PONTA DE PEDRAS: NOVOS TEMPOS, VELHOS LUGARES DE MEMÓRIA

São Francisco do Marajó: 
velhas raízes e novas esperanças de Ponta de Pedras.


capela de São Francisco de Borja, na fazenda Malato,
antiga São Francisco da missão dos Jesuítas no Pará e
primeira sesmaria da Companhia de Jesus no Marajó.

Araraiana, Urinduba, Paricatuba... Itaguari, Marajó-Açu, Marajó-Ité, Anabiju, Paruru-Açu, Arapiná, Saracá, Anajás-Mirim, Crairu, Ipauçu, Arapirança, Moirim, Panema, Dixiú, Cucuira, Jaguarajó... Sororoca, Bacurituba, Araquiçaua... Vestígios de um patrimônio invisível de lugares de grande antiguidade que hoje o povo já não sabe mais o significado. Sem estudo e sem interesse vão se perdendo da memória para dar lugar a novas ocupações sempre na boa esperança de mudar de vida.

Povo sem passado é povo sem futuro. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura... Talvez donde menos se espera saia o primeiro passo para organizar o tão falado e ainda pouco compreendido Ecomuseu do Itaguari. Com este pequeno e inesperado passo, um significativo movimento socioambiental interessando o crescimento do IDH da Criaturada grande de Dalcídio Jurandir como um todo em toda Amazônia Marajoara...

Perdem-se na noite do tempo os primeiros povoadores indígenas do maior arquipélago fluviomarinho da Terra – Marajó. Uma área territorial insular maior que cada um dos estados de Sergipe, Alagoas ou Rio de Janeiro. Todavia, passados mais de três séculos e meio a maior parte dos quase 600 mil marajoaras de hoje são extremamente pobres, isolados e desletrados, mas ainda assim guardam a herança ancestral da índia tapuia (Aruak), que pariu os primeiros cafuzos filhos de negro escravo refugiado nos mocambos dos centros da ilha grande. Ou teve filho curiboca com guerreiro tupinambá em horas mortas das “tropas de resgate” (caçadores de “negros da terra”) ou desertor mameluco que se escondia da forca da autoridade colonial entre índios bravios nas Ilhas. Por fim, a índia tapuia foi aquela marajoara amásia de degredado luso fugitivo da tirania do regime, casada a pulso (para não dizer estuprada) com o rude colono açoriano, mandado junto aos casais povoar o Maranhão e Grão-Pará fecundando a terra conquistada da maior prole possível, capaz de domesticar tanto “espaço vazio” na imaginação dos donos do poder afastados dos reais acontecimentos da vida.

Esta pobre gente restou despossuída da própria terra natal, ilhada em si mesma, vítima do analfabetismo mais crasso. Porém – sem saber da utopia selvagem do bravo antropófago Tupinambá, nem do tratado de Tordesilhas (1494) entre portuguese e castelhanos – a dita criaturada foi “pedra” no meio do caminho da conquista do rio Babel ou das Amazonas (cf. “Rio Babel – a história das línguas na Amazônia”, de José Ribamar Bessa Freire).

Hoje para inventar o futuro, a gente carece fazer arqueologia de “cacos de índio” no Museu do Marajó. Adivinhar o passado pelas margens e entrelinhas de uma historiografia disparatada prenhe de erros, enganos e omissões. O farol Itaguari (“ponta de pedra”) é mais que sinal de navegação entre pedras perigosas em noite escura... Sua luz simbolicamente nos mostra o caminho das águas onde o Marajó velho de guerra começa. Quem sabe, então, aquela tricentenária “ponta de pedras” que o valente guerreiro tupinambá temia ultrapassar no passado; não esconde um patrimônio invisível, a passagem encantada para a terceira margem do rio: lugar sagrado onde não há fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte. Onde reside a sonhada yby marãey (terra sem males) e a concretude da utopia sebastianista do Padre Antônio Vieira.

É verdade que no espaço plano de Euclides os profetas caraíbas nunca poderiam achar o paraíso selvagem, nem os “índios cristãos” poderiam, enquanto índios; assimilar o ideal de cristandade, conforme a utopia evangelizadora do Padre Antônio Vieira. Todavia, apesar de tudo, com o progresso da Ciência e Tecnologia iluminada pelos Direitos Humanos universais, o espaço curvo de Einstein abre caminho à Terra sem Males em comunhão com o reino de Jesus Cristo consumado na terra. Tempo de justiça e paz onde cristãos, judeus e islâmicos viverão como irmãos em meio ao respeito geral entre crentes e não crentes. A paisagem cultural marajoara no contexto dos Brasis e da América do Sol tem diversas leituras e o Itaguari (“ponta de pedra” em língua-geral amazônica ou Nheengatu) poderá dar pé a uma nova história, 371 anos após as pazes de Mapuá (27/08/1659).

Macau, a China que fala português.

Ironia da história: o “padre grande” dos índios, Antônio Vieira, se tornou amigo do rabino de Amesterdã (Holanda) Menassé ben Israel, influenciado por este acabou escrevendo de Cametá a carta secreta ao bispo do Japão a qual levou o tribunal do Santo Ofício a condená-lo por “heresia judaizante”: o famoso Quinto Império do mundo... No Marajó, pouco antes de ser expulso do Pará violentamente, Vieira estabeleceu o pacto de paz com os sete caciques nheengaíbas (Nuaruaques) – Aruãs, Anajás, Mapuás, Pixi-Pixi, Cambocas, Guaianás e Mamaianás – , trazendo para o lado português os Marajoaras estimados, mais ou menos, em 20 mil habitantes incluindo o Amapá contra a amizade e comércio, iniciados cerca de 1599, com os holandeses. Motivo da guerra de 1623 a 1647, os tupinambás aliados aos portugueses e os marajoaras ao lado de holandeses e ingleses.

Que diriam chineses consumidores de soja, minério de ferro, madeira e alumínio se eles soubessem desta curiosa história amazônica, onde a primeira fazenda dos confrades do padre Antônio Vieira acaba de ser vendida a uma multinacional da Holanda e vira porto de transbordo de commodities para a China? Eu acho que o turismo no Marajó poderia ser atrativo a turistas chineses se oferecesse produtos de interesse a eles sem apelar a fantasias. A realidade ultrapassa a ficção. O premiado romance “Marajó”, de Dalcídio Jurandir descreve estórias de Paricatuba, Arariana e Urinduba para denunciar o feudalismo transplantado às fazendas em terras de sesmaria dos padres, expropriadas na metade do século XVIII pelo Marquês de Pombal, cem anos após as pazes de Mapuá, para doação aos Contemplado. A fazenda São Francisco (Malato atual) coube ao sargento-mor Domingos Pereira de Moraes, patriarca talvez da família deste caboco escrivinhador que vos fala.

Falta dizer que a obra “Linha do Parque”, primeiro romance proletário brasileiro, foi escrita pelo “índio sutil” Dalcídio Jurandir no Rio Grande do Sul e traduzido ao russo e mandarino (chinês). Quem sabe algum tradutor chinês, ao saber disto tudo, não vá se interessar em traduzir o romance “Marajó” no bojo da compra e venda da fazenda Malato a bordo da multinacional holandesa fornecedora de commodities para a China? O descobrimento da Amazônia Marajoara é recente, com os trabalhos de pesquisa da arqueóloga Denise Schaan e de história social do professor Agenor Sarraf. Entretanto, grupos nômades teriam percorrido as terras baixas da América do Sul em torno de cinco mil anos, vivendo da coleta de frutos, da caça e da pesca de gapuia. Como se sabe, a pesca de gapuia é a mais tradicional maneira de pescar que o homem inventou. Consiste no aproveitamento da maré seca quando peixes e camarões ficam presos naturalmente no leito de igarapés e lagoas nas praias do mar. Por certo, o homem ribeirinho de cinco mil ou muito mais anos de idade, na constante procura do “de comer”; observou animais terrestres e aves aquáticas se alimentarem de peixes presos durante a maré baixa na varja ou nos lagos nos centros da ilha do Marajó, região do Arari, durante o verão. O homem é aprendiz da mãe natureza.

Com apoio da arqueologia (cf. Cultura Marajoara, Denise Schaan: SENAC, São Paulo, 2010) podemos nos dar conta de que a gapuiação e o gapuiador se acham na base da pirâmide étnica, ecocultural e social da gente marajoara. Citada, expressamente, com vistas a seu bem-estar como destinatária da Área de Proteção Ambiental do Arquipélago do Marajó, na Constituição do Estado do Pará (Art. 13, VI, Parágrafo 2º). Ainda hoje, com certeza, em mais de duas mil ilhas e 500 comunidades locais dos 16 municípios marajoaras; muitas vezes o “vinho” de açaí com pirão de farinha d'água é reforçado com camarão frito e peixe assado pescado de gapuia.

A resiliência do “caboclo” é o âmago da tradicional “cultura marajoara” herdada da mestiçagem por necessidade e acaso entre índios, negros e brancos ilhéus. Este patrimônio humano, mergulhado em pobreza extrema, isolamento e marginalização ao longo de séculos, está em grande risco de se acabar. Por isto, quando entre chuvas e esquecimentos históricos se anuncia em Ponta de Pedras (Marajó) projeto de construção de um estratégico porto de exportação de grãos produzidos no distante Mato Grosso, por acaso a ser edificado às margens da primeira sesmaria da Companhia de Jesus na ilha do Marajó; o porto Malato deve ser oportunidade para uma profunda reflexão, inclusive tendo em vista a carta encíclica “Laudato si” do Papa Francisco, na qual o Bispo de Roma critica o consumismo e o desenvolvimento irresponsável fazendo apelo à mudança e à unificação global das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. A China anuncia ter antecipado para 2020 a erradicação da pobreza extrema prevista para 2030 no Pacto Global.


Já pensaram se, neste mesmo lugar onde outrora a história do município de Ponta de Pedras deu seus primeiros passos nas margens do rio do “homem malvado” (marajó), temido pelas emboscadas armado de zarabatana de braço de paxiúba e dardos de talo da patauá envenenado; um espírito novo de fraternidade entre grandes e pequenos virá brindar a Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)? Por que não? Talvez uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) da Fazenda Malato venha ser elo de conexão com o setor privado na Rede Brasil do Pacto Global levando à criação de Mosaico de Unidades de Conservação do Marajó. Enfim, com uma tal parceria local-global Araraiana, Urinduba, Paricatuba e adjacências tirem o pé da miséria a bordo da esperançosa Reserva da Biosfera Marajó-Amazônia para ser estrela da Amazônia Atlântica. 

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