CONCÓRDIA MARAJOARA: UMA UTOPIA POSSÍVEL


cartaz de exposição fotográfica de 2011




10 ANOS SEM O GALLO


"Ao meu Marajó,
minha alegria,
minha tristeza,
minha conquista,
minha derrota!"
Giovanni Gallo (Turim, Itália 1927- Belém, Brasil 2003)
"Marajó a ditadura da água" 3ª ed, 1997.

O Museu do Marajó foi criado pelo padre Giovanni Gallo S.J., no município de Santa Cruz do Arari, em 1972. No mesmo ano que a Academia Brasileira de Letras concedeu o Prêmio Machado de Assis a Dalcídio Jurandir, primeiro autor amazônida a receber tal honra nacional. Tanto o padre insubmisso quanto o romancista revolucionário tiveram que nadar contra a correnteza das opiniões vigentes a fim de construir as suas obras e nisto consumiram toda vida granjeando amigos, mas também fazendo muitos inimigos.
Gallo começou, modestamente, sua obra de improviso tendo ele dado título de "O Nosso Museu" a uma simples coleção de curiosidades locais. Assim, pelo menos, chamou antes da mudança de sede para Cachoeira do Arari (1984) até a segunda edição do livro-reportagem "Marajó; a ditadura da água". Belém, Edições "O Nosso Museu", Santa Cruz do Arari Pará 1981 - 2a Edição. Todavia, segundo ele deixou escrito em “Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara”, foi a provocação espontânea do caboco Vadiquinho ao lhe presentear com inocência um pacote de fragmentos de cerâmica marajoara recolhida de sítios arqueológicos saqueados por contrabandistas, provavelmente; conhecidos “cacos de índio’ entre a população tradicional; que o incipiente museu adquiriu sua verdadeira vocação: ressuscitar entre o povo a civilização perdida de seus ancestrais.
Fica claro, como diz o ditado popular que o vigário da paróquia e seu colaborador atiraram no que viam e acertaram no que não viram... O Museu do Marajó é uma obra coletiva nascida do feliz casamento entre a necessidade e o acaso. Sem dúvida nenhuma, trata-se de um ecomuseu de vocação comunitária destinado a servir a todos marajoaras e promover a Cultura Marajoara no Brasil e no mundo.

Na obra citada o autor informa que foi o romancista Dalcídio Jurandir, em correspondência entre o Rio de Janeiro e Belém através da amiga fiel Maria de Belém Menezes, quem o incentivou a publicar o livro. Estamos lembrados que Maria de Belém é filha do poeta Bruno de Menezes, a quem Dalcídio tratava carinhosamente de "babalorixá".... Bruno foi mentor da Academia do Peixe Frito, notável confraria do Ver O Peso curadora da festividade folclórica de São Benedito da Praia, no bojo do movimento modernista paraense, ocorrido nos anos de 1930 em torno da revista literária Belém Nova
Como as duas faces da mesma moeda, a série literária “Extremo Norte” e o Museu do Marajó se confundem: sua razão de ser é a “Criaturada grande de Dalcídio” no dizer de Eneida de Moraes; a qual Giovanni Gallo sem ler o romancista intuiu logo à primeira vista se trata de uma população “remanescente” dos antigos inventores da Cultura Marajoara... Primeira sociedade complexa, tipo Cacicado; da Amazônia. De maneira que o viajante do tempo-espaço amazônico carece conhecer a "maior ilha fluviomarinha do mundo": iniciar a viagem pelo portal d'O Nosso Museu do Marajó. Atravessar a baía do Marajó tal qual o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira na “Viagem Filosófica”. Quer dizer, neste caso, não basta ser turista responsável. Tem que ter espírito de viajante do mundo...
Havendo curiosidade bastante e contando com meios modernos que o naturalista de Coimbra não poderia contar no fim do século XVIII; o viajante da Amazônia Marajoara poderá partir de Belém fazendo a rota do Cacique Guamá, dos Aruãs e Mexianas; através do canal Carnapijó para subir o rio Marajó-Açu até a antiga "Cachoeira do rio Arari". Aí o viajante há de saber 'qual a peça mais velha e mais nova’ do museu do homem marajoara. Caso contrário, ele pode ver toda paisagem, mas não compreender nada da arcaica "universidade pés-descalços" com seus engenheiros indígenas de açudes de gados do rio e arquitetos de aldeias suspensas que, há mil anos, habitaram tesos arqueológicos que, apesar de tudo, ainda se acham na ilha do Marajó à espera de um turismo inteligente. 

O turista desavisado pode acreditar que o búfalo é o maior símbolo cultural do Marajó sem desconfiar que ali o que importa é o "homem do Pacoval" (inventor da primeira ecocivilização da Amazônia, conforme se pode inferir da Arqueologia amazônica (cf. Denise Schaan). Este marajoara desconhecido tem remanescentes dentre pescadores desmemoriados e despossuídos do Lago e rio Arari... Esta é a questão!

2013, 10 ANOS DO MUSEU SEM GALLO
HORA DE RECONCILIAR


Dalcídio escreveu à Maria de Belém: "Que o padre tire uma coleção de reportagens e faça um livro que será retrato da terra e da gente de Jenipapo.... [...] ... A foto das crianças de Jenipapo me comove, são meus netos marajoaras, alegres apesar da miséria, apesar da dura condição em que vivem... [...] O padre Giovanni é corajoso, sim senhor,  tocando em feridas velhas, na área de Jenipapo e Santa Cruz do Arari. Feridas que sangram em meu romance "Marajó". O que me surprende é que as coisas lá não mudam, ao contrário, se agravam... [...] O padre Gallo, com muita ênfase e jeito, confirma a denúncia. Não estamos tão distantes um do outro".

O viajante da Amazônia Marajoara deve saber que o estuário do grande Amazonas foi palco de intensas lutas para conquista do território nas terras baixas da América do Sol... A chave do conhecimento da região é a Arqueologia. Em seguida, é preciso desvendar a Antropologia do Circum Caribe para compreender por que razão até hoje o Cabo do Norte excita as imaginações da região do Salgado e os ritmos caribenhos através das Guianas cativam corações e mentes no Pará. A presença Tupinambá com sua marcante antropofagia antecede a conquista européia e o museólogo feito pelas condições dialéticas do ambiente pergunta ao viajante, através do museu, “você fala tupi?”. Prepare-se! Estamos em terra tapuia, na ilha grande dos Nheengaíbas, com a babel Nuaruaque; mas na verdade sem o Nheengatu ou Língua Geral estaríamos desorientados toda vida. Carece, então, saber a estória do Araquiçaua: o sítio onde o sol ata rede para dormir...
Provavelmente, nem Dalcídio nem Gallo leram a carta do “payaçu dos índios” Padre Antônio Vieira à regente do reino de Portugal, dona Luísa de Gusmão, viúva do rei dom João IV; dando conta das missões no estado do Maranhão e Grão-Pará, nos primeiro dias do ano de 1660. Um ano antes o missionário havia escrito, em Cametá; a carta secreta “Esperanças de Portugal” ao bispo do Japão, na qual professa o sebastianismo de Bandarra para pregar Quinto Império do  mundo e a ressurreição do rei restaurador, morto em 1656. Em nome do qual o Marajó foi pacificado, no acordo de Mapuá (Breves) em 27 de agosto de 1659. Foram 44 anos de guerra desde a tomada de São Luís do Maranhão (1615) até aquelas pazes ora esquecidas.
Ninguém precisa ser católico para reconhecer a importância histórica dos Jesuítas no Brasil e particularmente na Amazônia, com destaque para Marajó. Do ponto de vista histórico, com todas suas contradições até hoje, a conquista cultural e espiritual do rio das Amazonas torna-se incompreensível sem o estudo das missões religiosas, seus conflitos com os colonos, o estado colonial e também com as diferentes sociedades indígenas. Poderia o Museu do Marajó ou uma obra romanesca como o ciclo Extremo Norte se desenvolver sem confrontar o “status quo” excludente da chamada Criaturada descendente dos excluídos da Civilização?
E, no entanto, eis que é chegada a hora de se restaurar a paz de Mapuá, depois de 40 anos da fundação do Museu do Marajó, em Santa Cruz do Arari; e da premiação de Dalcidio Jurandir saudado por Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Para isto esta proposta de CONCÓRDIA MARAJOARA quando os 10 de morte de Giovanni Gallo sejam motivo de vida para a dita Criaturada.
A morte do europeu ilustrado insubmisso aos cânones sendo vida aos despossuídos da Amazônia, o autor do autobiográfico "O homem que implodiu", que se fez marajoara por necessidade e acaso fazendo, finalmente, os marajoaras se encontrarem uns com os outros; vivendo o missionário seus dias feito um caboco entre cabocos: Giovanni Gallo morreu e se fez enterrar à ilharga do incrível museu inventado de "cacos de índio" extintos e de estórias ingênuas de caboco, para ressuscitar uma milenar civilização morta entre chuvas e esquecimento.
NO ALTO DO TESO PACOVAL 1500 ANOS CONTEMPLAM NOSSA DESUNIÃO: UMA ALDEIA INVISÍVEL, ARQUITETURA DO BARRO.

No Marajó os extremos se tocam, acontecem coisas incríveis. O mito da Cobra grande não só é atual como comprova que o esquecimento dos acontecimentos, na verdade, é que nem a mundiação da Boiúna mãe do rio e das criaturas. Que o museu do Gallo é, sem nenhuma dúvida, ecomuseu que o Brasil e o mundo desconhecem; prova do que acabamos de dizer.

Os dalcidianos adoram o ciclo Extremo-Norte mas, com as exceções de praxe, não enxergam na Criaturada grande o homem Dalcídio mergulhado no barro dos começos do mundo como Jorge Amado saudou o "índio sutil": o primeiro Machado de Assis para autor amazônico e até agora não houve outro se não, merecidamente, para o filósofo Benedito Nunes... Mesmo ano que o padre Gallo quebrava cabeça para cumprir sua missão entre pescadores do Lago e, por acaso ou a Divina Providência, o caboco Vadiquinho chegou com o estranho presente de "cacos de índio". Saiu caro a "brincadeira"...

O livro "Marajó; a ditadura da água" é, paresque, o romance "Marajó" vivenciado 40 anos depois de escrito na vila de pescadores de Salvaterra. Mais uma coincidência, em 1960, Salvaterra e Santa Cruz juntas chegavam à emancipação municipal: esta última desmembrada de Ponta de Pedras, que foi desmembrada de Cachoeira, que foi desmembrada da Vila de Monsarás, que hoje é distrito de Salvaterra; que foi desmembrada de Soure... Aqui a antiga aldeia dos "Maruanazes" (deve-se dizer Maruaná), ali a aldeia dos Joanes (aliás Iona ou Sakaka) que algum dia deu nome à Capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (que era Ilha Grande dos Nheengaíbas, dos Aruans, Marinatambalo (segundo Pinzón), aliás Analau Yohynkacu (cf. Ferreira Penna), enfim Marajó). Cada momento, um estrecimento: um “racha” medonho semelhante à lenda da Cobragrande debaixo da igreja se estremecendo para não bulirem com a santa imagem... 

Cada um faz sua refazenda da história conforme lhe parece, Marajó do padre coincide com Marajó do romancista, porém um e outro tem lá suas diferenças e particularidades. Somos hoje dezesseis municípios num território do tamanho de Portugal, algo como 1700 ilhas mais a microrregião continental de Portel que dobra de tamanho o arquipélago, onde mais de 500 aldeias ou comunidades se dispartem. Podia assim tamanha biodiversidade e diversidade cultural se reduzir unicamente ao romance de Dalcídio Jurandir ou ao livro-reportagem e museu de Giovanni Gallo? Eis aqui uma questão típica da "ilha" que são ilhas do Marajó... Dizer, "eu sou nós" nunca deu tão certo como entre os marajós da vida! Esses uns que rezam pelo bem-comum: a canoa é nossa, a casa é nosso, nossa várzea, o sitio é nosso, portanto, O Nosso Museu (mas a mulher é minha e os filhos meus, diz o caboco).

Ver o museu do Gallo sem ler o romance de Dalcídio é perder metade da viagem. Procurar saber a história da Ilha Grande sem notícias da Criaturada grande é sacrificar o contexto biogeográfico da parada. Tudo está interligado no tempo e espaço planetário, quanto mais na vastidão das regiões amazônicas e outras regiões naturais do mundo: por milhares de anos as fontes do Nilo urdiram a chamada história universal até um certo Francisco de Orellana descobrir a lenda das amazonas na Amazônia avant la lettre, importadas da Capadócia...


À BEIRA DO RIO DA HISTÓRIA O HOMEM DO PACOVAL ASSISTE O FORMIDÁVEL ESPETÁCULO DISCURSIVO DO DESENVOLVIMENTO (in)SUSTENTÁVEL.

Já os temerários portugueses, ajudados indispensavelmente pela brava Nação Tupinambá; haviam conquistado o rio das "Almazonas" expulsando dele primeiramente os franceses do Maranhão (1615) e depois (1623-1647) holandeses e britânicos. Desembaraçados dos concorrentes estrangeiros não conseguiram os ambíguos aliados, todavia, vencer a feroz resistência do "homem malvado" (marãyu / marajó). Enfim, depois de 36 anos de atropelos e correrias causados pelo bárbaro Nheengaíba das ilhas, desde a vitória de Gurupá (1623), que impediam a livre passagem do Pará ao Amazonas apesar do extraordinário feito de Pedro Teixeira e do bandeirante Raposo Tavares; na ambição de conquistar os confins do rio em busca do El Dorado pelos lusos e a Terra sem males pelos tupinambás; acabou-se de conquistar o Maranhão e Grão-Pará pela pax dos Nheengaíbas (isto é, Marajoaras) a 27 de agosto de 1659, no rio dos Mapuaises [Mapuá, município de Breves]: foram em total 44 anos de guerra suja desde a tomada de São Luís do Maranhão. Desamparados de tudo e de todos, nunca vencidos pelas armas combinadas dos barões assinalados e do bom selvagem buscador da mítica Terra sem males; os faladores da "língua ruim" (nheengaíba) numa narrativa mirabolante (carta do Padre Antônio Vieira destinada à viúva do rei Dom João IV, regente de Portugal Dona Luísa de Gusmão, 1660), concordaram enfim com as pazes que lhes eram oferecidas pelos padres da Companhia de Jesus. Sem isto, é bom que os brasileiros se recordem; nunca poderia a tese de Alexandre de Gusmão prevalecer para revogar o tratado de Tordesilhas (1494-1750) entre Espanha e Portugal: e, portanto, Marajó havia de permanecer na posse de Castela... Ou cair no domínio de qualquer outro reino europeu tendo estabelecido colônia nas Guianas: melhor ou pior, de qualquer forma, Marajó e o Pará inteiro seria bem diferente do que somos hoje. Que terão concertado os sete caciques "nheengaíbas" (nuaruaques) para optar pela pacificação do Grão-Pará? Esta resposta não poderá jamais ser abordada ou desenhada somente com a parcas e iludidas fontes coloniais...

Nossos historiadores pulam por cima da engenhosa dissertação barroca do Payaçu (Padre grande Vieira), sem interesse acadêmico para especular sobre o que não está escrito, mas a antropologia e às vezes a arqueologia insinua. Marajó resta sendo um desafio à imaginação de verdadeiros viajantes... Logo, uma mina para o turismo inteligente de vocação comunitária. A lição do padre Giovanni Gallo mais o guia-mestre Dalcídio Jurandir com a sua incontornável Criaturada... O Marajó sem índios já foi um prejuízo incalculável, sem o caboco ribeirinho poderia até dar em não sei quantos reinos modernos comparáveis a Singapura, mas então teria sido a ruína total e final da ecocivilização amazônica iniciada com os tesos de camutins (cerâmica marajoara).

A verdadeira morte é o esquecimento. Enquanto houver memória haverá esperança de ressurreição (é isto que se diz na missa católica). Crendo ou não crendo, gostando ou não se gostando de padres e pastores, Marajó continua sendo uma história de utopia e combate com a indelével marca jesuítica e o sebastianismo popular eivado de palejança amazônica e encantaria africana. O confronto do século XVIII entre a escolástica e o iluminismo serve de capa à cultura marajoara sepultada no teso do Pacoval do rio Arari. O Museu do Marajó acabou sendo uma espécie de "teso" representativo, em cuja ilharga os restos mortais do marajoara que veio de longe começa, talvez, a ser beatificado que nem o Padre Cícero em Juazeiro, no Ceara. Os caminhos emendados da história e da estória são intermináveis. Mas só o amor e a paz constroem o Futuro.








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