Rio Grande do Norte e Grão Pará: 100 anos do Manisfesto de Córdoba e as águas emendadas da Corrente Equatorial Marítima.

Forte dos Reis Magos
Forte dos Reis Magos, Natal, Rio Grande do Norte.



 boca da noite, no fim da jornada, os três caravelões portugueses com homens vindos da jornada do Maranhão acabam de entrar no Rio Pará. Chegam em vias de conquistar o "rio das amazonas". O comandante da expedição é o português Francisco Caldeira de Castelo Branco, capitão-mor do Rio Grande do Norte, que manda as ditas naus dobrarem a ilha do Sol (Colares) a fim de recolher as velas e fundear às ilhargas da aldeia dos Tenoné, junto à Ponta do Mel (depois Vila do Pinheiro, Icoaraci). Ali os navegantes foram pernoitar. Tudo se encontrava estranhamente calmo e parecia ter esperado , há séculos, por esta hora." 

José Varella [José Marajó Varela], "Amazônia Latina e a Terra sem Mal": Belém do Pará, 2002. 


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Forte do Presépio (forte do Castelo), Belém do Pará.






o primeiro Marco colonial de Portugal em terras brasileiras, erguido em 1501 pelo cristão-novo Gaspar de Lemos, em Touros (Rio Grande do Norte). Foi removido pelo IPHAN, em 1974, e se encontra na Fortaleza dos Reis Magos, em Natal.



O presente comentário manifesta meu interesse pessoal pelo sucesso do oitavo Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (CBEU), de 27 a 30 de junho de 2018, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cidade de Natal, Estado do Rio Grande do Norte. Sei que é muito difícil derrotar a colonialidade que habita a História de mais de 500 anos das relações entre a Europa e suas antigas colônias, mas não será impossível se jovens historiadores do mundo inteiro despertarem para a urgente necessidade de reinventar o mundo.

É claro que esta dificílima missão reclama o que, no passado recente, foi o sonho da juventude acadêmica da nossa América Latina exposto no Manifesto de Córdoba (Argentina), de 1918. Cujo espírito veio à luz novamente na revolta de Maio de 1968, em Paris, cinquenta e oito anos depois. Agora estudantes brasileiros estão reunidos em Natal, Rio Grande do Norte, aos 100 anos do Manifesto de Córdoba! 

A história acontece como tragédia e se repete como farsa. Já repetimos isto um milhão de vezes... E estamos sempre a consultar o passado sem ver suas consequências no presente, que muitas vezes se projeta, cegamente, ao futuro. A oportuna presença da ONU, através do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), realça temas como comunicação social, mídia comunitária, cultura, assistência jurídica, qualificação de recursos humanos, educação básica, preservação do meio ambiente, promoção de saúde e qualidade de vida. 

Alguns dos temas que serão trabalhados no 8º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (CBEU), que acontece do dia 28 ao dia 30 de junho, na Universidade Federal do Rio grande do Norte (UFRN). O encontro vai reunir estudantes, professores e especialistas, e também será uma oportunidade para a comunidade acadêmica se integrar aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)O evento bienal traz como tema “Extensão e Sociedade: Contextos e Potencialidades” e tem como objetivo discutir os desafios da extensão universitária no Brasil e sua relação com a sociedade. Essa é uma oportunidade para que a academia trabalhe mecanismos de interação que promovam mudanças expressivas em suas comunidades.
Para somar aos cenários e às competências da extensão universitária, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) participa da mesa que discute os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - Agenda 2030. Na ocasião, o representante, Jaime Nadal, falará dos temas abordados nos ODS, assinados por mais de 150 líderes mundiais e suas interrelações com as questões populacionais emergentes. Segundo Nadal, os objetivos e metas traçados nesta agenda são fundamentais para garantir um mundo mais justo e igualitário com acesso a direitos para todas as pessoas.
É de suma importância que as Instituições Públicas de Ensino Superior conheçam e se comprometam com a Agenda 2030. É com a participação de todos e todas, em especial dos e das estudantes que futuramente serão os gestores deste país, que o Brasil pode alcançar as metas estabelecidas e avançar rumo a um Estado comprometido com o bem-estar social”, ressalta o representante da ONU. 

Este evento no Nordeste brasileiro deve ser visto como oportunidade para revigorar a Extensão Universitária não apenas como uma prosaica "ponte do futuro", mas um profundo mergulho no rio de Heráclito a fim de redescobrir o Brasil, donde a originalidade brasileira possa vir a contribuir, sobremaneira, a suscitar a resiliência planetária. Uma nova historiografia descolonial deverá ser convocada pela provocação da ancestralidade brasílica que a Cerâmica Marajoara, de mais de 1500, dentre outras fontes deve nos servir de farol de navegação.

Oxalá, a cidade de Natal - geneticamente ligada a Belém do Pará - possa assinalar neste momento um ponto de virada em relação aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), com a memória do doutor Onofre Lopes da Silva na criação inovadora da Extensão Universitária, através do CRUTAC, conjuntamente com seu colega médico paraense Camilo Martins Vianna, vice-reitor e pro-reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA) nos anos 70 e 90; entusiasta e militante do CRUTAC na Amazônia paraense.

A Amazônia e o Nordeste tem ligação umbilical que explica o gigante da América do Sul. Os mais Brasis da república federativa, longe de ser lesados pela ancestral "esquina" do continente sul-americano; mais depressa encontram na bifurcação da corrente equatorial marítima, a razão do "achamento" do Brasil e a sustentação história do direito territorial brasileiro, que se amplia ao Mar Territorial e ao enorme desafio da chamada "Amazônia Azul" hoje em perigo pela cobiça estrangeira aos nossos recursos naturais. Eis por que o passado continuamente se faz presente e desafia o futuro:


"Escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, Caminha redigiu a carta para o rei D. Manuel I  a comunicar-lhe a descoberta das novas terras. Datada de Porto Seguro, do dia 1 de Maio de 1500,  Gaspar de Lemos, comandante do navio de mantimentos da frota, trouxe-a para Portugal.
Em 2005 este documento foi inscrito no Programa Memória do Mundo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Este é um documento essencial e curiosíssimo de um momento supremo da História e da cultura portuguesas, e, como tal, um paradigma da literatura de viagens do Renascimento e da cultura nova, de base experimental e tendência crítica, na qual, segundo Jaime Cortesão, está contido o «fermento crítico» responsável pelo espírito filosófico do século XVIII.Trata-se de uma verdadeira carta-narrativa, na qual são descritos a geografia, a fauna, a flora do Brasil, a aparência e a psicologia dos nativos, os métodos e experiências de contacto dos portugueses e as reações mútuas, obviamente a partir de uma perspetiva etnocêntrica que estuda a nova terra e a população com o objetivo de colher algum proveito: «[Nesta terra] não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro, nem lho vimos. A terra, porém, em si é de muito bons ares [...]. Mas o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente».
A própria «salvação» religiosa da população nativa é capitalizável, na medida em que os portugueses acalentavam então a noção de que a grandiosidade dos seus empreendimentos derivaria do facto de os feitos da sua História se relacionarem com a expansão da fé cristã, e portanto beneficiarem sempre da proteção de Deus. É a mesma conceção providencialista da História portuguesa que encontramos em Os Lusíadas. A expansão era encarada, não só como o alargamento da civilização e da cultura em que o Homem de então mais perfeitamente realizava as suas potencialidades - a portuguesa -, mas também Deus mais dilatava no mundo a sua lei. Numa perspetiva humanista e neoplatónica, portanto, era através da expansão portuguesa que o Homem se aproximava cada vez mais do estatuto divino, o qual, aliás, se cumpre metaforicamente nos cantos finais de Os Lusíadas.
Deste modo, a Carta do Achamento do Brasil é um documento fundamental para a compreensão do Renascimento português, logo, também da História do mundo". (fonte: Carla Brito, blogue Estórias da História).


Gaspar de Lemos foi, provavelmente, um cripto-judeu entre tantos outros de sua época, a se esconder das diabruras do Santo Ofício, que estiveram ligados ao "descobrimento" e colonização das Índias Ocidentais. Foi ele um navegador do século XVI, a serviço da coroa portuguesa e comandou um navio da frota de Pedro Álvares Cabral, que, em 22 de abril de 1500, tomou posse das terras que viriam ser o Brasil. Pouco se sabe sobre suas origens. Ele descendia de família abastada do reino de Leão (Espanha) e foi para Portugal no reinado de Afonso IV (1325-1357) onde recebeu terras e privilégios sob o trono João I

Como comandante do navio que transportava mantimentos, Gaspar de Lemos foi mandado por Cabral retornar ao reino após curta demora em terras de Vera Cruz, para levar a dom Manuel I as notícias do descobrimento. Assim, o navegador retornou levando a carta de Pero Vaz de Caminha. Já no ano seguinte, Gaspar de Lemos voltou ao Brasil, certamente autorizado pelo rei, agora em viagem exploratória trazendo a bordo o primeiro marco de Portugal em terras brasileiras, plantado em Touros (Rio Grande do Norte). 

O dito Marco foi removido de Touros pelo IPHAN, em 1974, e se encontra hoje na Fortaleza dos Reis Magos, em Natal. Com o navegador da frota de Cabral estava aquele que ficaria famoso como dando nome ao novo continente, Américo Vespúcio - na verdade, os nativos conheciam a grande terra como Amerik ("o país do vento", em língua maya, localizada na região montanhosa em torno do lago Nicarágua). Gaspar de Lemos p
artiu de Lisboa em sua segunda viagem ao Brasil, em 10 de maio de 1501 e retornou a Europa em 7 de setembro de 1502. São creditados a esta expedição os seguintes feitos:

  • a descoberta do arquipélago de Fernando de Noronha;
  • a descoberta da Baía de Todos os Santos, em primeiro de novembro de 1501;
  • a descoberta, em primeiro de janeiro de 1502, da baía da Guanabara, que confundiu com um rio e batizou de Rio de Janeiro:
  • Angra dos Reis, em 6 de janeiro do mesmo ano;
  • a descoberta da ilha de São Vicente, em 22 de janeiro de 1502.

Autores portugueses atribuem a Gonçalo Coelho essa viagem de 1501/1502, no entanto, Gonçalo Coelho só partiu de Lisboa em 1503, também acompanhado de Américo Vespúcio. Outras fontes confundem Gaspar de Lemos com Gaspar da Gama, judeu que se encontrava na Índia quando da viagem de Vasco da Gama e foi levado por este a Portugal como informante. Estou lembrando estes acontecimentos passados que moram em nosso inconsciente coletivo. 

Aquilo que na antiga língua da Índia oriental, o sânscrito; misteriosamente chamam de "carma"... O carma não é um fado ou sina, mas um antigo nome da longa cadeia de ações e reações que tecem a história de indivíduos, famílias e comunidades. Pelo fio da História nordestina chegamos à supimpa invenção do Crutac, Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária, pelo médico humanitário Onofre Lopes da Silva (1907-1984), instalado em 02 de agosto de 1966, em Santa Cruz-RN, no Hospital geral da cidade, local que serviu de apoio às principais ações na fase inicial do recém-criado programa da UFRN. 

Santa Cruz e as pequenas cidades vizinhas estavam em festas e ansiosas, à espera da presença da Universidade e dos seus diversos setores e atores, dispostos a participarem na promoção da qualidade de vida da região do Trairí. Ou seja, esperavam chegar ao interior a EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, aquilo que para o povo que trabalha e paga impostos é o que mais interessa. Quem era o ator principal de toda aquela jornada humana? Quem era o cavaleiro andante que andava com os pés firmes no chão, cheio de sonhos e ideais certos para conquistar?  Óbvio, era Onofre Lopes da Silva, fundador e primeiro Reitor da UFRN, que se tornou um dos maiores benfeitores do seu Estado.

A sigla CRUTAC se afirmou e o nome do Programa expressava a ideia central de envolver a Universidade em ações na área rural, por meio de um grande projeto de extensão acadêmica. Longe de abrigar objetivos assistencialistas, às vezes movidos por metas eleitoreiras, o Crutac trazia o foco único da promoção social. As ações cresciam em relevância por reunir alunos das diversas áreas da UFRN, na busca de torná-los cidadãos mais conscientes e mais aptos para lidarem com suas responsabilidades sociais, não somente na fase de graduação, mas também – e sobretudo – após receberem seus diplomas e passarem a exercer as diversas profissões. 

Onofre Lopes era um líder ousado e de forte carisma, cuja palavra tinha força de tocar e repercutir na emoção e na mente dos ouvintes. Essa certeza já se provara anos antes, quando ele, com exemplos e com palavras certas, conseguiu empolgar muitos norte-rio-grandenses, na fase da fundação e da instalação da UFRN. Pouco tempo depois, com a Universidade já federalizada, nova campanha Onofre Lopes levou avante, no intuito de convencer os diversos setores da UFRN a se engajarem, de corpo e alma, nessa outra luta para a criação do Crutac. "Vi de perto, na condição de médico do projeto, desde a sua fase mais precoce, o quanto a instituição aderiu e se mobilizou, a fim de atender aquela cruzada a favor do bem comum, sob a guarda de uma universidade com fortes raízes telúricas, mas sem deixar de ser universal".

Há tempo para todo o propósito debaixo do céu.” Meio século já se foi, desde que o Crutac deixou de ser apenas uma ideia e passou à prática, com expansão posterior para grande número de instituições do Brasil. Seu rápido sucesso mostrou o quanto era oportuno. Esse sucesso deve-se também creditar a todos os que se dedicaram ao projeto, aos pioneiros e às gerações seguintes, pela devoção e pelo amor à tarefa. Durante os primevos tempos, na fase heroica do Crutac, registraram-se fatos e histórias memoráveis, com todos os participantes a fazerem o melhor, pois o ideal de servir estava à frente de qualquer ambição de proveito pessoal, como se uma forte mística pairasse sobre aquele ambiente de trabalho. Hoje, adaptado às condições atuais, deve servir de fonte de reflexão sobre o papel das universidades no mundo moderno, e de como elas podem se voltar para o seu meio social. No apagar das 50 velinhas, aplausos para o Crutac, orgulho da Universidade Federal do Rio Grande do Norte."
Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN

Agora vamos dar rápida olhada à política de extensão universitária. O plano 
PROEX/UFPA 2013-2016. Adverte, "programas e projetos de extensão devem criar sinergia no ensino e pesquisa de graduação e pós-graduação e em suas relações com a sociedade em que propicie o conhecimento objetivo da realidade social na qual a instituição se insere e a natureza das demandas sociais às quais precisa e deve responder a fim de cumprir a contento as suas funções. Mais do que isso, a práxis extensionista visa conferir à atividade de formação uma medida da relevância social dos saberes veiculados no ambiente acadêmico e a vincular as ações institucionais à realidade social que circunscreve seus mais expressivos desafios. A indissociabilidade entre a extensão, a pesquisa e o ensino constitui, portanto, uma dimensão essencial da formação para a cidadania, da qual uma universidade pública não pode prescindir."

É por esse caminho que minha memória chega até meu mestre Camillo Martins Vianna, nascido em 14 de abril de 1926, médico, folclorista e ambientalista, ícone da luta pela Amazônia. Formado pela Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, Vianna tem uma história de luta pela biodiversidade desta região e de seu povo, em suas mais de oito décadas de vida. Seu primeiro emprego foi no Museu Paraense Emílio Goeldi e, dentre suas contribuições, está um acervo de artefatos que coletou relativos às populações tradicionais.

Camilo Vianna foi idealizador das Semanas Amazônicas de Preservação; responsável pelo 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu; criador da Sociedade de Preservação aos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia (SOPREN), em 1968, e coordenador: de saúde, educação e meio ambiente na região do Tapajós; do Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária (CRUTAC); do Conselho Estadual e Municipal de Saúde e Meio Ambiente; e do Projeto Rondon, propiciando a visita e desenvolvimento de atividades de estudantes com comunidades ribeirinhas, utilizando cordéis para alfabetização e sensibilização destas pessoas, dentre outras estratégias.


Foi vice-reitor e pró-reitor de extensão da Universidade Federal do Pará, criando projetos de extensão e interiorização da instituição. Tendo no currículo viagens a diversas regiões da Amazônia, desenvolve trabalhos de educação ambiental, reanimação cultural e valorização dos habitantes e do próprio bioma. A criação de bosques comunitários e trabalhos envolvendo a recuperação de áreas degradadas estão, também, em seu currículo.

Trabalha na divulgação deste bioma em nosso país e mundo afora e é membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, tendo diversos artigos sobre o tema. Camillo afirma que seu trabalho é fruto do amor pelo meio ambiente e que este sentimento é necessário e imprescindível para tal." (Por Mariana Araguaia
Equipe Brasil Escola).  

Com isto encerro esta reflexão, enfatizando a sintonia extraordinária entre esses dois médicos humanitários, o potiguar Onofre Lopes da Silva com o hospital da caridade e o parauara Camilo Viana, o conhecido "médico dos porões da Santa Casa". Dois exemplos de vida para a Agenda 2030.

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