O Negro na Cabanagem: enigma do mocambo Maravilha






Há 184 anos, a Cabanagem (1835-1840) levou o povo paraense, brevemente, ao poder, entre janeiro de 1835 até março de 1836. Esta foi a primeira vez na história do povo brasileiro que os pobres tomaram o governo, bem antes da Comuna de Paris (1871), porém a revolução paraense terminou em tragédia, com 40 mil mortos numa população regional de apenas 100 mil habitantes.

As lideranças cabanas dilaceradas pela autofagia da insurreição perderam controle da situação, sem conseguir garantir a esperada liberdade aos escravos e dar estabilidade ao novo regime malmente esboçado pelo falecido cônego Batista Campos, envolvido pela disputa neocolonial entre a Igreja e a Maçonaria, que marcou o período da Regência; e foi ele o pivô da revolta popular. O jovem e inexperiente caudilho Eduardo Angelim, que com rasgo de coragem assumiu o comando quando o comandante Antônio Vinagre caiu em meio ao combate do assalto ao Arsenal de Marinha (Convento dos Mercedários), na segunda fase da Cabanagem, após o presidente Francisco Vinagre renunciar e falhar de boa fé nas tratativas com o império do Rio de Janeiro para pacificar o Pará; Angelim expulsando o governo imperial para a ilha de Tatuoca (na baía do Guajará) e assumindo na cidade capital a chefia do governo cabano tentou se impor sobre grupos rebeldes desesperados e mandou fuzilar escravos exaltados sob pretexto de ter "assassinado" seus senhores e feitores durante a convulsão geral da revolta de 7 de janeiro de 1835... 

Lembremos que o historiador Domingos Antônio Raiol, Barão de Guajará, autor do clássico "Motins Políticos"; enfatiza o episódio da Vigia no qual cabanos mataram donos de escravos, dentre os quais seu pai. Eis que Eduardo Angelim tentou demonstrar aos antigos senhores do Pará que o governo saberia castigar os insubordinados e negociar com o Império. Porém, longe deste ato de força salvar a revolução, levou decepção aos negros escravos, que na esperança da liberdade eram os mais dispostos a se sacrificar; lhes fazendo compreender que os chefes da insurreição, tais como o primeiros presidente cabano, fazendeiro Félix Malcher; morto como traidor dos guerrilheiros. Já o segundo presidente, Francisco Vinagre, havia entregue o poder ao representante do Império que, com falsidade, reincidiu nas arbitrariedades que levaram Batista Campos à morte nas matas de Barcarena. Portanto, o passo em falso cometido por Angelim, supostamente aconselhado por sua mulher Luíza Clara e outros brancos próximos; foi o derradeiro desengano da abolição do trabalho escravo no Pará. Foi este erro fatal que determinou os escravos a deixar a capital em desordem para ir se refugiar nos mocambos levando destruição no caminho.

Dentre estes mocambos remanescentes da Cabanagem, o historiador Vicente Salles destacou o denominado "Maravilha" que se formou no Baixo Amazonas, em terras indígenas dos Pauxis (Óbidos). Desenganados da abolição da escravidão, os negros da Cabanagem desertaram a revolução e esta falha fatal de comando foi responsável não só pela desordem geral que se instalou entre os revoltosos, mas sobretudo pelo furor vingativo das tropas recrutadas pelo governo imperial entre assassinos, ladrões e outros desesperados nas cadeias do Nordeste pelo genocida marechal Francisco Soares de Andréa, mais tarde recompensado com título de barão de Caçapava, no combate aos Farrapos, no Rio Grande do Sul. Basta saber o terror que se instalou no Pará a mando da Regência do império, determinada a eliminar e erradicar os cabanos, que o soldo da tropa era pago mediante orelhas secas arrancadas aos mortos... Soube-se, recentemente, de fontes britânicas abertas a pesquisadores, que o regente padre Diogo Antônio Feijó negociou secretamente, no Rio de Janeiro, com os embaixadores do Reino Unido e da França a formação de expedição trinacional para eliminar a Cabanagem, que os governo convidados não aceitaram participar, porém estavam observando atentamente desde o início por se achar na fronteira com as colônias francesa, holandesa e inglesa nas Guianas.

A maravilha do mocambo dos negros de Óbidos é que, na luta de resistência que se instalou desde a fuga da praça sitiada pelos imperiais, aquele grupo de cabanos negros entre assaltos, destruição e mortes rio acima fez nascer e renascer o Maravilha diversas vezes. O mocambo tornou-se por acaso como a lenda da Fênix que renascia das próprias cinzas. Na fuga diante das forças de capitães-do-mato enviadas de Santarém, os maravi - digamos logo assim, na suposição de que a palavra "maravilha" fosse uma má compreensão da parte dos informantes que eventualmente entraram em contato com os ditos mocambeiros -, um dia o mocambo era feito às pressas em tal paragem e no outro era incendiado para levantar acampamento e continuar a fuga rio acima até transpor as cachoeiras do Trombetas. Índios amigos avisavam os mocambeiros sobre aproximação de capitão-do-matos e regatões "judeus" (libaneses) fregueses de produtos extraídos pelo pretos, davam falsas informações para proteger seus fornecedores e compradores de mercadorias, E assim foi sendo tramada a maravilha desta história cabana de resistência e luta pela sobrevivência desde os primeiros quilombos no seio da própria África resistindo ao sistema mundial de exploração de mão de obra escrava até os nossos dias.

Muitas vezes, depois da leitura do livro de Vicente Salles, eu me perguntei sobre a origem da palavra Maravilha no contexto trágico do quilombo cabano em terras dos indígenas Pauxis. Intuitivamente me inclinei para alguma palavra de origem africana próxima da suposta "maravi"... Finalmente, revi por acaso o filme "O menino que descobriu o vento", baseado em fato real no Malawi, país africano vizinho a Moçambique, que junto com o Zimbabwe vem de sofrer tempestade arrasadora e inundação com mais de mil mortos nos três países vizinhos afetados por dois ciclones com força de furacão. O Malawi é um pequeno país da África oriental dos mais pobres do mundo com uma populações de mais 12 milhões de habitantes por vezes flagelados por seca e fome. Aos meus ouvidos a palavra Malawi ressoava próxima à hipotética "maravi" na raiz imaginária do mocambo Maravilha... 

Antes da independência, o Malawi foi uma colônia inglesa cujo sustento foi a 'plantation' do tabaco, enfim arruinada pelo mercado com as oscilações de preço que arruinaram os pequenos agricultores dependentes do oligopólio. O filme (2002) retrata esse quadro catastrófico e a tensão social na aldeia dividida entre agricultura tradicional familiar e emigrantes que vendiam suas terra ainda com floresta para madereiros. Os que se recusaram a vender as árvores e a deixar a aldeia alegavam que sem a floresta os ventos trariam inundações devastadoras seguidas de severos ciclos de seca, como de fato. Então, uma rápida olhada na história do país e eis que vejo a origem do nome Malawi tirado do lago Malawi, que cobre um terço do território nacional, por sua vez originado do antigo povo Maravi que habitou o país em seu primórdios pré-coloniais... 

Teriam sido remanescentes dos antigos maravis os cabanos refugiados nas matas do Trombetas? Isto eu não tenho condições de responder... Sabemos que os escravos desembarcados no Maranhão foram embarcados em navios negreiros em portos da Guiné-Bissau, Angola e São Tomé e Príncipe. A hipótese de que mercadores de escravos tenham feito escambo em Moçambique algumas vezes e emparcado "peças de ébano" em São Tomé e Príncipe não é improvável... Mais, que caçadores de escravos provenientes de Moçambique tenham feitos incursões até as margens do grande lago Malawi também não... Por outra parte há que se contar com a possibilidade de contrabando, muito comum na época; inclusive para burlar a vigilância da marinha inglesa. O fato é que os negreiros misturavam costumeiramente indivíduos de diferentes etnias para dificultar, nas colônias, a organização da resistência dos escravos. A pergunta, então, é esta teriam chegado ao Pará maravis arrancados como escravos através do vizinho Moçambique, ou o nome do mocambo Maravilha foi apenas uma coincidência linguística?

Eduardo Francisco Nogueira Angelim (Aracati CE, 06/O7/1814 - Barcarena PA, 20/07/1882) foi o terceiro presidente revolucionário cabano do Pará. Era ele retirante das secas do Nordeste na década de 1820; pequeno agricultor sem terra trabalhando em parceria com o fazendeiro paraense Félix Clemente Malcher, que foi o primeiro presidente revolucionário da Cabanagem. Teria, então, cerca de dezesseis anos de idade quando com seus pais e irmãos foi morar no bairro da Campina, em Belém do Pará, que reunia a classe pobre de trabalhadores do porto, indígenas usados na pesca e negros escravos e libertos. 

Sem dúvida, o jovem cearense assistiu as lutas políticas da Adesão do Pará à independência, em 1823, que a termo levariam à eclosão da Cabanagem (1835-1840). Devido a seu temperamento de briga de rua, foi apelidado "Angelim", madeira dura. Com 19 anos de idade, ele participava das agitações da política da província e se encontrou engajado nas forças cabanas desde os primeiros confrontos armados. Na sucessão de acontecimentos violentos veio a assumir a presidência da província do Pará entre novembro de 1835 até 9 de abril de 1835, quando deixou o poder frente às tropas imperiais comandadas pelo marechal Francisco Soares Andréa; e rompendo o cerco da cidade de Belém do Pará durante uma tempestade foi se refugiar nas matas do Acará. Onde afinal foi localizado e se rendeu em 20 de outubro de 1836, junto com sua mulher Luíza Clara acometida de febre de malária. Biógrafos de Eduardo Angelim ressaltam a influência que Luíza Clara, que foi duas vezes viúva e herdeira de um rico comerciante português; sobre o marido. 

Angelim foi enviado ao Rio de Janeiro para julgamento, condenado cumpriu pena na ilha de Fernando de Noronha, ao fim da prisão retornou ao Pará em 1851, passando a residir em Barcarena sem participar nunca mais da política. Luíza Clara o acompanhou no exílio e enlouqueceu após o parto da filha do casal, anistiado pelo Império junto com os demais cabanos sobreviventes, o ex-presidente depois de seu retorno não se envolveu mais em política. Ele como Francisco Vinagra também, sem ter tido coragem de declarar a abolição da escravidão, tal qual Abraham Lincoln fez na Guerra de Secessão dos Estados Unidos entre 1861 e 1865; morreu discretamente seis anos antes da Lei Áurea; no dia 20 de julho de 1882, sendo enterrado na capela do Engenho Madre de Deus, na ilha Trambioca, em Barcarena, juntamente com a sepultura de Luíza Clara. E se sabe que onde houve engenho de açúcar e aguardente também houve escravos. O dilema da Cabanagem e das mais revoltas da Regência.

Enfim, no dia 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a famosa "lei áurea" que aboliu a escravidão no Brasil. A escravidão de "negros da terra" primeiramente, e de "negros da Guiné" foi alicerce do colonialismo no Brasil e do Império depois da independência: com o fim da mão de obra escrava a monarquia sucumbiu imediatamente, em 15 de novembro do ano seguinte. 

Mas, apesar de tudo, o 13 de Maio não chegou a ser o último capítulo dessa história vergonhosa de nosso país descoberto pelo fidalgo Pedro Álvares Cabral de passagem para ir negociar especiarias com o marajá de Calicute, na Índia. De fato, ainda o Brasil não havia sido "descoberto" e já 36 índios da ilha Marinatambalo (Marajó) tinham sido capturados pelo espanhol Vicente Yañez Pinzón como "negros da terra" (escravos indígenas) nos fins de janeiro de 1500. 

De lá pra cá, 519 anos depois, nem com a Lei Áurea (1888), nem com a Proclamação da República cem anos depois da Inconfidência Mineira(1789); tampouco com a Constituição-Cidadã (1988), cem anos depois da Abolição; os estados amazônicos do Pará e de Mato Grosso contra a lei divina e dos homens, tornaram-se useiros e vezeiros na prática do hediondo trabalho escravo. 

Paradoxalmente, a conquista da Amazônia seria impossível sem aliança entre soldados portugueses e guerreiros tupinambás: aqueles ambicionando tesouros imaginários e estes últimos à procura de um paraíso mágico chamado Yby Marãey (terra sem mal), onde não havia Fome, Trabalho Escravo, Doenças, Velhice e Morte. O desengano final da utopia selvagem, aparentemente, deu-se com a escravização no Peru de uma impressionante migração tupinambá saída de Pernambuco até o alto Amazonas, de 14 mil adultos e crianças, cerca de 1530, abrindo os caminhos do sertão rumo ao por do sol para as barrancas do Tocantins e daí em diante descendo este caudaloso rio paraenses para varar os Furos de Breves e subir o Amazonas. Tendo, talvez, acontecido o último suspiro do mito na célebre viagem de Pedro Teixeira a Quito (Equador), com 1200 tupinambás de arco e remo ida e volta desde Belém do Pará, entre 1637 e 1639, cem anos depois da entrada de Gonzalo Pizarro (25/12/1539) ao país da canela (Amazônia equatoriana).

Colonização e escravidão são as duas faces da mesma moeda. A colonização da Amazônia não teria sido possível sem braço escravo e o povoamento português no Brasil não teria acontecido na ausência de pobres e enganados casais atraídos para ocupar o Maranhão e Grão-Pará, notadamente vindos das ilhas do arquipélago dos Açores iludidos pela falsa propaganda de aventureiros como o dono de navio Simão Estácio da Silveira, por exemplo. 

Sobre a tapera do ancestral sonho do "bom selvagem" foi implantada a utopia evangelizadora do reino de Cristo na terra dos bárbaros tapuias, com as cinzas messiânicas do Quinto Império do mundo. E na antropofagia de ambas utopias fundou-se o estado colonial amazônico, por obra e graça da transformação do índio cristianizado em "caboclo" (saído do mato) durante o Diretório dos Índios (1757-1798). Até aí a colonização da Amazônia havia importado escravos da África colonizada inicialmente pela Companhia de Comércio do Maranhão, conhecida como Companhia do Estanco do Maranhão e Grão-Pará, monopólio privado criado no reinado de Dom Pedro II de Portugal, em 12/02/1682, para fomento da manufatura do açúcar e da plantação de algodão mediante crédito da coroa e importação de escravos africanos pelos colonos no Maranhão e Pará com garantia de transporte seguro. A Companhia prometeu entregar 10.000 escravos importados da Costa da Guiné em vinte anos. Além do monopólio do comércio, a Companhia gozava de isenção de impostos, fazia jus ao direito privado via executiva exclusiva a fim da cobrança de suas dívidas, assim como autorização prévia para "descer" (capturar) indígenas do sertão que precisasse para seu serviço. Privilégios brancos geradores da elite amazônica.




A nobreza do Maranhão e Grão-Pará desde cedo socorreu-se da mestiçagem e do cunhadismo tupi misturando descendência europeia e indígena. Mistura fina de corpos e espíritos onde o sincretismo já veio do ultramar em desenvolvimento. Vóduns da Mina viriam, sem demora, juntar-se às santidades indígenas e aos santos da igreja católica com destaque ao culto do Espírito Santo desembarcado no Maranhão com casais açorianos. Os nobres senhores do Maranhão e Grão-Pará tiveram p açoriano Simão Estácio da Silveira como paradigma. Ele foi um dos pioneiros da colonização portuguesa no Maranhão. Foi juiz da primeira Câmara de São Luís, procurador da conquista do Maranhão. Escreveu a obra "Relação Sumária das Cousas do Maranhão" (1619), publicada em 1624 em Lisboa, com propósito de aliciar colonos portugueses para a região conquistada. Simão Estácio da Silveira é o patrono da Câmara Municipal de São Luís do Maranhão, tendo em sua homenagem a medalha do mérito municipal do seu nome. Comandou ele a chegada, em 1619, de trezentos casais dos Açores, tendo sido eleito o primeiro presidente da Câmara Municipal da capital maranhense.

Simão Estácio descreveu a Amazônia ainda em odor selvagem com as tintas frescas do paraíso na terra. E os iludidos do panfleto dedicado aos pobres de Portugal, sem experiência e trato com a natureza equatorial, não tardaram a perceber que eles estavam, literalmente, no mato sem cachorro... Não tinham a menor ideia a respeito da religião e história da brava nação Tupinambá, que cerca de 1613, havia convidado o corsário francês Charles des Vaux com seus camaradas a morar com eles na ambição sub-reptícia de levar a guerra ao Parauaçu (Grão-Para). Certamente, os franceses da France Équinoxiale não souberam do mito tupinambá da Yby Marãey (terra sem mal). Se soubessem logo não diabolizariam Jurupari, o espírito tutelar dos indígenas, e não perderiam a amizade do Bom Selvagem. Por isto, o casamento da filha do cacique de Jaguaribe (Ceará), Jacuúna; com o cristão-novo marroquino Martim Soares Moreno; pariu a Amazônia portuguesa. 

Mas, também os novos amigos do bravos tupinambás cometeram o erro fatal de lhes roubar as roças, tomar-lhes mulheres e estuprar suas filhas, escravizando os guerreiros. Uma centena de colonos pagou a ofensa com a própria vida e a guerra de expulsão dos estrangeiros foi declarada pelos indígenas. O cacique e pajé Pacamão, da aldeia de Cumã, liderou a ofensiva no Maranhão e, em 7 de janeiro de 1619, o cacique Guaimiaba (Cabelo de Velha) levantou os tupinambás do Pará contra os portugueses. A represália portuguesa foi sanguinária, um verdadeiro genocídio comandado pelos filhos de Jerônimo Albuquerque, Bento Maciel Parente e Pedro Teixeira... No outro 7 de janeiro (1835), a sombra dos "negros da terra" e "negros da Guiné" assombrou o Império do Brasil. 

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