O DIA QUE O DIABO MIJA NO PÉ DO AÇAIZEIRO





DIA DO BERTO

No folclore da ilha do Marajó, 24 de agosto é considerado o dia do Berto (um dos diversos apelidos de Lúcifer). Neste dia o Diabo anda solto pelo mundo e nas ilhas ele vai mijar aos pés de açaizeiro (Euterpe oleracea) da varja fazendo pretejar o açaí no cacho e dar começo à safra do ano.

O caboclo ribeirinho tem grande temor ao Demo e neste dia não vai às matas nem se arrisca sair de casa para efetuar viagem, evita toda sorte de trabalho com ferramentas que possam causar acidentes. Um vasto repertório de acontecimentos funestos relacionados com o dia 24 de agosto reforça a velha superstição, reforçada com o detalhe curioso do amadurecimento do açaí quase que totalmente em torno do dia do Berto. Aliás, os velhos cabocos tinham o “vinho” (suco) de açaí em conta dos alimentos tabu: nenhuma fruta se devia misturar ao açaí para não fazer mal. Pois faltando apenas “um grau” para ser considerado veneno o açaí podia causar considerável mal à saúde.

COMO O BERTO CHEGOU AOS AÇAÍZAIS DA ILHA?

Antigos habitantes do Marajó contavam ter visto alguma vez vagar nas matas seres sobrenaturais como o Curupira e outros dentre os quais o mais temido de todos, chamado Jurupari. Existe na foz do rio Amazonas o arquipélago Jurupari. Lugar de memória onde a tradição conserva, vagamente, a lembrança do demiurgo Tupinambá. Com certeza, o Jurupari chegou às ilhas do Pará já demonizado através do Maranhão onde frades capuchinhos franceses, desde 1612, catequizaram os índios em confronto à santidade dos pajés-açus, também chamados caraíbas. Estes homens poderosos do Brasil pré-colonial eram profetas temidos pelo povo indígena, capazes de provocar a morte por simples olhar, cujo dom lhes era conferido pelo dito Jurupari (do tupi “juru”, boca e “pari”, tapagem) no sentido de boca fechada. Ou seja, a entidade fazia eleição de seus profetas na terra comunicando-se com eles através do pesadelo: a lenda do civilizador Jurupari diz que ele nasceu de uma índia virgem chamada Ceucy (“mãe das lágrimas”) grávida pelo sol depois dela comer a fruta da cucura-do-mato. Com os últimos raios do sol ao cair da noite, nasceu Jurupari como homem feito e ele veio ao mundo para instituir a Casa dos Homens, onde nenhuma mulher - dado sua curiosidade natural e inclinação a dar com a língua nos dentes - não teria acesso a fim de não quebrar o sagrado segredo da instituição da pajelança.

O drama se instalou, todavia com a curiosidade de Ceucy para saber do segredo da Casa dos Homens e a traição de um velho pajé motivou a ira de Jurupari, que transformou a mãe em estrela da constelação das Plêiades e o velho índio em tamanduá. A lei do filho do Sol resumia a revolta dos homens contra o domínio absoluto das mulheres (suposta passagem do antigo matriarcado tapuia para o patriarcado tupi) e pregava que todo verdadeiro homem (Abaeté) deve servir-se exclusivamente de suas próprias mãos recusando o trabalho de outros. Contam que a nova ordem ditada pela Casa dos Homens deu causa à revolta das mulheres, que se separaram daquela aldeia revolucionária e foram formar a tribo das Icamiabas junto ao lago Espelho da Lua, à margem do rio Nhamundá, estas mulheres amotinadas chamadas também Cunhã-tecoymas (“mulheres sem marido”); foram confundidas mais tarde com as amazonas lendárias, importadas da Capadócia (Turquia) através da imaginação de frei Gaspar de Carvajal e com as monjas do Sol (sacerdotizas do deus Inti, no Peru, zeladoras do tesouro dos Incas).

Reza a lenda das icamiabas convertidas em amazonas, que os homens logo se deram conta de que sem mulheres na aldeia a história acabava mal parada ali mesmo. Então, eles resolveram subir o rio em busca das ditas cujas e já arrependidos propuseram concórdia. Porém as rebeladas não quiseram conversa, a capitoa Conori - assim se chamava a comandante das amazonas amazônicas, que podiam estar despeitadas mas jamais amputaram o seio pra manejar o arco guerreiro - estabeleu que, de tempo em tempo, os homens poderiam vir ao Espelho da Lua para coabitar com elas um dia. Desta maneira, quando as águas baixavam no Nhamundá os índios Jamundá saiam de sua aldeia próxima ao Trombetas e Amazonas pegando tartarugas e junto ovos pelas praias até perto daquele lago ao pé da serra. Em lá chegando as amazonas se aproximavam e elas mesmas escolhiam seu par levando para a aldeia a rede dele, a cabo do festim cada amazona mergulhava no lago de águas transparentes para retirar do fundo a fina argila esverdeada com que confecionar o talismã famoso de nome Muiraquitã como lembrança daquele encontro.

Uma versão do mito diz que ao fim de um ano os Jamundás retornavam e, então, as icamiabas entregavam aos pais os curumins nascidos da festa anterior para ser criados como guerreiros e ficavam com as cunhataíns ficavam com as mulheres para ser educadas como amazonas. Outra versão fala de infantício, dizendo que as mulheres sem marido matavam seus filhos logo após o parto e criavam somente as meninas. Nada disto em verdade nunca foi comprovado.

Fica claro, portanto que o folclore em tela se refere ao processo dialético civilizatório da Amazônia no contexto do conflito, subjacente à Colonização européia, entre invasores tupis e a resistência tapuia no Pará e Amazonas, que implica o fundamental drama amazônico. Na França Equinocial (Maranhão) a santidade tupi foi demonizada pelos padres e virou o Diabo que atravessou o Mar-Oceano para embargar a obra de Cristo... Assim, no Marajó velho de guerra [terra do índio "malvado", falante da "língua ruim", o nheengaíba] em vias de tupinização para invenção do caboco ("saído ou tirado do mato") no Diretório dos Índios (1755-1798)], o velho diabo cristão e o espírito neotropical Jurupari se confundiram na figura ambígua do Berto (corruptela de “Bartolomeu” em referência ao massacre dos protestantes pelos católicos na Noite de São Bartolomeu, em Paris. Já devíamos saber que os missionários portugueses chegaram ao Pará pelo caminho do Maranhão (ou seja, dos Tupinambás) seguindo a trilha catequista deixada pelos frades capuchinhos da França Equinocial...

REMINISCÊNCIA DA NOITE DE SÃO BARTOLOMEU NA FORMATAÇÃO DA LENDA DO BERTO

O massacre da noite de São Bartolomeu, 24 de agosto, em Paris; foi um evento sangrento na repressão dos protestantes pelos cristianíssimos reis da França. Foram matanças organizadas pela casa real francesa tendo começo a 24 de Agosto de 1572 e duraram vários meses, indo de Paris e a outras cidades vitimando entre 70.000 e 100.000 protestantes franceses (chamados huguenotes). O massacre cometido pelos católicos aconteceu dois anos depois do tratado de paz de Saint-Germain, pelo qual a rainha católica Catarina de Médici oferecera tréguas aos protestantes.

Em 1572, quatro incidentes seguiram o casamento real de Marguerite de Valois, (irmã do rei da França) com Henri de Navarre, uma aliança feita para acalmar hostilidades entre protestantes e católicos e fortalecer as aspirações de Henri ao trono. Em 22 de Agosto, um agente de Catarina de Médici (mãe do rei de então, Carlos IX), chamado Maurevert tentou contra a vida do almirante Gaspard de Coligny, chefe huguenote de Paris. O atentado enfureceu os protestantes dando margem a agitações por toda França. Logo nas primeiras horas da madrugada de 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu, dezenas de huguenotes notáveis foram assassinados em Paris, em série de ataques planejados pela família real.

De Paris foi dado sinal para massacre maior a partir de 24 de agosto até outubro, seguindo-se então uma onda de assassinatos de huguenotes em cidades como Toulouse, Bordéus, Lyon, Bourges, Ruão e Orleans. Estimativas do número de mortos do “pogrom” variam de 70.000 a 100.000. Relatos contam de cadáveres nos rios durante meses, de modo que ninguém mais podia comer peixe. O Papa Gregório XIII manifestou satisfação e os sinos de Roma ressoaram para um dia de graças, foi cunhada medalha comemorativa e o Papa encarregou o artista Giorgio Vasari de pintar um mural celebrando o terrível acontecimento. Todavia, este não foi o primeiro nem último conflito sangrento entre católicos e protestantes na Europa. O pobre  Diabo, como sempre, ficou com a culpa permitindo mais tarde ao filósofo francês Jean-Paul Sartre sentenciar sobre a história: o diabo são os outros... E o Outro por excelência nos trópicos era a santidade dos nativos diabolizada pelos bons cristãos, fossem eles católicos ou evangélicos. Como diria o anticlerical Voltaire, no "Cândido", "o mal existe: é preciso cuidar do nosso jardim". Este nosso jardim comum, hoje mais que nunca em risco de perdição, nunca foi exatamente o Éden, mas a mãe Terra grandemente danada pela demência de seus próprios filhos.

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