A Criaturada e o bicho do fundo.

Resultado de imagem
Bairro do Choque, boca do igarapé Por Enquanto, periferia da cidade de Cachoeira do Arari na ilha do Marajó: lembra favela da Maré, Rio de Janeiro, qualquer outro aglomerado ribeirinho pobre da América latina e do terceiro mundo. Todas favelas ribeirinhas ou não se parecem umas com as outras, testemunham a humanidade filha da animalidade em petição de miséria. Ao mesmo tempo favela é prova de resiliência. No Marajó a maior prova de resiliência quem dá é a Arte Marajoara que nasceu do barro dos inícios do mundo e renasceu de cacos de índio para ser museu.

A Criaturada grande carece despertar! Causar espanto com o choque de consciência, extrair saber do profundo silêncio das águas na universidade da maré. Decifrar o Bicho do fundo que profetas pajés falaram, ou seja o apavorante Inconsciente descoberto da loucura por Freud, Jung, Adler e outros. 




O complexo de favelas da Maré é um conjunto de 16 favelas que se distribuem pela Avenida Brasil, que integra o Centro à Zona Oeste da cidade. Sua ocupação vem de um longo processo de mudanças urbanas que atingiu a cidade durante o século XX, em especial sua segunda metade. O desenvolvimento industrial do Rio de Janeiro atraiu imigrantes de diversas regiões do país, principalmente nordestinos. As primeiras ocupações eram originalmente palafitas sobre o manguezal na margem da baía da Guanabara.




A NOITE VEM DOS CAMPOS QUEIMADOS


Alfredo voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. O caroço de tucumã (Astrocarium vulgare) o levara também... Não era um caroço qualquer, talvez sem o pirralho saber, fosse seu próprio nigredoda Criaturada grande o medo inconsciente e o instinto animal que nasce com a gente desde o primitivo ser vivente. Aquele espanto antigo que se guarda no mais profundo da mente humana. Mito da primeira noite do mundo, escondido no fundo do rio da memória, dentro de um caroço mágico de tucumã. O monstro das águas silentes, a Boiuna... Ou o Surrupira encantado que mora na touça de tucumanzeiro: a palmeira espinhenta afasta intrusos e guarda o pomo dourado da divina canhapira que somente Andreza sabia preparar para Alfredo. 

No Campinho, desde jitinho, mamando ao seio de sua mãe ou no pula-pula do macuru (balanço de cipó e vara verde para criancinha começar andar), na modesta barraca de piso de terra batida de seu tio Manuel Ramos; nascimento registrado no Cartório Malato, como Darcídio José Ramos, filho de Margarida Ramos, solteira, conforme declaração do dito tio: com a mãe o menino se abeberou das primeiras noções de Encantaria africana misturada a crenças indígenas e rezas católicas. Tudo naturalmente como o ar que se respira. 

Aquele tio preto arquiteto do Presépio local, conservador das Pastorinhas de natal e zelador da igreja matriz da vila de Ponta de Pedras devia ser um homem sábio auferindo da intimidade de santos caseiros e seus milagres. Mais tarde seria banal ao pirralho o latim acaboclado das novenas e vocábulos banto a beça, até varar campo afora em Chove nos campos de Cachoeira e mato adentro no Paricatuba assustando Curupira e bicho folharal: Missunga, ó Missunga!... Onde o autor de Marajó aprendeu tais coisas que não se ensinam na escola? O capitão Alfredo, seu pai, nativo da vila de Benfica havia chegado através da cidade grande para ensinar as primeiras letras em Muaná e Ponta de Pedras, mais tarde foi ser secretário da intendência na vila da Cachoeira e redator-proprietário da gazetilha O Arary. O resto da família era tudo gente sem eira nem beira. 

Vozes de Áfricas naquele grito que não quer calar, portador de muitas antiguidades a ecoar entre ilhas do Marajó velho de guerra desde a desconforme boca do Amazonas rios acima e mar abaixo. Dona Amélia curava febres e feridas de Alfredo, o meio irmão Eutanazio agonizava num compartimento escuro do chalé. O Diabo no fundo da garrafa de cachaça e leite de amapá. Margarida Ramos descendente de negros escravizados em engenhos de aguardente e roças de cana de açúcar de Ponta de Pedras, rio Marajó-Açu; guardava crenças e histórias antepassadas donde escorria tempo. Major Alberto que nem comandante de navio encalhado e conformado com a sorte colecionava catálogos: ele havia como portulano do destino aonde desejava chegar, a fotografia de verdes prados da Holanda. Um sonho de civilização... De que paragens de além mar surdiram-se seus parentes brancos? Contrastes dos campos queimados de Cachoeira numa tarde sem chuva... Daí que o "índio sutil", provavelmente filho de descendente cristão-novo com a preta casados na igreja de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do rio Arari para dar uma explicação à exigente sociedade rural da pecuária viajada a Paris e Londres. Festa de casamento na fazenda Mãe Maria com frito de vaqueiro à vontade, cachaça liberada aos dançantes. Dalcídio Jurandir, palmilhando as trilhas do cavaleiro da Esperança, misturava diferentes origens da sua bárbara criaturada em busca de um futuro comum melhor para todos. Todos, todos, todos...

Desde Gurupá o calhamaço literário na bagagem gestando o primeiro romance, dez anos de prática beneditina a bom vagar entre as Ilhas e a terra-firme. Ele pegou xadrez na antiga cadeia de São José onde adentrou levando Dom Quixote de la Mancha debaixo do braço e seu irmão adotivo Sidraque Pereira, cabo da PM, por acaso foi seu carcereiro e pombo correio levando recado em casa: queimem meus livros! Prova do crime. E que crime danado. Lá no São José medonho, donos das antigas sesmarias costumavam meter ladrões de gado na cadeia a fim de lhes emendar o vício do furto herdado, paresque, da velha mucuagem useira e vezeira dos índios bravios que empataram a ocupação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes. O índio sutil preso com outros comunistas na Cremação, alta madrugada, estourado pela polícia o aparelho do partido clandestino em casa do camarada Argemiro Dias do Nascimento, motorneiro da companhia inglesa de bondes. A segunda vez, depois de solto, Dalcídio embarcou em canoa a vela com Guiomarina Luzia Freire Pereira, sua mulher, e uma máquina de escrever comprada à prestação. Foram parar na velha aldeia de índios sacacas transformada outrora, por decreto imperial, em vila de Salvaterra: terra indígena lesada pelo Diretório dos Índios. Fragmentos historiográficos em meio à leseira do formidável conflito entre escolástica e iluminismo no velho mundo, sombras das Luzes sobre a periclitante colônia amazônica. 

Foi assim que o "índio sutil" chamado Dalcídio Jurandir passou a limpo o calhamaço de Gurupá e escreveu, finalmente, a primeira página do primeiro romance do ciclo extremo norte, Chove nos campos de CachoeiraCorria o ano de 1939: em pensamento, Alfredo voltou ao Chalé muito cansado... Sete anos antes o jovem filho da vila de Ponta de Pedras manifestara desejo de ser enterrado, quando ele morresse, em sua amada terra de Cachoeira para sempre debaixo da árvore Folha Miúda na beira do rio Arari em frente ao chalé de infância. 

"Quando eu morrer levem-me para Cachoeira, enterrem-me debaixo da Folha Miúda (a minha árvore, defronte do chalé, toda a minha infância) quero ficar ali, perto do rio e perto de casa debaixo daquela sombra entre os ninhos e as estrelas, parece que todos os meus sonhos ficaram pendurados naqueles ramos todos, meu primeiro deslumbramento. Eis porque minha saudade me faz ter esse desejo romântico". (Dalcídio Jurandir, setembro de 1932)."

O "desejo romântico" ocorreu quando Dalcídio José Ramos Pereira tinha 23 anos de idade. Depois ele se tornou conhecido como Dalcídio Jurandir. A morte faz parte da vida, mormente para quem entra em revolução contra os donos do mundo: urge estar avisado de que a vida não é brincadeira, não... Em seu castelo de livros, major Alberto sonhava com os verdes prados da Holanda a bordo do chalé de Cachoeira batido de vento e chuva. Talvez, quando Dalcídio Jurandir morreu, no Rio de Janeiro aos 70 anos de idade, em 16 de junho de 1979, fizesse uma tarde sem chuva em Cachoeira semelhante àquela outra, na qual Alfredo foi longe com o caroço de tucumã na mão levado pelos campos queimados.

Sem saber de seu desejo para o enterrarem em Cachoeira do Arari, Dalcídio foi sepultado no cemitério São João Batista, cidade do Rio de Janeiro, na cripta dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL). Quanta honra na morte para quem penou na vida! Bem profetizara o preto velho Bibiano, dizendo ao neto Alfredo, em Passagem dos Inocentes, "esse teu pé no bostoque vai é que vai"... Ele foi com o Chove, em 1940, morar no Rio. Em Cachoeira o bairro ribeirinho do Choque ainda não havia emergido do limbo com os poraqués e a favela da Maré estaria para aparecer na ocupação do mangue da baía de Guanabara por outros tantos nortistas e nordestinos. Dalcídio Jurandir não viu os famosos canais, nem moinhos de vento ou os verdes prados da Holanda, mas ele subiu aos Andes em Santiago do Chile e foi até Moscou. 

Tardiamente a terra natal, onde com a notícia da prisão o capitão Alfredo devoto de Santa Rita encontrada na guerra do Paraguai pelo patriarca voluntário da Pátria Raimundo Pereira; encheu-se de espanto face ao comunismo ateu de seu filho mulato; a vila de Ponta de Pedras lembrou Dalcídio e pretendeu trazer seus restos mortais. Em vão, pois os filhos do romancista laureado em boa hora não aceitaram mexer com quem estava quieto em paz depois da peleja desta vida. Contudo, desde então, justas homenagens aconteceram a fim de lhe resgatar a memória através da Associação de Professores para Estudos Literários de Ponta de Pedras - Dalcídio Jurandir (ASPELPP-DJ) até a construção da Escola Estadual de Ensino Médio Dalcídio Jurandir e do auditório Dalcídio Jurandir da Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó (AMAM), na capital estadual. 

Espanto! Assim como a Cobra grande habita o fundo do rio da memória ribeirinha, a dialética existe dos domínios da História: a prefeita fazendeira herdeira dos Contemplados, neta de Dona Leopoldina Lobato e descendente direta do Visconde de Arary; tomou iniciativa no vácuo político da companheirada vermelha... E a amada Cachoeira, infelizmente, a cabo de muitos invernos, deixou o chalé tombar ao chão: nem mesmo a Folha Miúda resistiu ao esquecimento e à erosão do rio: por sorte, o Chove resiste ao tempo ingrato e no campo da literatura Três casas e um rio está de pé.



Imagem relacionada
Casa tradicional holandesa: homem e natureza harmonizadas. Para os povos das terras baixas da América, tais como o maior arquipélago fluviomarinho do planeta, no delta-estuário da maior bacia higrográfica do mundo; os Países Baixos pela sua geo-história são um espelho civilizacional. Reciprocamente, a velha Cultura Marajoara ainda poderá ter alguma lição a ensinar ao primeiro mundo.  Belém do Grão-Pará libertada do fantasma da Belle Époque poderia ser a Amsterdam dos trópicos, como Nova Amsterdam na América do Norte foi herdeira do Brasil holandês antes de acabar como Nova York. Os verdes prados da Holanda ainda poderão inspirar a universidade da maré a gerar engenheiros, ecologistas e arquitetos conservacionistas de rios, portos e canais naturais na ilha do Marajó. É para isto que serve uma reflexão como esta.



KWAT'MARE NENËKA: TEORIA DO BICHO DO FUNDO


Resultado de imagem para imagem cobra sucuri
Anaconda, arigbóia, boiaçu, boiçu, boiguaçu, boioçu, boitiapóia, boiuçu, 
boiuna, sucuriju, sucurijuba, sucuriú, sucuruju, sucurujuba (Eunectes murinus).

"Kwat'mare nenëka" ("a cobra anaconda está dormindo") - disse o consternado índio Maiongong. O topógrafo Adalberto veio correndo com o rifle engatilhado e meteu quatro ou cinco balas na cabeça da cobra sem errar nenhum, mas ela nem estremeceu... Morreu dormindo. Quando a cobra grande, paresque, acordou já era pertencente ao outro mundo... Mundo dos encantados e caruanas. Sim, a grande Anaconda que trocava pele fora d'água dormiu na beira do rio e desta vez para sempre. Animal totêmico da outrora vasta nação Caribe, povo guerreiro que comia o inimigo hereditário Aruak vencido em combate justo. Tal qual o antropófago Tupinambá, tão parecido ao canibal caribenho. 

Foram espanhóis que, sem saber da realidade do Novo Mundo, inventaram a equivocada palavra canibal dando má fama aos Kalina como comedores de carne humana para encher a pança. Falso! Este nome 'carib' também dado ao voraz peixe Piranha nas Índias Ocidentais hispânicas. O bicho ancestral dos Kalina, certamente, comeu muitos índios pagãos e também alguns cristãos distraídos deste mundo tropical de águas grandes. 

Daí vem, paresque, o pânico imemorial que salta à simples visão da figura desconforme da Boiuna. A Serpente demonizada na Bíblia.. "Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar." (Gênesis 3,15:).  Claro que na guerra metafísica entre catequistas e pajés fizeram-se igrejas e capelas em sítios de encantaria onde a cobra grande Boiuna costumava se materializar na forma de tremor de terra ou "caldeirão" (torvelinho) na correnteza do rio. Tal qual acontece no Paracauary, na ilha do Marajó, comunicando o Mar ao lago encantado do Guajará, nas imediações do rio Camará, por uma suposta passagem subterrânea. Lá onde pajés sacacas vão se iniciar. A cobra grande da capela de Nossa Senhora das Mercês, na fazenda Arari, é famosa. Diz-que quem vai ver de perto para contar de certo, ainda escuta suspiros profundos do sumetume (toca de bicho) onde a Boiuna dorme o sono da terra. Certa vez, reza a lenda, precisando restaurar a santa imagem de Nossa Senhor a retiraram do altar-mor a fim de mandar a Belém. Então - coisa pavorosa -, não passou meia hora e a cobra rebolou nas entranhas do barranco num forte tremor de terra. Voavam longe as telhas da capela, o gado curraleiro da fazendo corria longe espantado campo afora, que nem gado do vento amoitado. Foi preciso cavalo e cavaleiro esperto correr atrás e atalhar a passagem da lancha-vapor além da Volta do Bacuri, no fim do estirão do Arari. De volta a santa a seu altar, tudo ficou no lugar. 

No rio Marajó-açu, confronte à cidade de Ponta de Pedras, existe uma ilhinha chamada do Quati. Uma ilha jita, masporém de enorme fama. Pois a gente acredita que embaixo mora a cobra grande Boiuna varando por baixo da terra até a igreja de Nossa Senhora da Conceição milagrosamente pisando a cabeça da Serpente. Assim, as coisas se mantém em equilíbrio entre o bem e o mal desta vida. Certas luas do ano a ilha se transforma em navio encantado, mais de um mariscador que morto de sono amarrou sua montaria na beira da ilhinha do Quati, quando deu por si; viajava a reboque do navio encantado em alto mar.

O realismo mágico desta gente é o que salva caboco das penas do inferno verde. O que faz esquecer a enorme carnificina que os conquistadores do Novo Mundo católicos apostólicos romanos causaram aos índios, conforme o dominicano Bartolomeu de Las Casas deixou patente. Ferozes "deuses" brancos que, sem aviso prévio, um certo dia desembarcaram na ilha Guaanani (ilha do Salvador, ou seja de um certo Salvador Fernandes Zarco, nativo da vila de Cuba, Portugal; codinome Cristóvão Colombo). Hoje não mais Guaanani dos extintos Tainos, nem do espião judeu-português Salvador Zarco, mas o conhecido paraíso fiscal das Bahamas, no mar do Caribe. 

Tal qual os índios descendentes da cobra mãe, a espécie E. murinus se acha em risco de extinção. Que tinha eu que ir longe do acampamento na beira do rio tirar fotografias da corredeira com sua linda queda d'água? Não sabia que aquilo é habitat de cobra grande sucuriju? Sorte minha que o temido animal aquático não estava à caça. A grande kwat'mare dormia profundamente. E o fotógrafo improvisado, por ócio irresponsável, quase pisou sobre a "monstra" enquanto ele recuava em busca do ângulo de visão perfeito. Foi ao sentir a terra mole afundar sob seus pés em meio a uma touça de canarana na margem do rio, que deu pela coisa. Olha o desconforme susto! Saltou fora que nem macaco faria melhor ao fugir da onça. Pois lá estava o bicho do fundo. 

Estivesse a anaconda bem acordada eu não estaria aqui para contar história. O colega de trabalho só daria falta de mim depois do meio dia, na hora de comer. O maquiritare Estevão sobrinho do cacique que era nosso guia e cozinheiro, em horas vagas meu professor de língua e cultura Maiongong ou Maquiritari; certamente iria perguntar pelo pescador panema ao não me ver sob a tolda àquela hora. A busca haveria de começar imediatamente. Xico Maiongong, tuxaua do Auaris, chefiando os índios peões iria à frente perguntando em sua língua, quem viu o imprudente desaparecido.

Antigamente, estas vastas terras e águas grandes do meio do Novo Mundo eram despovoadas de gente. Então, uma cobra-canoa grande chamada Makará, dizendo um velho pajé kubewa do alto Rio Negro ao conde italiano Ermano Stradelli que gentil o escutava com atenção e bom entendimento; a cobra grande chegou cá nestas paragens vindo ela do outro lado do mundo a fim de parir na beira do rio. Ela, então, desovou a primeira gente filha desta terra. Eram jitos que nem peixinhos de igarapezinho. A cobra mãe lhes deixou sobre as pedras do rio para secar ao sol e ela foi embora descansar no fundo onde fica seu reino encantado e o país das pedras verdes sumersas. É claro que esta cobra, mãe dos peixes e das primeiras gentes, é a mesma serpente cósmica que morde a própria cauda. Ou seja, nossa Senhora do tempo.

O povo Wayana da serra do Tumuk-Humak (cf. Lucia Hussak Van Velthem, em A Pele De Tulupere: Uma Etnografia Dos Trancados Wayana), paresque, mora nesta filosofia. Pois seus pajés sabem que a verdadeira cobra grande está lá em riba, no céu. Suspensa por um cinturão quântico feito com asas de borboletas. A cobra grande astral é reverenciada ali com o disco ornamental no teto da casa comum. Em baixo, na cachoeira, morava a grande anaconda devoradora de gente, cópia terrena da serpente celestial. Os índios flecharam e mataram a anaconda totêmica e ainda hoje conservam sua memória na arte dos trançados. 

Toda uma ecocultura imemorial, de modo que cada tecelã ou tecelão é a própria coletividade passada, presente e futura daquele território tradicional. Cada detalhe contém o todo e o todo está em cada detalhe: uma folha nova de arumã quando grela na mata já traz a pinta da cestaria a ser tecida amanhã por mãos de mestres e mestras oriundas de inúmeras gerações.

A gente tem direito de duvidar disto e de tudo mais. Porém os pajés sentados, isto é; os verdadeiros pajés sacacas de sete fôlegos, ensinam aos aprendizes a ficar em silêncio. Sentado vendo o tempo passar, como alguém que vai a pesca ou vai caçar com tempo bastante para encarar as grandes questões da vida e os mistérios da morte. Eles avisam que as respostas são o que menos interessa nessa estúrdia viagem na qual não se vai a nenhum lugar. O fim disso tudo é arranjar espaço para o silêncio e o espanto. 

O viajante do tempo há de parar as horas e espiar somente o reino do sonho a ver o rebujo da cobra grande no fundo do rio de Heráclito, aquele que se não mergulha duas vezes. E não correr de medo do monstro de grande olho que tudo vê, passando devagar, de bubuia; na maré junto à ribanceira onde o sonhador malmente assiste o apavorante espetáculo da existência.

Foi, mais ou menos, o que terá acontecido, no verão amazônico de 1783, no rio Arari, ilha do Marajó, ao sábio luso-brasileiro da Universidade de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira; ao iniciar ele a célebre Viagem PhilosophicaSeguia o curso do rio prenhe de meandros e curvas em canoa a remo na maçante viagem, ele e o inspetor da ilha Florentino da Silveira Frade sentados embaixo da tolda de palha, dita panacarica; feita pelos índios cativos a serviço do Inspetor, para proteger os brancos da inclemência do sol ou das chuvas.

Em dado momento, entre os remadores um índio catecúmeno falou aquilo que o naturalista anotou em seu diário (ver Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes, 1783), como a teoria galante do índio do rio Arari. Dizia que, nos princípios, os centros baixos da ilha com o lago Arari eram habitat de várias cobras grandes e pequenas. Após as chuvas de costume sobreveio um enorme sol e bebeu toda água que havia no lago até a derradeira gota. Naquele tempo a ilha era, paresque, um grande forno de barro para torrar farinha d'água com o fundo chato e as bordas alevantadas. 

Ou seja, não havia rio para sair da ilha para fora. Até ali a chuva caia das nuvens e subia de volta com o calor da terra sob o sol de verão. Aquele verão foi desconforme! Secou tudinho. As muitas cobras que viviam no lago começaram a buscar saída para o mar a bom rebolar na lama escaldante. As menos fortes morreram logo. Porém, as maiores cobras grandes abriram passagem à força e as menores seguiram atrás pela trilha. Estas últimas fizeram igarapés e aquelas brutas o próprio rio assim retorcido. 


margem-rio-arari
foto Margot Benincasa, rio Marajó-Açu, ilha do Marajó, 2009. Ano do Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 10/01/1909 - Rio de Janeiro, 16/06/1979).

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas