NEUTON MIRANDA E A PAISAGEM CULTURAL BELÉM-MARAJÓ

Na história social do Pará velho de guerra cabana, meu encontro com Neuton Miranda foi predestinado pelo encontro anterior de Dalcídio Jurandir e João Amazonas: dois paraenses históricos dedicados à causa da promoção da criaturada grande do Grão Pará ao encontro da Humanidade liberta de toda e qualquer opressão ou tirania. Minha vida mudou desde o dia que Neuton me localizou na Paratur, onde eu (estranho no ninho) trabalhava junto a Adenauer Góes a fim de meter certas "pajelanças" no destino turístico com a cara genuína do Pará. Foi assim que fui convidado a colaborar à formação de força-tarefa do Projeto Nossa Várzea que, pela primeira vez, iria atuar nas ilhas do Marajó. 

Graças ao governo Lula que atendeu a demanda da gente marajoara que fora se queixar aos bispos dom Alessio Saccardo e dom José Luiz Azcona, Marajó teve a chance excepcional de sair da parolagem para a concretude da política pública. Claro, até agora o tal PLANO MARAJÓ com o programa Território da Cidadania rendeu mais calor do que luz... Todavia, os cabocos lá de dentro - ao contrário do pessoal da cidade - sabem que o plano "deu certo e ainda há de dar muito mais". E o fato desta certeza é a regularização fundiária das comunidades outrora sem eira nem beira. Portanto, politicalha à parte, o que essa gente quer é não deixar "voltar pra trás". Fique isto bem claro!

Neuton convidou-me a ser voluntário da formação cultural da equipe da GRPU a ter contato de campo com a população ribeirinha durante procedimentos para regularização fundiária em terras da União. Reciprocamente, eu o convidei a tomar parte da Academia do Peixe Frito: não é todo dia que acontece coisa assim. Agora que o Centenário de Dalcídio passou e que Neuton faleceu no campo de trabalho, andam a me perguntar se a louca Academia também morreu... Não, não morreu. Pelo seguinte: nas outras academias são imortais os acadêmicos, no Ver O Peso o único imortal é a tal academia: se acaso qualquer um pega na cuia do açaí e come com farinha d'água a posta de peixe servida quente no quiosque, eis aí a academia em plena sessão de ictiofagia tradicional!

Durante a inusitada parceria, tive eu a felicidade e a honra de compartilhar com o camarada momentos memoráveis. O último destes ocorreu em Cachoeira do Arari para entrega de títulos de autorização de uso de terras públicas à população ribeirinha. Encontro este digno de documentário e lição da história de resistência e emancipação de um povo extraordinário: a viagem marcada inclusive por visita ao Museu do Marajó e ao túmulo de Giovanni Gallo sito à ilharga do mesmo. Inesperadamente, o então presidente do museu, Antônio Smith, presenteou-nos com a obra "Cultura Marajoara", da arqueóloga Denise Schaan. Compêndio magnífico no qual a obra do padre insubmisso e a invenção ancestral dos marajoaras se fundem como uma peça única acusação à insensibilidade das autoridades públicas deste país e à pobreza da criaturada.

Eu retive da solenidade de entrega dos títulos de terra palavras de Neuton Miranda, plenas de saber político ditas com sinceridade e simplicidade de quem fala a seus iguais; a respeito da briosa resistência marajoara. Dizendo ele, com justeza, que na ilha se acha o último reduto daquilo que, às vezes, sem muita certeza do que se diz chamamos o "paraensismo"... Certo, quando Marajó se render à invasão cultural que vem de todos quadrantes em nome de um "desenvolvimento" desumano tanto quanto avassalador, o antigo e afamado grande Pará estará morto e acabado para sempre. Ah, por quê, oh gente! Não levamos o camarada Neuton à Brasília fazer o discurso no Congresso Nacional...Agora é preciso que cada ribeirinho tenha notícia destes fatos e que se levante para levar mais adiante esta história perdida entre chuvas e esquecimento.


A pergunta que não quer calar: todos paraenses de hoje são dignos da terra que seus antepassados índios, negros e brancos lhes legaram? Ou - por uma alienação incomparável - irão perdê-la, irremediavelmente, sem jamais entender do que se está a falar nesta aqui e agora? Questão semelhante aos militantes da causa operária: sabemos, de fato, quem foram na vida Dalcídio, João Amazonas e Neuton Miranda? O que juntos eles representam na luta contra a alienação e perda de memória da paisagem cultural Belém-Marajó? 

DÍVIDA DA CIDADE DE BELÉM PARA COM O MARAJÓ


400 anos depois da fundação do forte do Presépio, a Câmara Municipal de Belém (CMB) - a mais antiga de todas as Amazônias - tem oportunidade única de resgatar a velha história, na qual a mesma vetou intenção do governador do estado do Maranhão e Grão Pará, André Vidal de Negreiros; de transferir a capital da capitania do Pará para Joanes [Soure/Salvaterra]. E, mais, requereu ao rei de Portugal Dom João IV, a "guerra justa" [cativeiro e extermínio] contra os Nheengaíbas (federação de etnias indígenas das ilhas do Marajó]. Um genocídio terrível ou, mais provável, perdição do Pará para a coroa portuguesa em benefício da Holanda, felizmente evitada pela missão pacificadora do Padre Antônio Vieira concluída na paz do rio Mapuá, Breves [cf. Carta de Vieira à regente Dona Luísa de Gusmão, 11/01/1660].


Quais são, por exemplo, os problemas comuns dos vereadores do território federativo do Marajó e da região metropolitana de Belém? Por que a CMB não convida a Associação de Vereadores da Ilha do Marajó (AVIM) a criarem juntas grupo de trabalho para enfrentar problemas e desenvolver oportunidades comuns?


QUAL O SENTIDO DA ACADEMIA DO PEIXE FRITO NA PAISAGEM CULTURAL DO VER O PESO?



A Unesco destaca o caráter dialético e evolucionário da ação humana como formador da paisagem cultural. Existem  paisagens claramente definidas; paisagem organicamente evoluída e paisagem cultural associativa. São paisagens totalmente desenhadas pela mão do homem, inclusive aquelas imateriais ou intangíveis. Quase todos têm como referências fundamentais a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural da Unesco, aprovada em 1972 e a resolução do Comitê do Patrimônio Mundial, de 1992, que reconheceu “as interações significativas entre o homem e o meio natural” como paisagens culturais. 

A chamada "Academia do Peixe Frito" é patrimônio imaterial do Ver O Peso que rememora o movimento modernista em Belém com artífices, artistas e intelectuais como Tó Teixeira, Jacques Flores, Rodrigues Pinagé, Dalcídio Jurandir e outros em torno da figura fundadora que foi o poeta da negritude Bruno de Menezes. O último remanescente da velha guarda da academia do Ver O Peso ainda vivo é Vicente Salles, que reside fora de Belém atualmente. Era a vanguarda e juventude do Pará chamada "Vândalos do Apocalipse", "Grupo do Peixe Frito" e, enfim, "Academia do Peixe Frito". 

Umbicalmente ligada à feira e ao Mercado do Peixe, tal academia popular fazia contraponto à academia dos imortais: a paisagem de canoas igarités com suas velas coloridas e viagens além das ilhas fronteiras à Cidade - prenhes de história da Cabanagem na margem esquerda da baía do Guajará - traz ainda a vitalidade dos povos das águas como a chuva faz renascer as plantas e a floresta inteira. 

Esquecida das comemorações oficiais, a academia foi ressucitada por ocasião dos preparativos do Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir, ocorrido em 2009. Com o encerramento das comemorações a Academia do Peixe Frito vive agora da teimosia de uns poucos em falar no nome dela de vez enquando. Debalde se tem reclamado a falta de registro dela no patrimônio imaterial de Belém. Que a mesma deveria ser o elo de ligação com Marajó na paisagem cultural do estuário amazônico - e que a regularização fundiária rural e urbana das populações tradicionais é o cerne desta revolução territorial - dispensa maiores comentários. Como diz o caboco, "tá na cara!"...

A paisagem cultural Belém-Marajó apresenta o imbricamento singular da “cultura” e “natureza” sob condicionantes ambientais, culturais, sociais e econômicos notáveis, sobretudo, no espaço do Ver O Peso. O caráter evolucionário da "criaturada grande de Dalcídio" é inqustionável com seus testemunhos e a sinergia entre ambientes naturais, construídos e modos de produção. A Academia do Peixe Frito, festival de São Benedito da Praia e outras manifestações e representações do patrimônio material e imaterial, clamam por uma política integrada de turismo e desenvolvimento sustentável no universo cultural do delta-estuário do maior rio da Terra.

Prestar tributo à memória de Neuton Miranda, quando o tempo avança rumo aos 400 anos de invenção da Amazônia e fundação de Belém do Pará, nos convida a todos a repensar nossos compromissos e engajamentos diante da imensa região norte do nosso Brasil. Uma situação geocultural que se caracteriza por forte dinamismo dos agentes econômicos e sociais com impactos sobre paisagens urbanas e rurais requerendo necessidade de proteção e preservação, como simultaneamente a de dinamizar a economia e o desenvolvimento socioambiental. Especialmente a paisagem metropolitana que abriga grande população migrante de outros estados e acolhe o êxodo rural da região das ilhas, carente de coesão social e de um pacto político de gestão compartilhada e solidária entre os diversos agentes envolvidos.

Dados essenciais para o êxito que todos desejamos. Seja do ponto de vista da preservação, seja do ponto de vista do desenvolvimento sócio-econômico e principalmente do empoderamento pelo povo do “espírito do lugar”, a dimensão imaterial das manifestações culturais e comportamentos arquetipicos de uma comunidade, que a literatura de Dalcídio e a poética de Bruno de Menezes nos ensinam a professar pelo progresso da classe trabalhadora, pela qual João Amazonas e o próprio Neuton Miranda dedicaram suas vidas.

Comentários

  1. Parabéns pela iniciativa e pelo belo trabalho desenvolvido... Conte com meu apoio!
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