempo lendário da ilha-mundo chamado Marajó, vi parentes subir o rio do tempo em canoas a remo em direção aos imaginários "centros" da ilha grande. 

Até hoje que aquela paisagem onírica habita minhas lembranças dos outros, passadas de geração em geração desde o "tempo da vela de jupati", como dizia a avó de minha avó.... Assim como o índio não diz seu nome étnico, cabocos escondem, algo envergonhados, suas origens indígenas. As raízes de cada um segundo o ponto de vista da comunidade nunca tem profundidade. Todavia, eu me senti tão feliz e em paz comigo mesmo naquele magnífico sonho ocorrido na distante mocidade, lamentei despertar e voltar à realidade daquele mundinho à margem da história. Onde me criei em companhia de meus pobres parentes, juntos e misturados com descendentes de camponeses europeus emigrantes, casais dos Açores e pretos arrancados do seio da mãe África para vir mourejar em negra escravidão. Aquilo poderia ser um mocambo onírico aparentado, paresque, do mocambo volante Maravilha, que mestre Vicente Salles falou sobre a participação dos negros na Cabanagem (ver Vicente Salles, O Negro no Pará). 

Sonho dos antigos "índios bravios, desertores e escravos fugidos" que existiam em mocambos nos centros imaginados da ilha ainda inconquistável. Mais tarde, paresque uma experiência "mágica" passada por mim, durante curto tempo, ao entardecer de um dia frio e ensolarado do mês de maio quase ao fim da campanha: por acaso, sozinho eu me encontrei numa campinarana na beira do abismo de arenito escarpado num paredão a pino desde o alto do monte Urutani, na serra Pacaraima, fronteira de Roraima com a Venezuela. Ali ao lado de um marco de limites, tranquilo, me deixei ficar enquanto esperava os camaradas voltar pelo caminho para pegar de volta o helicóptero estacionado a oitocentos metros de distância mais abaixo. Vi o rebanho das nuvens subir do fundo do vale e passar devagar por mim ao alcance de minhas mãos, o profundo céu azul se deitava no horizonte sobre o verde da floresta imensa. Neste enlevo me apareceram, como saindo do nada primordial, três belos galos da serra olhando-me tão perto e com extrema curiosidade. Eu fiquei estático e maravilhado colado ao marco de concreto da linha de limites, contive a respiração a fim de prolongar aquele encantamento inesperado. Ao por do sol a plumagem das aves parecia brasa viva e três pares de olhos esvoaçantes e selvagens faiscavam a me indagar quem eu sou de verdade!... Um ornitólogo poderia me dar mil e uma explicações científicas sobre o comportamento natural da belíssima ave Rupicola rupicula. 

  Resultado de imagem para rupicola rupicola rupicola nome científico

Eu lhe acreditaria sem contestação. Mas, agora, depois de uma curta, mas profunda temporada em Maiandeua despertando com a revoada dos japus antes do cantar do galo e adormecer sob o canto curioso dos taqueres (socó-dorminhoco) que saem do ninho à boca da noite para ir mariscar durante a noite; ao fim desta viagem lendo atentamente e sem preconceito o pajé Kopenawa devo saber também que, além do conhecimento científico da fauna e da flora, seres vivos inclusive gente; somos espíritos vivos - xapiri, para os yanomami; caruana, para os cabocos marajoaras -, e seres encantados. Isto que, alegremente como um devoto do Tao, venho brincando como o zen-bubuia (sabendo que zen, é simplesmente meditar e bubuiar, flutuar na correnteza do rio de Heráclito)... Não creio em bruxos, mas eles existem.

Lembro-me que naquele dia infinito no alto do monte Urutani me encontrei comigo mesmo e a cabo daquele deslumbramento eu fiquei sem vontade de descer a serra a cerca de oitocentos metros de altitude sobre a densa floresta verde-azulante do vale do Uraricoera (Alto Rio Branco, fronteira Brasil-Venezuela). Mas, quanta coisa a aprender daquele enorme mundo das Guianas? Quanta história, quanta vida! Terminei por guardar aquela tarde distante em minha memória, que conservo junto e misturada com memória dos outros, conservando a morada de mitos e sonhos antigos.

Então, em conclusão, prometi comentar a leitura da obra de Davi Kopenawa e Bruce Albert, obra rara já pelo tema e pela inusitada abordagem que o prefaciador da versão em língua portuguesa, antropólogo Eduardo Viveiros de Castro; considera logo atrás da importância da obra de Claude Lévi-Strauss (Bruxelas, 28 de novembro de 1908 — Paris, 30 de outubro de 2009): foi assim que no contexto de minha imersão ao bioma do Salgado a recordação do velho Marajó do meu carma veio à tona em minha consciência arrastando das profundezas da memória fragmentos de vidas vividas e anseios do avenir. A amazonidade, para mim, está prenhe de guianidade. Mas pouca gente sabe que a Guiana brasileira contém a Amazônia marajoara, o Amapá, partes do Baixo Amazonas no Pará na Calha Norte; estado do Amazonas incluindo Manaus e Rio Negro e Roraima. Não é pouca coisa! E a "grande ilhas das Guianas" cf. Eliseu Reclus) ou "grande oval das Guianas" (cf. Raja Gabaglia)... Nossa brava gente do Salgado vai longe pescar além do Cabo Norte seguindo as trilhas do passado, quando a grande área cultural guianense, como explica Ciro Flamariom Cardoso explica - das ilhas do Marajó até a ilha de Trinidad - ainda não havia fronteira.

Esta reflexão pós-viagem à ilha de Maiandeua me faz reencontrar tantas coisas. Enquanto isto, aconteceu a impensável destruição do Museu Nacional no incêndio de 2 de setembro de 2018. O Salgado pela natureza e o Marajó devido a milenar arte cerâmica, destacam o estado do Pará na Amazônia atlântica. E todo mundo sabe que eu prezo minhas raízes indígenas, de modo que emprego com paixão meus parcos conhecimentos e nunca canso de estudar a origem do "homem amazônico". É claro que o nome do antropólogo social e filósofo Eduardo Viveiros de Castro não me era estranho. Porém nunca me havia detido para conhecer o seu pensamento mais de perto, foi com satisfação que li o prefácio que ele preparou para o supracitado livro e, depois, com seus pertinentes comentários sobre o incêndio do Museu Nacional, dei os primeiros passos para compreender o perspectivismo ameríndio. Muito a saber sobre os limites do crescimento científico e econômico do Planeta.


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José Marajó Varela (1937 - ...).

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