TERRITÓRIO E COMUNIDADE: Academia do Peixe Frito no histórico empoderamento cultural e socioambiental do Ver O Peso.

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Sentados da esquerda para direita Paulo de Oliveira, Euclides Fonseca e Edgar Souza Franco. De pé Clóvis de Gusmão, Farias Gama, Bruno de Menezes e De Campos Ribeiro. Principais confrades do grupo Vândalos do Apocalipse, anos 20 do século passado, precursores do Modernismo na Amazônia e da Academia do Peixe Frito, fonte: blogue História e Natureza, de Wesley Kattle.



Luta marajoara para empoderar a Criaturada grande

Já se sabe que o Ver O Peso é umbigo ribeirinho da capital parauara ligando-a à verde placenta da Hileia amazônica: Campina e Cidade Velha são irmãs-gêmeas no parto telúrico da terra Tapuia antropomorfizada e transformada em espaço civilizatório. Lugar de encontro onde, diariamente, muitas gentes da cidade e das ilhas trocam valores materiais e simbólicos; assim como num formigueiro humano vão movimentando a economia popular e desenvolvendo a cultura regional do Norte brasileiro, a ver o peso que a vida dá ao vai e vem da maré. 

Agora, com as águas grandes da chamada mudança climática e a Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) em curso, é hora de dar um monumental banho de cheiro ao nosso amigo Veropa. Evocar Eduardo Angelim na convocação dos filhos de Ajuricaba e dos Nheengaíbas; não mais para guerra mas a chegança bacana de novos cabanos sumanos com alegria, paz e muita fé na Virgem de Nazaré para reconstrução solidária da república popular de Ossaim-São Benedito da Praia: Conjunto dos Mercedários restaurado e restaurando a ocupação do rio de Guamá pela UFPA, extensão multicampi do Solar da Beira refeito como centro de culturas amazônicas, ecomuseu comunitário na academia do peixe frito, cidade educadora, terapia comunitária integrativa etecetera e tal...

Não que antes eu já não estivesse engajado na ancestral luta marajoara da ocupação do Ver O Peso. No Pará velho de guerra a gente resiste e luta com constância pra descolonizar a Amazônia desde o histórico dia 7 de Janeiro de 1619, dia da Revolta Tupinambá do cacique Cabelo de Velha, primeiro grito de protesto e aviso prévio da desconforme Cabanagem de 7 de Janeiro de 1835... Masporém, os sumanos estão cansados de guerras sem fim, nós queremos amor, justiça e paz: foi a partir do Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir (2009), com o renascimento da Academia do Peixe Frito que estava em recesso desde a morte de Bruno de Menezes (1963); que eu, bem ou mal, tenho no seio da comunidade mais me esforçado a dar testemunho da Criaturada grande de Dalcídio, "índio sutil" chamado por Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras, em discurso oficial da solenidade de entrega do Prêmio Machado de Assis, de 1972, pelo conjunto da obra do romancista da Amazônia. 

Oh, ano mil novecentos e setenta e dois da Era Cristã!... Ano da premiação da obra literária do escritor marajoara: o caroço mágico de tucumã (Astrocarium vulgare) levou Alfredo até a Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, com a Criaturada toda do ciclo Extremo Norte para dar o Prêmio Machado de Assis a Dalcídio Jurandir: cumpriu-se o fado do preto velho Bibiano a seu neto mulato no romance Passagem dos Inocentes

Coincidência boa, em 1972, depois de andar só pelo mundo eu me casei com a minha senhora de Nazaré mãe amorosa dos filhos meus. Foi, por acaso, também o ano que o sumano padre Giovanni Gallo chegou ao Marajó; lá onde a antiga Cultura Marajoara nasceu ele inventou o "ecomuseu" de Santa Cruz do Arari (1973-1983) e depois o museu comunitário de Cachoeira (1984); escreveu três livros, plantou árvores no Arboreto que hoje tem seu nome e o filho que o padre fez não foi filho de boto, mas sim o inusitado museu para ver "com as pontas dos dedos": então o padre dos pobres pescadores implodiu sob o excessivo peso dos multifacetadas contradições da sua inusitada missão marajoara, Gallo, Galinho, Lalá enterrou seus ossos (2003) na imitação de teso arqueológico que ele mesmo fez à ilharga do museu. 

1972 foi o mesmo ano que começou a guerrilha do Araguaia no mês de abril, em maio em Santiago do Chile surgiram as diretrizes para a Nova Museologia e em setembro, na Amazônia, foi inaugurado o primeiro trecho da rodovia Transamazônica. Então, o Centenário de Dalcídio Jurandir 37 anos depois do Prêmio Machado de Assis, 46 após o súbito falecimento do fundador da revista modernista Belém Nova e criador da Academia do Peixe Frito, em Manaus, o poeta Bruno de Menezes.

Digo que neste contexto tomei força e vigor no cumprimento de minha sina. Mas, na verdade, há mais de 60 anos deste meu humilde porém sincero percurso de caboco militante. Cada um sumano ou cada uma sumana em sua lida faz a longa estrada que leva à inifinita estrada da vida de todas gerações... Que nem um igarapezinho que nasce jitinho nas cabeceiras da solidão da terra e vai pouco a pouco confluir com o rio até, enfim, chegar ao grande Mar-Oceano... 

Antes de chegar à nova Academia do Peixe Frito junto com o Centenário de Dalcidio eu dei os primeiros passos em busca da mítica yvy marãey (terra sem mal) ou o paraíso na terra, na demanda de libertação do cativeiro das tribos perdidas. A bem dizer, desde quando, bem matuto ainda, migrei da minha aldeia de Ponta de Pedras do Marajó para a pávula Cidade Velha em Belém do Pará. No caso, migrar é força de expressão. Aqui a gente das ilhas e da terra-firme sempre atravessa a fronteira do Ver O Peso de um lado a outro, sob mil e um pretextos; entre os quais a saudade da terrinha é o mais presente. Então, em vez de migrar melhor seria dizer morar: desde o tempo em que eu passei a morar na Cidade... Morar, na boa língua paraense, é mais que apenas residir ou passar um par de tempos em determinado lugar. Morar faz a gente criar raízes e deixar saudade.

Na ilha do Marajó, eu morei com meus pais na antiga vila do Itaguari (Ponta de Pedras) e no interior do município. Na mocidade fui morador ainda com os meus pais e uma irmã no sítio chamado Serrame, herança deixada por meu finado avô materno a suas cinco filhas e um único filho, localizado à margem do rio antigamente chamado Carapanaoca e depois Rio do Canal, entre o Ourém e o Curral Panema. Os amigos vejam que cada nome de lugar é uma porta que se abre ao vasto território da memória de cada comunidade. 

A gente que vem do interior morar na cidade grande do Pará tem no Ver O Peso o ponto certo, lugar preferencial de reencontro: lá todo mundo se acha com todo mundo... Pelo menos era assim na cidade das mangueiras até cerca dos anos 60 quando o poeta da negritude Bruno de Menezes morreu (1963), a Academia do Peixe Frito que existia ao ar livre fechou as suas "portas" metafisicas e a Ditadura Militar de 1964 apareceu tal qual a cobra grande Maria Canina. Antes da demolição adoidada do Grande Hotel e dos casarões da belle époque da Borracha; da febre dos shoppings centers, nome complicado de centros comerciais globalizados pra inglês ver. A cobra grande mãe do rio, bicho do fundo inconsciente, é o tempo deste mundo de águas turvas e profundas.

Os jovens da periferia da Periferia (Amazônia neocolonial), hoje em dia, vivem cercados de luxuosos condomínios fechados e de espigões de concreto; os sub-urbanos vão com nada no bolso ou nas mãos, paresque, fazer tour de fim de semana sonhando estar na Disney americana. E voltam do ilusório conforto do supermercado para o bang-bangue da vida real nos insalubres bairros-dormitórios cochilando, bêbados e cansados de nada; a bordo de velhos ônibus sujos e chechelentos; sujeitos sempre ao cartel dos transportes e a qualquer instante ao assalto de moços maconheiros doidos pelo vício e a desesperada falta de grana e oportunidade na vida. Morrem aos montes em confronto com a polícia mal paga e mal educada, pardos matando pardos sem escola boa para todos, cadeia vira escola do crime organizado. Ai Jesus! Salve-se quem puder.

No 'veropa' papa-chibé também agora tem assalto a toda hora no meio do pitiú com namoro de garça e urubu. Masporém, antigamente, a gente se encontrava ali quase todos dias com amigos, parentes e conhecidos que tinham ficado lá no outro lado do grande rio-mundo. Comia-se peixe frito no excelente azeite de patuá, pirão de açaí barato com farinha d'água vinda de Bragança pela estrada de ferro. Por aí também mandavam-se encomendas, cartas, lembranças e recados através de passageiros e tripulantes da infinidade de barcos e canoas que cruzam noite e dia as duas baías, do Guajará e do Marajó deveras perigosa... A alquimia caboca a preço módico, sempre pronta a nos oferecer e dar sorte no amor e nos negócios. 

Se, de fato, recordar é viver conforme diz o velho ditado: bom será, desta feita pelo fio de fibra óptica; conectar memórias, saberes e lugares - isto é, fazer e acontecer a universidade da maré - em redes educadoras populares para promoção da cultura da paz mundial. Padre Antonio Vieira, payaçu dos índios do Grão-Pará, seja louvado! 

Na belle époque existiu no Pará uma tal Paris n'América, agora na época pós-colonial é tempo de construir lá fora a Belem de la Amazonie dans l'Europe através da ponte ecocultural da nova museologia sobre as margens do Atlântico! Claro está que a ponte de concreto do Oiapoque simboliza esta arquitetura virtual transatlântica. Então, o planeta Brasil e o vasto mundo hão de saber o porquê do país que se chama Pará ter antigo porto de mar no Caribe e também a razão que no rio não dá tubarão e no mar não tem jacaré, como ensina nosso venerável Mestre Lucindo. De manguezais e cantorias sebastianas quem mais entendeu foi o meu sumano Mestre Vergara. O professor Ciro Flamarion Cardoso nos deu régua e compasso da cartografia colonial que apagou o círculo caribenho de cultura guianense desde as ilhas do Marajó, na boqueirão do equador amazônico; até a ilha Trinidad confronte ao golfo de Paria, no delta do Orenoco. Mundo mundo, vasto mundo ribeirinho! Quem quiser saber mais faça uma visitinha ao Ver O Peso, participe espontaneamente da Academia do Peixe Frito em plena feira e não esqueça de ler meu livrinho Amazônia latina e a terra sem mal, lançado a bordo do navio-veleiro francês Belem, em visita comemorativa a Belém do Pará, no ano de 2002 cerca de 100 anos depois de sua última viagem como navio mercante.

Naturalmente, eu ainda não havia nascido é já estava umbilicalmente ligado ao Veropa. Sobre isto, cumpre dizer que a Cidade onde eu nasci nasceu ela por sua vez à sombra do forte do Presépio, levantado em 1616, por soldados portugueses e guerreiros tupinambás amigos destes e inimigos dos "hereges" holandeses e bárbaros nheengaíbas (marajoaras) localizados nas ilhas do outro lado do Guajará. O sítio do forte foi acordado de véspera entre o capitão-mor Francisco Caldeira de Castelo Branco e o cacique da aldeia dos Tenoné (Icoaraci), ao qual o piloto francês Charles Des Vaux levou o fundador da cidade a pernoitar e pactuar a necessária amizade em consequência da trégua de São Luís do Maranhão (1615) havida entre portugueses e franceses em luta.

No alto do outeiro junto à boca do Igarapé do Piry lusos e tupis ergueram a simples paliçada à modo indígena premeditando levar a guerra para as ilhas no outro lado do rio Amazonas: logo à margem direita do igarapé desaguando na baía do Guajará havia a praia costumeira onde índios da aldeia da Campina encostavam e guardavam suas canoas de pesca. Os brancos do povoado que se formava perto da aldeia de Mairy (largo do Carmo) na margem esquerda; iam comprar produtos de caça e pesca dos índios. Então ali a feira se esboçou assim como a futura Casa das Canoas das tropas de resgate e o convento dos frades das Mercês onde os moradores da Cidade Velha podiam ir, mais tarde, pela Rua da Praia (15 de Novembro). 

Minha avó dizia que a avó dela, portanto minha tataravó indígena morando na aldeia das Mangabeiras (fundada por padres jesuítas em 1686, depois lugar de Ponta de Pedras em 1758); atravessava a baía do Marajó em igarité de pesca a vela de jupati para ir à cidade grande no outro lado do Pará. A velha índia marajoara lembrava quando ela era moça ainda ter saltado alguma vez em terra, no Ver O Peso, de maré seca passando por riba de estiva de troncos de miritizeiro (Mauritia flexuosa), como ainda se vê hoje em qualquer porto de sítio na beira do rio. Foi assim que, em 1625, dez anos depois da tomada do Maranhão os portugueses instalaram o Haver do Peso (fiscalização alfandegária de pesos em medidas) no Pará.

No ano de 1937, minha mãe grávida de nove meses pela primeira vez, comigo na barriga atravessou as duas célebres baías do Grão-Pará em igarité (canoa a vela), ela coitada veio "se pegando" (rezando) a todos os santos e desembarcou na doca do Ver O Peso. Então, mamãe foi dar a luz na maternidade da Santa Casa de Misericórdia do Pará à sua primeira cria, aqui presente contando de memória esta singela estória. Era outubro, mês de vento de verão no longinquou ano de 1937. No Brasil vigia o Estado Novo e a II Guerra Mundial vinha roncando e levantando banzeiros pela proa... Foi assim que eu, ainda jitinho e apenas batizado cristão na igreja da Santíssima Trindade; voltei depressa à ilha grande de meus antepassados. Abri os olhos cheios de espanto e ensaiei os primeiros passos no bairrozinho do matadouro chamado o Fim do Mundo, beira do rio Marajó-Açu, confronte a uma ilhota chamada ilha do Quati onde a cobra grande Boiuna mora e costumava transformar-se em navio encantado certas noites de lua. Noite destas eu sonhei ver com uns parentes o rebujo sinistro da "monstra" se rebolando no fundo do rio e botar a cabeça pra fora d'água pra vir bubuiando com o barranco abeirando a ribanceira metendo medo. Eu sei que Freud explica a fundo a alma humana, masporém os pajés sabem o que fazer nesses casos estúrdios e justificam melhor a coisa para gente caboca que nem eu.


Invenção d'O Nosso Museu': um jeito de ecomuseu por acaso.

Eu fico pensando como seria hoje O Nosso Museu do Marajó se, por acaso, o padre italiano Giovanni Gallo e o museólogo francês Hugues de Varine tivessem se conhecido há cerca de cinquenta anos passados. Ainda que esse conhecimento mútuo tivesse acontecido à distância no mesmo tempo que Verine na França e Gallo no norte do Brasil começaram a botar em prática suas ideias de educação patrimonial para enraizar a comunidade local no território da memória. Claro que os eternamente do contra hão de dizer o padre só queria achar um motivo para congregar seus simplórios paroquianos, na maior parte famílias de pescadores artesanais e vaqueiros ou criadores da pecuária tradicional. Sim senhor, o "museu" era uma curiosidade para chamar a gentinha para missa. Não contavam com a obra da necessidade e do acaso que são os pais da invenção. O caboco Vadiquinho (por suposto filho de Vadico, apelido de Osvaldo nestas paragens) entrou na história do museu do Gallo, mais ou menos, como Pôncio Pilatos no Credo. Masporém, eu acho que sem a provocação dos tais "cacos de índio" dados pelo caboco ao padre que amava "coisas que não prestam", a história do nosso museu perderia toda graça hoje em dia.

Também acho que por obra miraculosa de São Pedro Safadinho ou talvez o Divino Espírito Santo a ideia revolucionária do francês pousasse a tempo na vila do Jenipapo, município de Santa Cruz do Arari; um lindo ecomuseu cobriria logo o território marajoara inteiro, desde as paragens do Igarapé do Francês - que coisa estúrdia, hem? - abarcando o lago Arari de lado a lado e seguindo rio abaixo até a baía do Marajó. Com tamanho ecomuseu, o prefeito nada teria que reclamar ao bispo contra o vigário. Nem o bispo prelado, nem ninguém pensaria fechar um "museu" desses, que não tem sede nem coleções em sala fechada. Portanto, a história seria outra e o padre dos pescadores não precisaria se mudar para Cachoeira nem virar o homem que implodiu no altar do museu.

Pois é disto que trata a nova museologia e foi, exatamente, o que aconteceu lá e cá naqueles idos dos anos 70. E já é passado meio século! Tempo suficiente para duas gerações saberem do que estamos falando... Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo também nunca se viram pessoalmente. Todavia, Maria de Belém Menezes fielmente interligou Marajó ao Rio de Janeiro com remessas regulares de reportagens do padre da paróquia de Santa Cruz do Arari e Jenipapo levadas ao ávido conhecimento do "índio sutil" deixando estremecendo as raízes marajoaras do romancista da Amazônia

Da mansarda na rua das Laranjeiras veio, então, como resposta a sugestão do velho agnóstico comunista ao pároco católico, balila da escola militarizada na Itália fascista e soldado de Cristo na missão da diocese de Ponta de Pedras. Para, afinal, ser inventor de museu rural no fim do mundo e repórter inconveniente ao mando do latifúndio. O premiado autor de Chove nos campos de Cachoeiraescreveu ao padre: faça uma seleção de seus artigos nos jornais e publique "um livro que será retrato da terra e da gente de Jenipapo": o resultado foi o livro-documento Marajó, a ditadura da água, Giovanni Gallo (1ª edição de "O Nosso Museu", Santa Cruz do Arari, agosto de 1980). Masporém, Dalcídio não chegou a ver o livro do Gallo, pois aos 70 anos de idade vencido pelo Mal de Parkinson, o índio sutil faleceu no Rio de Janeiro um ano antes, em 16/06/1979, longe de sua amada Cachoeira onde na juventude ele desejou ser enterrado quando morresse. Esta honra, entretanto, coube ao marajoara adotivo que nasceu em Turim (Itália).

Houvesse alguém que nem a filha do poeta Bruno de Menezes, cerca de 1973, para fazer meio de campo entre Belém e Paris, talvez o Museu do Marajó e o Ecomusée du Creusot Montceau tivessem estabelecido frutuosa geminação. Mas, isto não aconteceu. Nem mesmo quando padre Gallo foi estrela de uma delegação da Associação de Municípios do Arquipélago do Marajó (AMAM) a visitar a Guiana francesa, cerca de vinte anos depois da fundação do Museu do Marajó. E o deputado do Partido Socialista Guianense (PSG) à Assembleia Nacional de Paris e prefeito da comuna de Sinnamary Monsieur Elie Castor, anfitrião daquela jornada sem precedentes; convidou publicamente o "Père Gallo" a ser conselheiro de um projeto de museu comunitário naquela municipalidade.

O honroso convite de um afrodescendente eleito representante político da França a um padre jesuíta italiano dissidente de seu bispo diocesano e compatriota não pôde ser confirmado. Pois, Monsieur Castor sofreu processo penal que o tirou do poder por razões administrativas supostamente cometidas no exercício do cargo de presidente do Conselho Geral da Guiana. No curso do processo ele morreu, subitamente, numa prisão na França metropolitana no ano seguinte. No lado brasileiro pouco se sabe do caso onde não faltou especulação política sobre a iniciativa guianense para melhorar as relações de vizinhança com o norte do Brasil.   

É fato que Brasília e Paris pisam em ovos quando o assunto diz respeito à fronteira do Oiapoque: mais que os limites amazônicos entre o Brasil e a França ultramarina, trata-se de um obscuro trecho dos contérminos sócio-econômicos entre o Mercosul e a União Europeia. Eu não creio em bruxos, masporém eles existem... Fernando Henrique Cardoso e Jacques Chirac tentaram transformar a fronteira em ponto de união franco-brasileira, depois foi a vez dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nicolas Sarkozy dar um passo avante na cooperação de fronteira, a construção da ponte sobre o rio Oiapoque, a criação da universidade binacional e outras coisas mais. A ponte está lá firme, porém Dilma Rousseff e François Holande não se encontram lá na inauguração sinalizando que as coisas não se normalizaram tanto quanto o desejado pelos dois governos. Garimpos ilegais e imigração clandestina continuam sendo uma pedra no caminho das Guianas.

Ah, está claro que a vizinhança entre Oiapoque (Brasil) e Saint-Georges de l'Oyapoc (Guiana francesa) continua na boa desde sempre naquela comunidade intermunicipal. Melhor será quando a Universidade Binacional do Oiapoque, anunciada no encontro Lula - Sarkozy em 2009 e inaugurada em 2014; chegar a sua plena vocação de desenvolvimento fronteiriço. Quem sabe, então, a rede internacional de ecomuseus e museus comunitários chegue até lá com um criativo ecomuseu binacional?

Com a geopolítica colonial ultramarina são complicadas as relações transfronteiriças, desde o século XVIII. No passado o Norte brasileiro e a Guiana Francesa não se falavam bem e até foram à guerra durante o Contestado do Amapá, com agravante das línguas oficiais diferentes: coisa que não aconteceu entre as colônias espanholas. Até hoje, por exemplo, não se acha com facilidade tradução do francês para o português da obra do pai da Negritude Aimé Cesaire, da Martinica. Por outra parte, não existe tradução Bruno de Menezes, do Pará, para língua francesa: mas, curiosamente, o paraense é célebre pelo poema Batuque, enquanto o magistral martiniquense tenha um Batouque também... Embora exista acordo de geminação entre as duas capitais, Belém e Fort-de-France; e o Estado do Pará e a Região francesa da Martinica tenham celebrado protocolo de cooperação.

Indiscutivelmente, estudos comparativos da arqueologia e da história colonial da Amazônia, Guianas e Caribe são muito instigantes. São regiões complexas do chamado circum-Caribe. Marajó e Baixo-Amazonas fazem parte da grande área cultural guianense que se estendeu desde a ilha de Trinidad até o delta-estuário do Amazonas. No ano 400 depois de Cristo, mais ou menos, o povo dos Camotis (Camotins, vulgo "igaçabas") inventou o primeiro teso (sítio arqueológico) da Cultura Marajoara. Era um povo de mariscadores nômades com uns cinco mil anos de existência nos costados: a necessidade é a mãe da invenção... A cabo da lenda da primeira noite do mundo, aquela escuridão original que, diz-que, dormia no fundo do rio, dentro de um caroço de tucumã escondido pela cobra grande mãe do rio. Eis que um novo sol reapareceu sobre as águas do grande lago e agora a gente já não maldizia mais aquele infindável dia cujo o sol não adormecia nunca. Naquela primeira manhã depois da primeira noite do mundo, brilhou a luz da inteligência desta gente e assim inventou-se a primeva Cultura Marajoara.

A historiografia das Guianas relata a existência de povos de pescadores e mariscadores, chamados Mayé; vivendo sobre mutá (estrado sobre árvores) nos mangues da costa, vem daí a arquitetura ribeirinha de barracas de palha em estacas de madeira (pilotis). A cidade de Cametá tem origem na aldeia de Camutá-Tapera, como a indicar território antigo Aruak invadido pelo Tupinambás, no Tocantins, como em Tapuia-Tapera (Alcântara), no Maranhão. Arqueologia e antropologia pré-colombiana ainda tem muito a contribuir com a história do futuro das regiões amazônicas.

Para entender melhor esta fabulosa estória é indispensável ler o livrão Cultura Marajoara, de Denise Schaan; não antes de começar a introdução à amazonidade pela Criaturada grande a partir do romance seminal Chove nos Campos de Cachoeira e seguir os passos do menino Alfredo no chalé a bisbilhotar a estante de livros do major Alberto. Onde, entre catálogos e traças, jaziam compêndios de história e folclore. Daí talvez a criteriosa escolha do caroço de tucumã pelo menino, entre tanto outros carocinhos que crianças de todo mundo escolhem para brincar e jogar. Por que, exatamente, aquele? Porque era fruto da palmeira espinhosa que dá a divina canhapira e, sobretudo, aquele um que aos seus olhos era mágico. Havia, paresque, poderes secretos dos pajés sacacas iniciados no lago encantado do Guajará. 

Com tal carocinho preso em sua imaginação Alfredo podia correr livre pelos campos de Cachoeira, chamar a chuva para apagar as queimadas e voar até os verdes prados da Holanda a fim de dar uma espiada e comparar as diferenças de classes sociais e regiões geográficas do vasto mundo. Menos afortunado que Alfredo com o caroço mágico, eu me criei ouvindo minha mãe contar casos da fazenda Diamantina e do rico sítio Porto Santo, meu pai pintava em minha imaginação a linda Cachoeira de seus sonhos onde ele costumava visitar meu avô Alfredo, dona Margarida Ramos e seus irmãos do segundo casamento do pai. Uma viagem digna de cinema ao rio Caracará na exuberância da natureza me levava a galopar sob chuva e vento na campina imensa.

Minha primeira leitura do tio Dal foi o romance Marajó recomendado a mim por minha avó Sophia, na verdade tia, pois a legitima era a índia mangabeuara Antônia, morta no parto de nascimento de meu pai caboco. Leitor despreparado fiz uma leitura incipiente, diga-se de passagem. Todavia, aos trancos e barrancos, o caboquinho que vos fala leu "tudinho" de um fôlego só... Caíram-me as escamas dos olhos... Depois de Dalcídio já me atrevi a encarar Os Sertões, de Euclides da Cunha. E não foi sem assim que, enfim, aos 19 anos de idade no ano de 1956 subi, pela primeira vez, o caudaloso e lendário rio Arari; encostei no porto em Cachoeira de madrugada como um ladrão de gado que ninguém viu quando chegou ou partiu; fui com o sumano canoeiro até a vila do Jenipapo e retornamos rio abaixo no fim do mesmo dia em canoa montaria (a remo), três dias e três noites. Lugar esse onde, mais tarde, o padre Giovanni Gallo iria inventar O Nosso Museu de Santa Cruz que nasceu, em 1973. Ecomuseu melhor dizendo, o primeiro do Brasil, embrião do Museu do Marajó (1984) por acaso no berço da Cultura Marajoara de 1600 anos de idade! Masporém, naquele tempo eu não sabia nadinha, nem mesmo da eleição que houve para o governo estadual, motivo pelo qual ficamos sem a lancha que rebocava canoas até o lago Arari na ida e na volta o sumano errou o pulo, caiu n'agua no meio da escuridão e nós ficamos a ver navios isto é, a lancha-vapor Aida se afastar com a penca de geleiras atrás. Remos pra que vos quero? Na baixada da correnteza do rio todo santo ajuda o remador...

No dia 20 de novembro de 1756, o fundador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari , capitão inspetor da Ilha Grande de Joanes (Marajó), Florentino da Silveira Frade; achou o primeiro sítio arqueológico encontrado na ilha do Marajó, o teso do Pacoval do rio Arari, fronteiro posteriormente à vila do Jenipapo. Uma bela aldeia suspensa da fase Joanes que suscitou a obra O Homem do Pacoval, de Raymundo de Morais: do teso arrombado e saqueado saíram coleções cerâmicas pré-colombianas para o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu Paraense Emílio Goeldi, em fins do século, e também as peças enviadas à Exposição Universal de Chicago (EUA) de 1893.

À pobre gente marajoara, do teso cobiçado, sobraram "cacos de índio" que os caruanas "assopraram" ao ouvido do pescador Vadiquinho para o caboco sonso ir cotucar o padre da paróquia com a coleta clandestina de ladrões de gado, acostumados a pilhar os tesos e fazendas nos arredores. Masporém, graças a São Pedro Safadinho e ao Glorioso São Sebastião, o Divino Espírito santo enviou o padre Gallo para inventar o tal museu naquele fim de mundo. E que museu! 

Falta-me ainda dizer como foi que eu conheci Hugues de Varine e como me tornei propagandista do Ecomuseu da Amazônia. Mas agora já falei demais. Fica para próxima oportunidade. 

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