LEITURA RECOMENDADA PARA ENTENDER O 7 DE JANEIRO DE 1835
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
“A SOLDADESCA DESENFREADA”:
politização militar no GRÃO-PARÁ da Era da Independência
(1790-1850)
Shirley Maria Silva Nogueira [ver NOTA EXPLICATIVA]
Salvador
2009
2
Shirley Maria Silva Nogueira
“A SOLDADESCA DESENFREADA”:
politização militar no GRÃO-PARÁ da Era da Independência
(1790-1850)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História Social do Brasil do Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, para obtenção do título de
Doutor em História.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Líbano Soares
Co-Orientador: Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes
Salvador
2009
3
________________________________________________________________________________
Nogueira, Shirley Maria Silva
N778 “A soldadesca desenfreada”: politização militar no Grão-Pará da Era da Independência
(1790-1850). / Ana Maria Assiz Santos. – Salvador, 2009.
341f.:
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Líbano
Co-Orientador: Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, 2009.
1. Militares – Brasil. 2. Soldados. 3. Revoltas. 4. Política. I. Soares, Carlos Eugênio Líbano. II.
Gomes, Flávio dos Santos. III. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. IV.Título.
acessar link
http://www.ppgh.ufba.br/IMG/pdf/Shirley_Nogueira-_A_Soldaesca_Desenfreada-_junho-2.pdf
NOTA EXPLICATIVA
O trecho abaixo, de autoria de Shirley Nogueira [acessar link supra], se refere à ocupação de Caiena (1809-1817) por tropas recrutadas no Pará. A autora é pesquisadora de história militar. Pelo Facebook ela manifestou preocupação de que se tenha confundido aqui no blogue ser ela especialista da Cabanagem (1835-1840). Eis o comentário da Professora em apreço.
Relendo o brevíssimo texto introdutório não se encontraria informação contrária ao que vem de ser dito sobre a especialidade da tese em tela. Todavia, concordo que fui lacônico ao ter escrito apenas: "... cujo retorno teria influênciado o movimento popular para adesão à independência do Brasil e a grande rebelião geral de 1835":
Esta frase é minha, não da Professora Shirley Nogueira. Faltou frisar que tal afirmativa está baseada na obra "Cabanagem - A Revolução Popular da Amazônia", de Pasquale Di Paolo, considerando que o regresso das tropas paraenses estacionadas em Caiena, em 1817, tiveram importante componente no chamado contágio das ideias republicanas e abolicionistas no Pará que levaram à guerra-civil esmagada pelo Império do Brasil. Assertiva que a tese em epígrafe parece confirmar: daí o cabeçalho que dei a esta postagem. Fico grato à autora pela oportunidade destes esclarecimentos.
[José Varella, Belém - 23/02/2012].
...............
As Revoltas Militares de Caiena
A tomada de Caiena, pensada por Francisco de Souza Coutinho, foi posta em prática
com a vinda da família real para o Rio de Janeiro. A vila de Chaves, no Marajó, foi escolhida
para ser o quartel general da Força Expedicionária. Francisco de Souza Coutinho havia
435 APEP, EC, Códice 155. Correspondência da Metrópole com o Governo. Ofício de 1775
436 Nogueira. Razões para desertar...p.84-85
183
pensado em Chaves por esta se localizar próximo a Caiena, por isso enviou o 2º regimento de
1ª linha para lá, em 1803. Foram construídos quatros prédios para abrigá-lo. 437
O Capitão-General José Narciso de Magalhães e Meneses foi o responsável por
organizar a defesa do Grão-Pará e as tropas paraenses a serem enviadas à Caiena. Para isso,
ele recebeu doações de moradores proeminentes de Belém a fim de se fazer a restauração das
fortalezas e da artilharia do Pará. Além disso, reforçou a segurança da capital, recrutando uma
tropa de libertos, expediente já utilizado por Francisco de Souza Coutinho em 1798. O
contingente deles era expressivo e, em tempos de guerra, não se podia prescindir de nenhum
homem.
Para a tomada de Caiena, foram enviados primeiramente 600 voluntários, chamados
de “Corpo de Vanguarda”, infantes da ilha do Marajó e o regimento de Extremoz. Esses
homens formavam três regimentos de infantaria e um corpo de artilharia, somando 991
homens, que eram comandados pelo Coronel Manuel Marques de Elvas Portugal. Como já foi
dito, eles contaram com a ajuda dos ingleses, que enviaram o capitão James Lucas Yeo à
frente da corveta britânica Confiança, contendo 200 granadeiros e 100 marinheiros. A guerra
à França foi declarada em 22 de março de 1808, mas, somente em outubro, as tropas partiram
do Pará em direção à Guiana Francesa. 438
A rendição de Caiena ocorreu em 12 de janeiro de 1809. Ao final da batalha, havia
apenas 400 militares do lado brasileiro. Para completar o efetivo militar, foram enviados
outros homens, passando a guarda de Caiena a ter por volta de 1.300 militares. Como prêmio
pelo feito, o Príncipe Regente concedeu ao então Capitão-General do Pará o posto de
Marechal do Exército, com soldo de duzentos mil réis por mês, mais Grã Cruz das Três
Ordens Militares. Manuel Marques recebeu a graduação de Brigadeiro do Exército, e cada
oficial, cadete e porta-bandeira recebeu um posto acima do que possuíam antes da conquista.
Os soldados receberam um emblema fixo, na manga direita do uniforme, com uma cruz
vermelha escrita Caiena. 439
Para administrar a Guiana, o Brigadeiro Manuel Marques assumiu o cargo de
Governador militar para cuidar exclusivamente das questões militares, e João Severino Maciel
da Costa foi nomeado Intendente-Geral de Polícia de Caiena. Maciel da Costa era também
437 APEP, FSPP, Códice 805. Correspondência de Diversos com o Governo. Ofício de 10 de junho de 1825.
438 Arthur Cezar Ferreira Reis. “A ocupação de Caiena”. In: Sérgio Buarque de Hollanda (org.). História Geral
da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico, tomo II: o processo de emancipação. Vol. 1, 9a edição, Rio de
Janeiro: Bertand Brasil, 2003, p. 322-324.
439 Reis. “A ocupação de Caiena...p.327-328; Ciro Flamarion Cardoso. Economia e sociedade em áreas
coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-181). Rio de Janeiro: Graal, 1984; APEP, EC, Códice 653,
Correspondência do Governo com Diversos.Ofício de 07 de maio de 1810.
184
responsável pela administração civil. Possuía ao mesmo tempo as atribuições de manter a
ordem por meio da criação da polícia e controlar o judiciário e as finanças de Caiena, como
era o caso do Intendente-Geral de Polícia do Rio de Janeiro. 440 Embora coubessem a ele tais
atribuições, resolveu não fazer grandes mudanças nesses setores. O Coronel Pedro Veriano
Chermont Barata lembra do governo português sobre Caiena da seguinte maneira:
Nossa ocupação, a meu juízo, era um tanto informal. Não havíamos feito
grandes mudanças, a não ser as destruições ocorridas nos dois dias de
combate. Nada de trocar nomes de rua ou logradouros, ou pôr abaixo
estátuas e monumentos. O toque de recolher foi decretado apenas nos
primeiros vinte dias, mas depois qualquer um podia transitar a qualquer hora
do dia e da noite, apresentado os documentos franceses. Apenas o direito de
sair da colônia estava suspenso, mas tal proibição não resistia [...] a uma boa
conversa e a um bom pecúlio. O direito a propriedade foi respeitado, e as
únicas instituições que tiveram suas portas lacradas foram as cinco lojas
maçônicas da cidade. 441
Manuel Marques governou sozinho Caiena até junho de 1809, uma vez que Maciel da
Costa chegou apenas em janeiro de 1810. No período que esteve no poder, tomou medidas
para a proteção de Caiena de uma possível retomada da colônia pelos franceses. Além disso,
criou um imposto sobre as casas de negócio para garantir o pagamento da tropa que não
recebia desde outubro de 1808. 442 Contudo, isso não resolveu o problema de atrasos nos
soldos, sendo este um dos motivos do levante de junho de 1809.
Provavelmente, no início, a falta do soldo não desanimou a expedição, uma vez que
acreditavam poder obter lucros com os espólios de guerra ou negócios que pudessem fazer em
Caiena. Essa tropa desembarcou em Caiena, acreditando estar em uma praça opulenta, na qual
conseguiriam enriquecer. Todavia, Cardoso escreve sobre a precariedade da econômica local.
Apesar de em 1808 haver um surto de prosperidade na Guiana Francesa, ela não possuía
condições para ser viável como uma colônia de plantation.
Durante quase toda sua história, a produção agrícola de Caiena fora marcada pela
cultura de um ou mais gêneros para exportação, principalmente o urucum e o algodão. Esses
produtos não geraram o rendimento propiciado pelo açúcar, como nas colônias francesas das
Antilhas. O comércio funcionava com pouca circulação de moedas. Elas geralmente
chegavam por meio do pagamento feito pelo rei aos seus funcionários, como os militares e
administradores civis. Devido à falta de numerário, os colonos faziam trocas das suas
440 Reis. “A ocupação de Caiena...p. 328-329
441 Marcio Souza. Lealdade. 2ª edição. São Paulo: Marco Zero, 1997. p. 87
442 Reis. “A ocupação de Caiena...p. 332
185
mercadorias com as importadas. Assim, havia pouco fausto na Guiana Francesa. 443 Na
descrição de Pedro Veriano Chermont Barata, Caiena era uma cidade que:
[...] não tinha maiores atrativos, nunca os teve, era um porto colonial
desprovido de personalidade...[...]... Caiena era um arruamento ao longo do
estuário dos rios Caiena e Mahui, entrando pela selva, com alguns belos
sobrados cercados de pomares nos arredores do perímetro urbano. Nunca
tinha sido uma cidade bonita ou imaginosa, foi o que fiquei sabendo. Os
franceses jamais deram muita importância para aquilo ali, e Caiena, então
com o porto obstruído pelas diversas embarcações postas a pique por nossa
esquadra, e o fortim praticamente varrido pelas nossas baterias,
transformara-se num lugar sujo, miserável e doentio [...] Faltava comida,
atendimento médico, faltava tudo. 444
A cobrança do imposto sobre os negociantes de Caiena para pagar os efetivos militares
não foi o suficiente para regularizar o pagamento dos soldos. Foi sobre isso que o próprio
Brigadeiro Manuel Marques escreveu ao Marechal José Narciso de Magalhães e Meneses. O
memorialista e Coronel Pedro Barata relembrou o atraso dos soldos e a situação da ocupação
de Caiena três meses depois da conquista. Segundo ele, a Coroa, para manter a ocupação,
precisava diminuir os gastos, pois não tinha recursos suficientes, e entre os cortes nas
despesas estava o pagamento dos soldos. 445
A falta dos soldos levou à insatisfação das fileiras do Exército, ocasionando assim o
primeiro levante, que ocorreu em junho de 1809. Ciro Flamarion Cardoso refere-se a essa
sedição como, apenas, uma revolta para forçar a volta dos soldados para o Pará. No entanto, a
documentação mostra que a estada das forças luso-brasileiras na Guiana Francesa foi
conturbada, e esse motim foi mais um reflexo da “queda de braço” entre praças, oficiais
inferiores e oficiais do alto escalão do Exército, iniciada na segunda metade do XVIII.
Passemos ao fato. 446
O levante ocorreu no dia 9 de junho e contou com o apoio de alguns oficiais. A
sedição começou com o toque de rebate 447, logo após o toque de alvorada, dado pelo soldado
com a função de tambor da guarda. Esse toque era o sinal para que todo o efetivo militar se
juntasse na frente do prédio do governo. Nessa reunião estavam soldados e oficiais, que
segundo o Brigadeiro Manuel Marques, constituíam “a testa” do levante. Segundo o
443 Cardoso. Economia e sociedade...p. 27-40
444 Souza. Lealdade...p.87.
445 AN, Secretaria do Governo da Capitania do Grão-Pará, Códice 89, vol. 1, código 89, CODES. pp. 210 verso
e 272 verso e Souza. Lealdade...p.86.
446 Cardoso. Economia e sociedade...p.156.
447 Sempre que havia a necessidade de se reunirem “gente da guerra” para protegerem a cidade de algum ataque,
tocava-se uma espécie de sino. Essa era uma prática comum nas vilas e cidades desde o período colonial.
Aparentemente, os militares amotinados se apropriaram dessa prática como um sinal para reunir os participantes
do levantes.
186
Brigadeiro, os militares se reuniram para destituí-lo e colocar, em seu lugar, o Major
Palmerim, um dos líderes do motim. O motivo alegado para substituí-lo seria o atraso de dois
meses do soldo, a diminuição na ração e o regime alimentar do hospital militar, onde
recebiam ração incapaz de nutri-los. 448
Segundo o Brigadeiro, ele procurou atender às reivindicações dos “amotinados”.
Pagou um mês de soldo no dia 01 de julho, e o outro mês no dia 15 de julho. Reiniciou a
distribuição de meia libra de carne e uma de pão para os soldados, retida devido à falta de
numerário para fazer a distribuição. Ele alegava que essa reivindicação dos soldados era
injusta, pois “nem no Pará, nem em parte alguma, o soldado tem outra ração mais do que a
farinha, ou pão, e que se a tem aqui é por que eu, conhecendo a impossibilidade de poderem
subsistir só com o soldo, lhes mandei dar aquela que tinha os franceses, isto é, meia libra de
carne, e uma libra de pão”.449 Para equacionar o problema da alimentação reduzida no
hospital militar, mandou substituir os médicos colocando um médico francês de inteira
confiança dele. Segundo Marques, o terceiro pedido era motivado por que os médicos
receitavam alimentos leves para os soldados com febre e diarréia, mas os soldados
acreditavam que esse tipo de comida os deixavam fracos, podendo até mesmo matá-los.450
O atraso de soldo nunca foi o principal motivo para deflagrar um motim, normalmente
a exigência de seus pagamentos vinha da imposição de novas medidas consideradas pelos
soldados como abusivas. Nesse caso, talvez a redução da ração, na ausência do soldo, lhes
levaria a fome, tornando a situação deles mais difícil em Caiena.
Nesse motim, há uma alteração no padrão de comportamento dos soldados em relação
aos levante de 1757 e 1774, já que os soldados permitiram que os oficiais estivessem à frente
do movimento, e não os incluir no movimento em “pé de igualdade”. Talvez, pela primeira
vez, tanto oficiais quanto soldados estivessem na mesma situação, ou, talvez, para os oficiais,
o que mais lhes incomodava não fosse somente o soldo atrasado ou a ração diminuta, mas a
promessa de riqueza não cumprida. O espólio de guerra havia ficado apenas com o capitão
inglês e o Brigadeiro Marques, que, de acordo com Acevedo Marin, enriqueceu com a sua
participação na Guerra de Caiena, como vimos no primeiro capítulo.
448 AN, Secretaria do Governo da Capitania do Grão-Pará, Códice 89, vol. 1, código 89, CODES. pp. 210 verso
e 272 verso.
449 Idem
450 Idem Provavelmente a necessidade de ingestão de “carne gorda” para revigorar era uma crença popular da
época, por isso a troca desse tipo pela “carne magra” gerou outro protesto em 1825 no Pará. Crenças populares
quanto à importância de determinados produtos para dar energia não eram incomuns. A necessidade do consumo
de pão feito de trigo branco era corriqueira na Inglaterra da segunda metade do século XVIII. Thompson escreve
que as camadas populares recusam-se a comer pão com cevada ou de mistura mais escuras, pois acreditavam que
não teriam energia para trabalhar com vigor. Ver: Thompson. “Economia Moral...p. 154-155.
187
Essa união não duraria muito. Os oficiais subalternos e superiores poderiam ser
facilmente cooptados com promoções, fáceis transferências ou diferenças no tratamento
durante seus julgamentos pelo Supremo Tribunal Militar. Por exemplo, o Major Manuel
Xavier Palmeirim, comandante da tropa, foi acusado de ser o “cabeça” do levante, pois teria,
supostamente, influenciado a tropa a se revoltar com a intenção de se tornar o novo
governador. Os “cabeças” dos motins eram punidos com a morte, como ver-se-á adiante, mas
isso não aconteceu com o Major Palmeirim.
Palmeirim anunciava aos soldados que, ao assumir o governo, resolveria os problemas,
como a falta de comida e a permanência dos soldados e oficiais inferiores do Pará em Caiena.
Depois do fim do levante, Palmeirim foi preso e mandado de volta a Belém. Mas acabou
inocentado com a alegação de que não havia provas contra ele. A única punição que sofreu foi
a proibição de seu retorno a Caiena, o que, para ele, provavelmente, foi um alívio. 451
Outro ponto a ser considerado é a presença de soldados franceses em Caiena, depois
da conquista. O Coronel Pedro Barata comenta sobre a permanência até 1810 de militares
franceses em prisões naquela cidade. Como Manuel Marques e Maciel da Costa não fizeram
grandes mudanças administrativas, os soldados devem ter continuado a receber suas rações,
que eram diferentes, segundo o Brigadeiro, de todos os lugares, uma vez que recebiam meia
libra de carne e uma libra de pão. Possivelmente esse benefício, diferenciado dos outros
soldados, se justificasse por ser uma nova força militar surgida da Revolução Francesa, que
era constituída por cidadãos que mereciam mais do que apenas a antiga ração, constituída
apenas de pão, do antigo Exército formado pelos súditos de Luís XVI. 452
Não eram somente os soldados franceses que estavam em Caiena. Havia os soldados
irlandeses e os marinheiros ingleses. Como bem colocam Peter Linebaugh e Marcus Reiker,
ainda no século XVII e início do XVIII, os marinheiros eram os desapropriados - os
potencialmente capazes de promover motins - e muitas vezes mandados da Inglaterra para
evitar problemas. Eram esses homens os responsáveis pela divulgação de idéias que vinham
da Europa que se somavam às existentes na América. Idéias como a abolição de qualquer tipo
de escravidão, defendida por radicais irlandeses e ingleses. Muitos comparavam o próprio
serviço militar como uma forma de cativeiro.
No contexto de revolução na Europa, eles provavelmente trouxeram novas formas de
manifestação popular que se somaram àquelas existentes entre os soldados luso-brasileiros de
451 AN, Secretaria do Governo da Capitania do Grão-Pará, Códice 89, vol. 1, código 89, CODES. pp. 210 verso
e 272 verso.
452 A maioria da tropa francesa foi embora em abril de 1809 juntamente com seus oficiais. Mas 12 soldados e
alguns oficiais ficaram até por volta de 1812. Souza. Lealdade...p. 87-88; 104
188
Caiena. Possivelmente o contato com esses homens possibilitou conhecimento sobre as
mudanças ocorridas na Europa, alterando assim a ação frente ao Estado Português. 453
A própria cidade de Caiena era um espaço eivado de idéias revolucionárias e muito
descontentamento. As cinco lojas maçônicas fechadas pelos portugueses são indícios da
circulação do ideário liberal na cidade. Esse gesto deve ter provocado muito
descontentamento entre a população, apesar de Maciel da Costa, em suas correspondências
com o Rio de Janeiro, dizer que a população de Caiena estava “segura das justas intenções do
governo português” 454, e elogiava o Príncipe Regente. Não se têm documentos que possam
negar o apoio de alguns moradores de Caiena aos portugueses, porém a anterior livre
circulação de idéias liberais na cidade, e a política de constrangimento ao ideário liberal pelos
portugueses, sugerem que o clima não era tão pacífico. O Coronel Pedro Barata afirma que
freqüentava reuniões secretas em casa de franceses onde leu livros dos iluministas, como
Diderot, Rousseau, Voltaire e alguns panfletários da Revolução de 1793. 455 Ane Mari Presle
considerava que Caiena havia se tornado terra de ninguém depois da ocupação, e muitas
mulheres haviam sido violentadas por saqueadores ou pela “soldadesca”.456 De fato, os saques
ocorreram, e a soldadesca participava dela em busca de seus espólios de guerra, provocando
medo entre os populares da cidade francesa, os quais não deveriam ter grande apreço pelos
invasores. Mas, passados os dois primeiros anos, os soldados fizeram amizades com a
população local, principalmente com a imensa população liberta e escrava de Caiena.
A população escrava estava insatisfeita com a reescravização em 1802, depois de ter
passado dez anos liberta – foi emancipada em 1792. Muitos cativos lutaram ao lado das tropas
invasoras contra os franceses em represália ao retorno ao cativeiro. Esses conseguiram ter de
volta sua liberdade, mas foram enxotados pelos portugueses, que os obrigaram a sair da
cidade, depois do fim da guerra, pois poderiam se tornar elementos de perturbação social. Os
demais escravos permaneceram cativos. Vários libertos conseguiram sua manumissão nos
anos que se seguiram à abolição da escravidão, e estavam temerosos com a possibilidade
ainda presente de retorno à escravidão. Dessa forma, em Caiena os soldados insatisfeitos
tiveram contato com idéias radicais, e conviviam com homens livres, libertos e cativos
dispostos a apoiá-los em levantes futuros, como se verá no levante de 1811."
NOTA EXPLICATIVA:
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
“A SOLDADESCA DESENFREADA”:
politização militar no GRÃO-PARÁ da Era da Independência
(1790-1850)
Shirley Maria Silva Nogueira [ver NOTA EXPLICATIVA]
Salvador
2009
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Shirley Maria Silva Nogueira
“A SOLDADESCA DESENFREADA”:
politização militar no GRÃO-PARÁ da Era da Independência
(1790-1850)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História Social do Brasil do Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, para obtenção do título de
Doutor em História.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Líbano Soares
Co-Orientador: Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes
Salvador
2009
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Nogueira, Shirley Maria Silva
N778 “A soldadesca desenfreada”: politização militar no Grão-Pará da Era da Independência
(1790-1850). / Ana Maria Assiz Santos. – Salvador, 2009.
341f.:
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Líbano
Co-Orientador: Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, 2009.
1. Militares – Brasil. 2. Soldados. 3. Revoltas. 4. Política. I. Soares, Carlos Eugênio Líbano. II.
Gomes, Flávio dos Santos. III. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. IV.Título.
acessar link
http://www.ppgh.ufba.br/IMG/pdf/Shirley_Nogueira-_A_Soldaesca_Desenfreada-_junho-2.pdf
NOTA EXPLICATIVA
O trecho abaixo, de autoria de Shirley Nogueira [acessar link supra], se refere à ocupação de Caiena (1809-1817) por tropas recrutadas no Pará. A autora é pesquisadora de história militar. Pelo Facebook ela manifestou preocupação de que se tenha confundido aqui no blogue ser ela especialista da Cabanagem (1835-1840). Eis o comentário da Professora em apreço.
Shirley Nogueira Caro Senhor Varella, Vi o trecho da minha tese na academia do peixe frito. Acho que o senhor deve corrigir o seu texto, pois em nenhum momento da nossa conversa escrevi que era especialista em Cabanagem. A minha tese é sobre história militar.
Relendo o brevíssimo texto introdutório não se encontraria informação contrária ao que vem de ser dito sobre a especialidade da tese em tela. Todavia, concordo que fui lacônico ao ter escrito apenas: "... cujo retorno teria influênciado o movimento popular para adesão à independência do Brasil e a grande rebelião geral de 1835":
Esta frase é minha, não da Professora Shirley Nogueira. Faltou frisar que tal afirmativa está baseada na obra "Cabanagem - A Revolução Popular da Amazônia", de Pasquale Di Paolo, considerando que o regresso das tropas paraenses estacionadas em Caiena, em 1817, tiveram importante componente no chamado contágio das ideias republicanas e abolicionistas no Pará que levaram à guerra-civil esmagada pelo Império do Brasil. Assertiva que a tese em epígrafe parece confirmar: daí o cabeçalho que dei a esta postagem. Fico grato à autora pela oportunidade destes esclarecimentos.
[José Varella, Belém - 23/02/2012].
...............
As Revoltas Militares de Caiena
A tomada de Caiena, pensada por Francisco de Souza Coutinho, foi posta em prática
com a vinda da família real para o Rio de Janeiro. A vila de Chaves, no Marajó, foi escolhida
para ser o quartel general da Força Expedicionária. Francisco de Souza Coutinho havia
435 APEP, EC, Códice 155. Correspondência da Metrópole com o Governo. Ofício de 1775
436 Nogueira. Razões para desertar...p.84-85
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pensado em Chaves por esta se localizar próximo a Caiena, por isso enviou o 2º regimento de
1ª linha para lá, em 1803. Foram construídos quatros prédios para abrigá-lo. 437
O Capitão-General José Narciso de Magalhães e Meneses foi o responsável por
organizar a defesa do Grão-Pará e as tropas paraenses a serem enviadas à Caiena. Para isso,
ele recebeu doações de moradores proeminentes de Belém a fim de se fazer a restauração das
fortalezas e da artilharia do Pará. Além disso, reforçou a segurança da capital, recrutando uma
tropa de libertos, expediente já utilizado por Francisco de Souza Coutinho em 1798. O
contingente deles era expressivo e, em tempos de guerra, não se podia prescindir de nenhum
homem.
Para a tomada de Caiena, foram enviados primeiramente 600 voluntários, chamados
de “Corpo de Vanguarda”, infantes da ilha do Marajó e o regimento de Extremoz. Esses
homens formavam três regimentos de infantaria e um corpo de artilharia, somando 991
homens, que eram comandados pelo Coronel Manuel Marques de Elvas Portugal. Como já foi
dito, eles contaram com a ajuda dos ingleses, que enviaram o capitão James Lucas Yeo à
frente da corveta britânica Confiança, contendo 200 granadeiros e 100 marinheiros. A guerra
à França foi declarada em 22 de março de 1808, mas, somente em outubro, as tropas partiram
do Pará em direção à Guiana Francesa. 438
A rendição de Caiena ocorreu em 12 de janeiro de 1809. Ao final da batalha, havia
apenas 400 militares do lado brasileiro. Para completar o efetivo militar, foram enviados
outros homens, passando a guarda de Caiena a ter por volta de 1.300 militares. Como prêmio
pelo feito, o Príncipe Regente concedeu ao então Capitão-General do Pará o posto de
Marechal do Exército, com soldo de duzentos mil réis por mês, mais Grã Cruz das Três
Ordens Militares. Manuel Marques recebeu a graduação de Brigadeiro do Exército, e cada
oficial, cadete e porta-bandeira recebeu um posto acima do que possuíam antes da conquista.
Os soldados receberam um emblema fixo, na manga direita do uniforme, com uma cruz
vermelha escrita Caiena. 439
Para administrar a Guiana, o Brigadeiro Manuel Marques assumiu o cargo de
Governador militar para cuidar exclusivamente das questões militares, e João Severino Maciel
da Costa foi nomeado Intendente-Geral de Polícia de Caiena. Maciel da Costa era também
437 APEP, FSPP, Códice 805. Correspondência de Diversos com o Governo. Ofício de 10 de junho de 1825.
438 Arthur Cezar Ferreira Reis. “A ocupação de Caiena”. In: Sérgio Buarque de Hollanda (org.). História Geral
da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico, tomo II: o processo de emancipação. Vol. 1, 9a edição, Rio de
Janeiro: Bertand Brasil, 2003, p. 322-324.
439 Reis. “A ocupação de Caiena...p.327-328; Ciro Flamarion Cardoso. Economia e sociedade em áreas
coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-181). Rio de Janeiro: Graal, 1984; APEP, EC, Códice 653,
Correspondência do Governo com Diversos.Ofício de 07 de maio de 1810.
184
responsável pela administração civil. Possuía ao mesmo tempo as atribuições de manter a
ordem por meio da criação da polícia e controlar o judiciário e as finanças de Caiena, como
era o caso do Intendente-Geral de Polícia do Rio de Janeiro. 440 Embora coubessem a ele tais
atribuições, resolveu não fazer grandes mudanças nesses setores. O Coronel Pedro Veriano
Chermont Barata lembra do governo português sobre Caiena da seguinte maneira:
Nossa ocupação, a meu juízo, era um tanto informal. Não havíamos feito
grandes mudanças, a não ser as destruições ocorridas nos dois dias de
combate. Nada de trocar nomes de rua ou logradouros, ou pôr abaixo
estátuas e monumentos. O toque de recolher foi decretado apenas nos
primeiros vinte dias, mas depois qualquer um podia transitar a qualquer hora
do dia e da noite, apresentado os documentos franceses. Apenas o direito de
sair da colônia estava suspenso, mas tal proibição não resistia [...] a uma boa
conversa e a um bom pecúlio. O direito a propriedade foi respeitado, e as
únicas instituições que tiveram suas portas lacradas foram as cinco lojas
maçônicas da cidade. 441
Manuel Marques governou sozinho Caiena até junho de 1809, uma vez que Maciel da
Costa chegou apenas em janeiro de 1810. No período que esteve no poder, tomou medidas
para a proteção de Caiena de uma possível retomada da colônia pelos franceses. Além disso,
criou um imposto sobre as casas de negócio para garantir o pagamento da tropa que não
recebia desde outubro de 1808. 442 Contudo, isso não resolveu o problema de atrasos nos
soldos, sendo este um dos motivos do levante de junho de 1809.
Provavelmente, no início, a falta do soldo não desanimou a expedição, uma vez que
acreditavam poder obter lucros com os espólios de guerra ou negócios que pudessem fazer em
Caiena. Essa tropa desembarcou em Caiena, acreditando estar em uma praça opulenta, na qual
conseguiriam enriquecer. Todavia, Cardoso escreve sobre a precariedade da econômica local.
Apesar de em 1808 haver um surto de prosperidade na Guiana Francesa, ela não possuía
condições para ser viável como uma colônia de plantation.
Durante quase toda sua história, a produção agrícola de Caiena fora marcada pela
cultura de um ou mais gêneros para exportação, principalmente o urucum e o algodão. Esses
produtos não geraram o rendimento propiciado pelo açúcar, como nas colônias francesas das
Antilhas. O comércio funcionava com pouca circulação de moedas. Elas geralmente
chegavam por meio do pagamento feito pelo rei aos seus funcionários, como os militares e
administradores civis. Devido à falta de numerário, os colonos faziam trocas das suas
440 Reis. “A ocupação de Caiena...p. 328-329
441 Marcio Souza. Lealdade. 2ª edição. São Paulo: Marco Zero, 1997. p. 87
442 Reis. “A ocupação de Caiena...p. 332
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mercadorias com as importadas. Assim, havia pouco fausto na Guiana Francesa. 443 Na
descrição de Pedro Veriano Chermont Barata, Caiena era uma cidade que:
[...] não tinha maiores atrativos, nunca os teve, era um porto colonial
desprovido de personalidade...[...]... Caiena era um arruamento ao longo do
estuário dos rios Caiena e Mahui, entrando pela selva, com alguns belos
sobrados cercados de pomares nos arredores do perímetro urbano. Nunca
tinha sido uma cidade bonita ou imaginosa, foi o que fiquei sabendo. Os
franceses jamais deram muita importância para aquilo ali, e Caiena, então
com o porto obstruído pelas diversas embarcações postas a pique por nossa
esquadra, e o fortim praticamente varrido pelas nossas baterias,
transformara-se num lugar sujo, miserável e doentio [...] Faltava comida,
atendimento médico, faltava tudo. 444
A cobrança do imposto sobre os negociantes de Caiena para pagar os efetivos militares
não foi o suficiente para regularizar o pagamento dos soldos. Foi sobre isso que o próprio
Brigadeiro Manuel Marques escreveu ao Marechal José Narciso de Magalhães e Meneses. O
memorialista e Coronel Pedro Barata relembrou o atraso dos soldos e a situação da ocupação
de Caiena três meses depois da conquista. Segundo ele, a Coroa, para manter a ocupação,
precisava diminuir os gastos, pois não tinha recursos suficientes, e entre os cortes nas
despesas estava o pagamento dos soldos. 445
A falta dos soldos levou à insatisfação das fileiras do Exército, ocasionando assim o
primeiro levante, que ocorreu em junho de 1809. Ciro Flamarion Cardoso refere-se a essa
sedição como, apenas, uma revolta para forçar a volta dos soldados para o Pará. No entanto, a
documentação mostra que a estada das forças luso-brasileiras na Guiana Francesa foi
conturbada, e esse motim foi mais um reflexo da “queda de braço” entre praças, oficiais
inferiores e oficiais do alto escalão do Exército, iniciada na segunda metade do XVIII.
Passemos ao fato. 446
O levante ocorreu no dia 9 de junho e contou com o apoio de alguns oficiais. A
sedição começou com o toque de rebate 447, logo após o toque de alvorada, dado pelo soldado
com a função de tambor da guarda. Esse toque era o sinal para que todo o efetivo militar se
juntasse na frente do prédio do governo. Nessa reunião estavam soldados e oficiais, que
segundo o Brigadeiro Manuel Marques, constituíam “a testa” do levante. Segundo o
443 Cardoso. Economia e sociedade...p. 27-40
444 Souza. Lealdade...p.87.
445 AN, Secretaria do Governo da Capitania do Grão-Pará, Códice 89, vol. 1, código 89, CODES. pp. 210 verso
e 272 verso e Souza. Lealdade...p.86.
446 Cardoso. Economia e sociedade...p.156.
447 Sempre que havia a necessidade de se reunirem “gente da guerra” para protegerem a cidade de algum ataque,
tocava-se uma espécie de sino. Essa era uma prática comum nas vilas e cidades desde o período colonial.
Aparentemente, os militares amotinados se apropriaram dessa prática como um sinal para reunir os participantes
do levantes.
186
Brigadeiro, os militares se reuniram para destituí-lo e colocar, em seu lugar, o Major
Palmerim, um dos líderes do motim. O motivo alegado para substituí-lo seria o atraso de dois
meses do soldo, a diminuição na ração e o regime alimentar do hospital militar, onde
recebiam ração incapaz de nutri-los. 448
Segundo o Brigadeiro, ele procurou atender às reivindicações dos “amotinados”.
Pagou um mês de soldo no dia 01 de julho, e o outro mês no dia 15 de julho. Reiniciou a
distribuição de meia libra de carne e uma de pão para os soldados, retida devido à falta de
numerário para fazer a distribuição. Ele alegava que essa reivindicação dos soldados era
injusta, pois “nem no Pará, nem em parte alguma, o soldado tem outra ração mais do que a
farinha, ou pão, e que se a tem aqui é por que eu, conhecendo a impossibilidade de poderem
subsistir só com o soldo, lhes mandei dar aquela que tinha os franceses, isto é, meia libra de
carne, e uma libra de pão”.449 Para equacionar o problema da alimentação reduzida no
hospital militar, mandou substituir os médicos colocando um médico francês de inteira
confiança dele. Segundo Marques, o terceiro pedido era motivado por que os médicos
receitavam alimentos leves para os soldados com febre e diarréia, mas os soldados
acreditavam que esse tipo de comida os deixavam fracos, podendo até mesmo matá-los.450
O atraso de soldo nunca foi o principal motivo para deflagrar um motim, normalmente
a exigência de seus pagamentos vinha da imposição de novas medidas consideradas pelos
soldados como abusivas. Nesse caso, talvez a redução da ração, na ausência do soldo, lhes
levaria a fome, tornando a situação deles mais difícil em Caiena.
Nesse motim, há uma alteração no padrão de comportamento dos soldados em relação
aos levante de 1757 e 1774, já que os soldados permitiram que os oficiais estivessem à frente
do movimento, e não os incluir no movimento em “pé de igualdade”. Talvez, pela primeira
vez, tanto oficiais quanto soldados estivessem na mesma situação, ou, talvez, para os oficiais,
o que mais lhes incomodava não fosse somente o soldo atrasado ou a ração diminuta, mas a
promessa de riqueza não cumprida. O espólio de guerra havia ficado apenas com o capitão
inglês e o Brigadeiro Marques, que, de acordo com Acevedo Marin, enriqueceu com a sua
participação na Guerra de Caiena, como vimos no primeiro capítulo.
448 AN, Secretaria do Governo da Capitania do Grão-Pará, Códice 89, vol. 1, código 89, CODES. pp. 210 verso
e 272 verso.
449 Idem
450 Idem Provavelmente a necessidade de ingestão de “carne gorda” para revigorar era uma crença popular da
época, por isso a troca desse tipo pela “carne magra” gerou outro protesto em 1825 no Pará. Crenças populares
quanto à importância de determinados produtos para dar energia não eram incomuns. A necessidade do consumo
de pão feito de trigo branco era corriqueira na Inglaterra da segunda metade do século XVIII. Thompson escreve
que as camadas populares recusam-se a comer pão com cevada ou de mistura mais escuras, pois acreditavam que
não teriam energia para trabalhar com vigor. Ver: Thompson. “Economia Moral...p. 154-155.
187
Essa união não duraria muito. Os oficiais subalternos e superiores poderiam ser
facilmente cooptados com promoções, fáceis transferências ou diferenças no tratamento
durante seus julgamentos pelo Supremo Tribunal Militar. Por exemplo, o Major Manuel
Xavier Palmeirim, comandante da tropa, foi acusado de ser o “cabeça” do levante, pois teria,
supostamente, influenciado a tropa a se revoltar com a intenção de se tornar o novo
governador. Os “cabeças” dos motins eram punidos com a morte, como ver-se-á adiante, mas
isso não aconteceu com o Major Palmeirim.
Palmeirim anunciava aos soldados que, ao assumir o governo, resolveria os problemas,
como a falta de comida e a permanência dos soldados e oficiais inferiores do Pará em Caiena.
Depois do fim do levante, Palmeirim foi preso e mandado de volta a Belém. Mas acabou
inocentado com a alegação de que não havia provas contra ele. A única punição que sofreu foi
a proibição de seu retorno a Caiena, o que, para ele, provavelmente, foi um alívio. 451
Outro ponto a ser considerado é a presença de soldados franceses em Caiena, depois
da conquista. O Coronel Pedro Barata comenta sobre a permanência até 1810 de militares
franceses em prisões naquela cidade. Como Manuel Marques e Maciel da Costa não fizeram
grandes mudanças administrativas, os soldados devem ter continuado a receber suas rações,
que eram diferentes, segundo o Brigadeiro, de todos os lugares, uma vez que recebiam meia
libra de carne e uma libra de pão. Possivelmente esse benefício, diferenciado dos outros
soldados, se justificasse por ser uma nova força militar surgida da Revolução Francesa, que
era constituída por cidadãos que mereciam mais do que apenas a antiga ração, constituída
apenas de pão, do antigo Exército formado pelos súditos de Luís XVI. 452
Não eram somente os soldados franceses que estavam em Caiena. Havia os soldados
irlandeses e os marinheiros ingleses. Como bem colocam Peter Linebaugh e Marcus Reiker,
ainda no século XVII e início do XVIII, os marinheiros eram os desapropriados - os
potencialmente capazes de promover motins - e muitas vezes mandados da Inglaterra para
evitar problemas. Eram esses homens os responsáveis pela divulgação de idéias que vinham
da Europa que se somavam às existentes na América. Idéias como a abolição de qualquer tipo
de escravidão, defendida por radicais irlandeses e ingleses. Muitos comparavam o próprio
serviço militar como uma forma de cativeiro.
No contexto de revolução na Europa, eles provavelmente trouxeram novas formas de
manifestação popular que se somaram àquelas existentes entre os soldados luso-brasileiros de
451 AN, Secretaria do Governo da Capitania do Grão-Pará, Códice 89, vol. 1, código 89, CODES. pp. 210 verso
e 272 verso.
452 A maioria da tropa francesa foi embora em abril de 1809 juntamente com seus oficiais. Mas 12 soldados e
alguns oficiais ficaram até por volta de 1812. Souza. Lealdade...p. 87-88; 104
188
Caiena. Possivelmente o contato com esses homens possibilitou conhecimento sobre as
mudanças ocorridas na Europa, alterando assim a ação frente ao Estado Português. 453
A própria cidade de Caiena era um espaço eivado de idéias revolucionárias e muito
descontentamento. As cinco lojas maçônicas fechadas pelos portugueses são indícios da
circulação do ideário liberal na cidade. Esse gesto deve ter provocado muito
descontentamento entre a população, apesar de Maciel da Costa, em suas correspondências
com o Rio de Janeiro, dizer que a população de Caiena estava “segura das justas intenções do
governo português” 454, e elogiava o Príncipe Regente. Não se têm documentos que possam
negar o apoio de alguns moradores de Caiena aos portugueses, porém a anterior livre
circulação de idéias liberais na cidade, e a política de constrangimento ao ideário liberal pelos
portugueses, sugerem que o clima não era tão pacífico. O Coronel Pedro Barata afirma que
freqüentava reuniões secretas em casa de franceses onde leu livros dos iluministas, como
Diderot, Rousseau, Voltaire e alguns panfletários da Revolução de 1793. 455 Ane Mari Presle
considerava que Caiena havia se tornado terra de ninguém depois da ocupação, e muitas
mulheres haviam sido violentadas por saqueadores ou pela “soldadesca”.456 De fato, os saques
ocorreram, e a soldadesca participava dela em busca de seus espólios de guerra, provocando
medo entre os populares da cidade francesa, os quais não deveriam ter grande apreço pelos
invasores. Mas, passados os dois primeiros anos, os soldados fizeram amizades com a
população local, principalmente com a imensa população liberta e escrava de Caiena.
A população escrava estava insatisfeita com a reescravização em 1802, depois de ter
passado dez anos liberta – foi emancipada em 1792. Muitos cativos lutaram ao lado das tropas
invasoras contra os franceses em represália ao retorno ao cativeiro. Esses conseguiram ter de
volta sua liberdade, mas foram enxotados pelos portugueses, que os obrigaram a sair da
cidade, depois do fim da guerra, pois poderiam se tornar elementos de perturbação social. Os
demais escravos permaneceram cativos. Vários libertos conseguiram sua manumissão nos
anos que se seguiram à abolição da escravidão, e estavam temerosos com a possibilidade
ainda presente de retorno à escravidão. Dessa forma, em Caiena os soldados insatisfeitos
tiveram contato com idéias radicais, e conviviam com homens livres, libertos e cativos
dispostos a apoiá-los em levantes futuros, como se verá no levante de 1811."
NOTA EXPLICATIVA:
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