103 ANOS: UM DIA COM DALCIDIO JURANDIR
Rio-Mar: Imagens de Soure em Marajó, de Dalcídio Jurandir.
Ernani Chaves
Departamento de Filosofia/UFPA.
“O verdadeiro amor é como a aparição de um fantasma: todos falam dele, mas poucos o viram”.
(La Rochefoucauld)
I
Confesso que minha curiosidade maior em ler Marajó, de Dalcídio Jurandir, sempre foi a de saber se Soure, minha cidade natal, apareceria no livro. E em caso afirmativo, “como” ela, a minha cidade, apareceria, “como” ela estaria representada. Sabemos que Dalcídio reescreveu Chove nos Campos de Cachoeira no final dos anos 1930, quando morava em Salvaterra, então uma vila pertencente ao Município de Soure, época em que o escritor exercia a função de Inspetor de Ensino. No exercício de suas funções, ele atravessou muitas vezes o rio Paracauari, para “inspecionar” as escolas que ficavam na outra margem, na cidade de Soure, a sede do município do mesmo nome. Então, era de se esperar, de algum modo, que Soure fosse aparecer no livro.
Minha curiosidade foi plenamente satisfeita. Embora a ação central do livro e que o ocupa em quase toda a sua totalidade, se passe em Ponta de Pedras, a cidade natal de Dalcídio, Soure aparece no livro em dois capítulos, os de números 42 e 50, já no final do romance, que tem 53 capítulos no seu conjunto. Entretanto, a presença de Soure não se dá por acaso: pois é nesta mesma temporada em que morou em Salvaterra e reescreveu o Chove, que Dalcídio escreveu Marajó, que na sua primeira versão recebeu o nome de Marinatambalo. Por outro lado, o fato de Soure aparecer já quase no final do livro também a coloca numa posição bastante especial no interior da narrativa, na medida em que nos dois capítulos em que minha cidade se torna o cenário de Dalcídio, podemos acompanhar dois momentos decisivos na história de “Missunga”.
Meu objetivo então aqui, é mostrar como esses dois momentos articulam estados psicológicos de “Missunga” com a representação da cidade, em especial, com representações da cidade ora marcadas pela sua proximidade com o mar, ora com o rio. Em outras palavras: podemos ler e reencontrar em Marajó, duas faces de Soure, aquela que se volta para o mar, para o Oceano Atlântico, com suas belas praias, do Araruna ao Cajuúna, passando evidentemente pelo Pesqueiro, e que compõem o cenário do capítulo 42 e aquela banhada pelo rio Paracauari, o rio que separa Soure e Salvaterra, cenário do capítulo 50. De um lado o rio, de outro lado, o mar. E em que medida essas duas águas, a do mar e a do rio, com suas cores, densidades e gostos diferentes, pois ocasionalmente, em determinada época, as águas das praias, devido ao contato oceânico, ficam até mesmo um pouco salgadas, dialogam com o estado psicológico de “Missunga”? Eis a pergunta que me fiz e para a qual tentarei oferecer aqui uma resposta, mesmo que provisória.
II
A decisão de “Missunga” de, no capítulo 41, alugar uma “curicaca”, uma “pequena embarcação a vela”, como esclarece o narrador, e partir em direção à baía de Marajó, tem uma motivação muito forte: um sentimento de culpa muito grande pela morte de Guíta. Guíta, a companheira dos “jogos infantis” de “Missunga”, criada com ele na casa grande de Paricatuba, representa no romance, o pólo oposto de Alaíde, a mulher com quem Missunga divide uma cabana chamada com alguma ironia de “Felicidade” e com quem ele faz a viagem que o capítulo 42 descreve. Enquanto Alaíde é associada às forças do desejo e do mal, pois afinal de contas ela é considerada a “perdição” de Missunga e a responsável direta pelo fato de ele não ter assumido, desde cedo, seu lugar ao lado do pai na condução dos negócios e também na política, Guita aparece ligada às figuras angelicais, pois afinal de contas é ela que, em todos os Natais, está ocupada com o presépio e com a pastorinha. Seduzida por Missunga, como se dizia antigamente, Guita, grávida, morre quando uma tempestade derruba uma árvore sobre ela.
Ainda no capítulo 4, rio e mar, este na forma de baía, já são mencionados de maneira antagônica e ao mesmo tempo complementar: “O rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baía” (p. 282); “A vela debateu-se, a noite ondulou, o mato desapareceu e um primitivo mar surgia (...)” (Idem); “O mar engrossava, lodo, limo, sementes, pedaços de ilhas desmanchadas, vômito das cobras grandes que rabeiam nos poços fundos” (p. 283). E em meio a esta passagem, do rio ao mar, de uma certa tranqüilidade e serenidade em direção ao “primitivo”, ao profundo, ao abissal, é que Alaíde, não suportando mais o silêncio de Missunga, pergunta a ele: “Que remorso você anda curtindo, ein?” (p. 284). A referência ao “remorso”, pois Alaíde sabe que Missunga sofre por Guita, que ele se sente culpado pela sua morte, está expressa, metaforicamente, nesta passagem, que referi a pouco, do rio ao mar, de uma certa leveza e serenidade, para algo mais profundo e tormentoso.
III
É assim, que atormentado pelo remorso, Missunga vai em direção às praias da costa oceânica de Soure, sem parar, como o narrador diz, na “boca do Paracauari”, ou seja, sem parar nem em Soure, nem em Salvaterra, mesmo que esta lhe acenasse, com seus coqueiros, pois “não havia coisa alguma ainda que abafasse a voz de Guita, apagasse o olhar (...)” (p. 286). No Araruna, a primeira parada dessa estação de sofrimento e dor, “onde a areia engolia as palhoças e os coqueiros”, “os búzios das canoas chamavam o vento e para Missunga chamavam também a voz de Guita” (Idem). No Cajuúna, a segunda parada, ao contrário, não é em Guita que ele pensa, mas em “Felicidade”, a cabana onde vivia com Alaíde, em Ponta de Pedras. No Pesqueiro, terceira parada, Missunga decide retornar: “E no Pesqueiro, quando a maré enchia, as vagas luzes do povoado se apagavam e as canoas no igarapé ficavam mortas na sombra, subiu o pano da curicaca” (p. 287). Missunga quis voltar, como se, lentamente, iniciasse a elaboração do seu luto - penso aqui, evidentemente, no texto de Freud, “Luto e Melancolia” (1919) - como se ele quisesse, aos poucos, dar as costas à morte, representada aqui na figura dessas canoas, “mortas na sombra”. A maré alta coincidindo com a chegada da noite, lhe impulsiona para a partida, em vez de mantê-lo preso ali, como um morto em meio às canoas “mortas na sombra”. Como se a lembrança de “Felicidade”, que lhe ocorre no Cajuúna, tivesse posto em movimento este processo de elaboração, dando início ao que Freud chamou, no texto que mencionei acima, de “trabalho de luto”.
Entretanto, as coisas não são tão simples assim: Alaíde, pela primeira vez, deseja ficar, ali, no Araruna, como se o retorno de Missunga significasse, para ela, a presença, a sombra da outra, da morta. Alaíde, atormentada pela dúvida, pelo ciúme, não deixa de acusar Missunga de fazer dela uma fuga das lembranças de Guita.
Assim, a primeira imagem de Soure, não é a da cidade que o inspetor Dalcídio conhecia bem, mas as das praias, onde Soure faz fronteira com o infinito do oceano. Aqui, o mar - na sua profundeza abissal - é mais o observador, meio distanciado, da luta de Missunga consigo mesmo e com seus remorsos. Araruna, Cajuúna e Pesqueiro, assim nesta ordem, parecem as “estações” do seu auto-calvário, da sua auto-flagelação. Com isso, não quero comparar Missunga com a figura de Cristo, mas remeter ao fato, de que processos de culpabilização também contém fortes elementos sado-masoquistas. Estes elementos é que podem inviabilizar o luto e conduzir o sujeito a precipitar-se na melancolia. Eis o risco que ronda freqüentemente a figura de Missunga desde a morte de Guíta: o de não poder completar seu luto e ser arrastado pelo mar revolto da melancolia.
IV
Oito capítulos depois, isto é, no capítulo 50, Soure reaparece na narrativa. Desta vez, já não estamos mais na companhia de Missunga, mas sim na de Manuel Coutinho Filho, herdeiro e sucessor do pai nos negócios e na política. Manuel Coutinho Filho, de passagem para Belém, para depois embarcar para o Rio de Janeiro, está agora em Soure, na cidade e não mais nas praias: “Abriu a janela. Não era a madrugada, era o luar. Soure dormia embalada pelo vento, pela voz da baía, num leito de mangueiras” (p. 327). Imagem inicialmente idílica, mas que é imediatamente desfeita pela lembrança de Guita: “Haveria muito tempo para se libertar da morte de Guita” (Idem). A morte de Guita significará assim, o seu e mais recente e poderoso fantasma, talvez o mais pesado, o mais difícil de suportar e, por conseguinte, de se libertar. Missunga, aliás Manuel Coutinho Filho, continua o seu tormentoso “trabalho de luto”. Guíta continua assim representando uma idéia de inocência, da pureza de um amor de fortes tonalidades românticas, que ele, Manuel Coutinho Filho, ex-Missunga, foi incapaz de reconhecer na sua grandeza e acolher na sua plenitude. “Por que tantos mortos no seu caminho?” pergunta-se Missunga.
A partir desse momento, posso acompanhar a personagem por um caminho que me foi e me é profundamente familiar: aquele que da Terceira Rua de Soure segue em linha reta até o bairro de São Pedro, bairro dos pescadores, margeado bem de perto pelo rio Paracauari, que forma, aqui e acolá, pequenas enseadas, “boas pra banho”, como dizíamos:
“Andava pela terceira rua de Soure. As mangueiras lhe ofereciam uma paz de orvalho e resina, [que] se derramava dos frutos verdes e das folhas. Em ordem na rua, pesadas de sossego e mangas. Com que maternidade, com que força de criação a terra as sustentava e as deixava ao luar, na rua da pequena cidade marajoara”.
Missunga, nessa “flânerie” noturna, com profundos traços melancólicos, é atormentado freqüentemente pelo passado próximo e distante. Soure, envolta na imagem da “maternidade”, lhe relembra o aborto de Alaíde e Guita, grávida e morta. A cidade como “mãe” em contraposição às maternidades frustradas das duas mulheres de sua vida, acenando, radicalmente, para a sua própria paternidade frustrada. Não por acaso, a lembrança da mãe também retorna:
“Voltou-se para o fundo de mangueiras em que Soure se deitava. Teve de repente, como um calafrio, a lembrança de sua mãe. Tentou reconstituir a cena da sua morte, mas perdeu os traços essenciais daquela face, daquela voz, daquela expressão de sono, fadiga e desgosto que seus olhos deixaram” (p. 328).
A lembrança da mãe - objeto do desejo e, como tal, definitivamente perdido - acentua em Missunga, o sofrimento doloroso que Guita e Alaíde, os objetos do seu amor, isto é, os substitutos do objeto do desejo, acabam por lhe provocar. Daí a presença cada vez mais insidiosa da morte, da própria morte: “As mangueiras continuavam serenas como se quisessem sepultá-lo com as suas folhas tão inumeráveis como a terra que cobria Guíta, como as estrelas desfeitas ou sepultadas no céu, berço e cemitério de estrelas” (p. 328).
Soure se torna então, o cenário onde Missunga alucina a própria morte:
“Todos os fantasmas rodeavam-no, penduravam-se na rede. O sono precipitou-se, rio vertigioso e vermelho onde boiava como um cadáver. Evidentemente estava morto, saía-lhe o sangue pelos cabelos, espumando. Estou morto, dizia. Por que os mortos não me reconhecem? Por que entre eles não vê Alaíde, não distingue a mãe e Guíta carregando um enorme tronco no ombro” (Idem).
A cidade às margens do rio torna-se assim o palco onde os mortos de Missunga ressurgem e que nem as imagens do oratório da casa do parente, em Soure, onde ele dorme, são capazes de apaziguar. Estes santos lhe lembram outros santos, os de sua mãe que, “por serem dela, santos verdadeiramente” (p. 329), mas que depois de sua morte, como que perderam sua santidade, “ficaram vazios e desamparados”, tornaram-se apenas “despojos de uma fé que não se podia arrancar daquela carne triste de mãe, daqueles nervos, enfim, parados” (Idem). A religião não consola Missunga e nem é capaz de despojá-lo de seus fantasmas. A sua identidade mais recente, como Manuel Coutinho Filho, é continuamente recoberta pelos fantasmas que lhe lembram suas outras raízes, sua outra identidade, uma outra “realeza” evocada pelo significado africano de seu apelido Missunga: não a realeza de Manuel Coutinho Filho, que se estabelece em meio à expansão capitalista na Amazônia, mas a do garoto ainda integrado às águas e à floresta, que reina entre os animais e as garotas bonitas, que rondavam a casa de Paricatuba.
A Soure das margens do rio, esta Soure-mãe com suas ainda enormes mangueiras, não pode, tanto quanto Guíta e Alaíde também não o poderiam, apaziguar a dor de Missunga. Manuel Coutinho Filho parte de Soure em relação ao Rio de Janeiro, levando junto seus fantasmas. “Soure desaparece” quando o barco a motor entra aos poucos na baía de Marajó, diz o narrador. O capítulo 50 se encerra e com ele, não é apenas Soure que desaparece, mas também Missunga, que não voltará mais a aparecer nos capítulos restantes do livro, assim como desaparecerá da própria obra de Dalcídio.
Referências Bibliográficas:
Freud, Sigmund. “Trauer und Melancholie” in Metapsichologische Schriften, Frankfurt: Fischer, 1992.
Jurandir, Dalcídio. Marajó. 3ª. ed., Belém: CEJUP, 1992
Ernani Chaves
Departamento de Filosofia/UFPA.
“O verdadeiro amor é como a aparição de um fantasma: todos falam dele, mas poucos o viram”.
(La Rochefoucauld)
I
Confesso que minha curiosidade maior em ler Marajó, de Dalcídio Jurandir, sempre foi a de saber se Soure, minha cidade natal, apareceria no livro. E em caso afirmativo, “como” ela, a minha cidade, apareceria, “como” ela estaria representada. Sabemos que Dalcídio reescreveu Chove nos Campos de Cachoeira no final dos anos 1930, quando morava em Salvaterra, então uma vila pertencente ao Município de Soure, época em que o escritor exercia a função de Inspetor de Ensino. No exercício de suas funções, ele atravessou muitas vezes o rio Paracauari, para “inspecionar” as escolas que ficavam na outra margem, na cidade de Soure, a sede do município do mesmo nome. Então, era de se esperar, de algum modo, que Soure fosse aparecer no livro.
Minha curiosidade foi plenamente satisfeita. Embora a ação central do livro e que o ocupa em quase toda a sua totalidade, se passe em Ponta de Pedras, a cidade natal de Dalcídio, Soure aparece no livro em dois capítulos, os de números 42 e 50, já no final do romance, que tem 53 capítulos no seu conjunto. Entretanto, a presença de Soure não se dá por acaso: pois é nesta mesma temporada em que morou em Salvaterra e reescreveu o Chove, que Dalcídio escreveu Marajó, que na sua primeira versão recebeu o nome de Marinatambalo. Por outro lado, o fato de Soure aparecer já quase no final do livro também a coloca numa posição bastante especial no interior da narrativa, na medida em que nos dois capítulos em que minha cidade se torna o cenário de Dalcídio, podemos acompanhar dois momentos decisivos na história de “Missunga”.
Meu objetivo então aqui, é mostrar como esses dois momentos articulam estados psicológicos de “Missunga” com a representação da cidade, em especial, com representações da cidade ora marcadas pela sua proximidade com o mar, ora com o rio. Em outras palavras: podemos ler e reencontrar em Marajó, duas faces de Soure, aquela que se volta para o mar, para o Oceano Atlântico, com suas belas praias, do Araruna ao Cajuúna, passando evidentemente pelo Pesqueiro, e que compõem o cenário do capítulo 42 e aquela banhada pelo rio Paracauari, o rio que separa Soure e Salvaterra, cenário do capítulo 50. De um lado o rio, de outro lado, o mar. E em que medida essas duas águas, a do mar e a do rio, com suas cores, densidades e gostos diferentes, pois ocasionalmente, em determinada época, as águas das praias, devido ao contato oceânico, ficam até mesmo um pouco salgadas, dialogam com o estado psicológico de “Missunga”? Eis a pergunta que me fiz e para a qual tentarei oferecer aqui uma resposta, mesmo que provisória.
II
A decisão de “Missunga” de, no capítulo 41, alugar uma “curicaca”, uma “pequena embarcação a vela”, como esclarece o narrador, e partir em direção à baía de Marajó, tem uma motivação muito forte: um sentimento de culpa muito grande pela morte de Guíta. Guíta, a companheira dos “jogos infantis” de “Missunga”, criada com ele na casa grande de Paricatuba, representa no romance, o pólo oposto de Alaíde, a mulher com quem Missunga divide uma cabana chamada com alguma ironia de “Felicidade” e com quem ele faz a viagem que o capítulo 42 descreve. Enquanto Alaíde é associada às forças do desejo e do mal, pois afinal de contas ela é considerada a “perdição” de Missunga e a responsável direta pelo fato de ele não ter assumido, desde cedo, seu lugar ao lado do pai na condução dos negócios e também na política, Guita aparece ligada às figuras angelicais, pois afinal de contas é ela que, em todos os Natais, está ocupada com o presépio e com a pastorinha. Seduzida por Missunga, como se dizia antigamente, Guita, grávida, morre quando uma tempestade derruba uma árvore sobre ela.
Ainda no capítulo 4, rio e mar, este na forma de baía, já são mencionados de maneira antagônica e ao mesmo tempo complementar: “O rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baía” (p. 282); “A vela debateu-se, a noite ondulou, o mato desapareceu e um primitivo mar surgia (...)” (Idem); “O mar engrossava, lodo, limo, sementes, pedaços de ilhas desmanchadas, vômito das cobras grandes que rabeiam nos poços fundos” (p. 283). E em meio a esta passagem, do rio ao mar, de uma certa tranqüilidade e serenidade em direção ao “primitivo”, ao profundo, ao abissal, é que Alaíde, não suportando mais o silêncio de Missunga, pergunta a ele: “Que remorso você anda curtindo, ein?” (p. 284). A referência ao “remorso”, pois Alaíde sabe que Missunga sofre por Guita, que ele se sente culpado pela sua morte, está expressa, metaforicamente, nesta passagem, que referi a pouco, do rio ao mar, de uma certa leveza e serenidade, para algo mais profundo e tormentoso.
III
É assim, que atormentado pelo remorso, Missunga vai em direção às praias da costa oceânica de Soure, sem parar, como o narrador diz, na “boca do Paracauari”, ou seja, sem parar nem em Soure, nem em Salvaterra, mesmo que esta lhe acenasse, com seus coqueiros, pois “não havia coisa alguma ainda que abafasse a voz de Guita, apagasse o olhar (...)” (p. 286). No Araruna, a primeira parada dessa estação de sofrimento e dor, “onde a areia engolia as palhoças e os coqueiros”, “os búzios das canoas chamavam o vento e para Missunga chamavam também a voz de Guita” (Idem). No Cajuúna, a segunda parada, ao contrário, não é em Guita que ele pensa, mas em “Felicidade”, a cabana onde vivia com Alaíde, em Ponta de Pedras. No Pesqueiro, terceira parada, Missunga decide retornar: “E no Pesqueiro, quando a maré enchia, as vagas luzes do povoado se apagavam e as canoas no igarapé ficavam mortas na sombra, subiu o pano da curicaca” (p. 287). Missunga quis voltar, como se, lentamente, iniciasse a elaboração do seu luto - penso aqui, evidentemente, no texto de Freud, “Luto e Melancolia” (1919) - como se ele quisesse, aos poucos, dar as costas à morte, representada aqui na figura dessas canoas, “mortas na sombra”. A maré alta coincidindo com a chegada da noite, lhe impulsiona para a partida, em vez de mantê-lo preso ali, como um morto em meio às canoas “mortas na sombra”. Como se a lembrança de “Felicidade”, que lhe ocorre no Cajuúna, tivesse posto em movimento este processo de elaboração, dando início ao que Freud chamou, no texto que mencionei acima, de “trabalho de luto”.
Entretanto, as coisas não são tão simples assim: Alaíde, pela primeira vez, deseja ficar, ali, no Araruna, como se o retorno de Missunga significasse, para ela, a presença, a sombra da outra, da morta. Alaíde, atormentada pela dúvida, pelo ciúme, não deixa de acusar Missunga de fazer dela uma fuga das lembranças de Guita.
Assim, a primeira imagem de Soure, não é a da cidade que o inspetor Dalcídio conhecia bem, mas as das praias, onde Soure faz fronteira com o infinito do oceano. Aqui, o mar - na sua profundeza abissal - é mais o observador, meio distanciado, da luta de Missunga consigo mesmo e com seus remorsos. Araruna, Cajuúna e Pesqueiro, assim nesta ordem, parecem as “estações” do seu auto-calvário, da sua auto-flagelação. Com isso, não quero comparar Missunga com a figura de Cristo, mas remeter ao fato, de que processos de culpabilização também contém fortes elementos sado-masoquistas. Estes elementos é que podem inviabilizar o luto e conduzir o sujeito a precipitar-se na melancolia. Eis o risco que ronda freqüentemente a figura de Missunga desde a morte de Guíta: o de não poder completar seu luto e ser arrastado pelo mar revolto da melancolia.
IV
Oito capítulos depois, isto é, no capítulo 50, Soure reaparece na narrativa. Desta vez, já não estamos mais na companhia de Missunga, mas sim na de Manuel Coutinho Filho, herdeiro e sucessor do pai nos negócios e na política. Manuel Coutinho Filho, de passagem para Belém, para depois embarcar para o Rio de Janeiro, está agora em Soure, na cidade e não mais nas praias: “Abriu a janela. Não era a madrugada, era o luar. Soure dormia embalada pelo vento, pela voz da baía, num leito de mangueiras” (p. 327). Imagem inicialmente idílica, mas que é imediatamente desfeita pela lembrança de Guita: “Haveria muito tempo para se libertar da morte de Guita” (Idem). A morte de Guita significará assim, o seu e mais recente e poderoso fantasma, talvez o mais pesado, o mais difícil de suportar e, por conseguinte, de se libertar. Missunga, aliás Manuel Coutinho Filho, continua o seu tormentoso “trabalho de luto”. Guíta continua assim representando uma idéia de inocência, da pureza de um amor de fortes tonalidades românticas, que ele, Manuel Coutinho Filho, ex-Missunga, foi incapaz de reconhecer na sua grandeza e acolher na sua plenitude. “Por que tantos mortos no seu caminho?” pergunta-se Missunga.
A partir desse momento, posso acompanhar a personagem por um caminho que me foi e me é profundamente familiar: aquele que da Terceira Rua de Soure segue em linha reta até o bairro de São Pedro, bairro dos pescadores, margeado bem de perto pelo rio Paracauari, que forma, aqui e acolá, pequenas enseadas, “boas pra banho”, como dizíamos:
“Andava pela terceira rua de Soure. As mangueiras lhe ofereciam uma paz de orvalho e resina, [que] se derramava dos frutos verdes e das folhas. Em ordem na rua, pesadas de sossego e mangas. Com que maternidade, com que força de criação a terra as sustentava e as deixava ao luar, na rua da pequena cidade marajoara”.
Missunga, nessa “flânerie” noturna, com profundos traços melancólicos, é atormentado freqüentemente pelo passado próximo e distante. Soure, envolta na imagem da “maternidade”, lhe relembra o aborto de Alaíde e Guita, grávida e morta. A cidade como “mãe” em contraposição às maternidades frustradas das duas mulheres de sua vida, acenando, radicalmente, para a sua própria paternidade frustrada. Não por acaso, a lembrança da mãe também retorna:
“Voltou-se para o fundo de mangueiras em que Soure se deitava. Teve de repente, como um calafrio, a lembrança de sua mãe. Tentou reconstituir a cena da sua morte, mas perdeu os traços essenciais daquela face, daquela voz, daquela expressão de sono, fadiga e desgosto que seus olhos deixaram” (p. 328).
A lembrança da mãe - objeto do desejo e, como tal, definitivamente perdido - acentua em Missunga, o sofrimento doloroso que Guita e Alaíde, os objetos do seu amor, isto é, os substitutos do objeto do desejo, acabam por lhe provocar. Daí a presença cada vez mais insidiosa da morte, da própria morte: “As mangueiras continuavam serenas como se quisessem sepultá-lo com as suas folhas tão inumeráveis como a terra que cobria Guíta, como as estrelas desfeitas ou sepultadas no céu, berço e cemitério de estrelas” (p. 328).
Soure se torna então, o cenário onde Missunga alucina a própria morte:
“Todos os fantasmas rodeavam-no, penduravam-se na rede. O sono precipitou-se, rio vertigioso e vermelho onde boiava como um cadáver. Evidentemente estava morto, saía-lhe o sangue pelos cabelos, espumando. Estou morto, dizia. Por que os mortos não me reconhecem? Por que entre eles não vê Alaíde, não distingue a mãe e Guíta carregando um enorme tronco no ombro” (Idem).
A cidade às margens do rio torna-se assim o palco onde os mortos de Missunga ressurgem e que nem as imagens do oratório da casa do parente, em Soure, onde ele dorme, são capazes de apaziguar. Estes santos lhe lembram outros santos, os de sua mãe que, “por serem dela, santos verdadeiramente” (p. 329), mas que depois de sua morte, como que perderam sua santidade, “ficaram vazios e desamparados”, tornaram-se apenas “despojos de uma fé que não se podia arrancar daquela carne triste de mãe, daqueles nervos, enfim, parados” (Idem). A religião não consola Missunga e nem é capaz de despojá-lo de seus fantasmas. A sua identidade mais recente, como Manuel Coutinho Filho, é continuamente recoberta pelos fantasmas que lhe lembram suas outras raízes, sua outra identidade, uma outra “realeza” evocada pelo significado africano de seu apelido Missunga: não a realeza de Manuel Coutinho Filho, que se estabelece em meio à expansão capitalista na Amazônia, mas a do garoto ainda integrado às águas e à floresta, que reina entre os animais e as garotas bonitas, que rondavam a casa de Paricatuba.
A Soure das margens do rio, esta Soure-mãe com suas ainda enormes mangueiras, não pode, tanto quanto Guíta e Alaíde também não o poderiam, apaziguar a dor de Missunga. Manuel Coutinho Filho parte de Soure em relação ao Rio de Janeiro, levando junto seus fantasmas. “Soure desaparece” quando o barco a motor entra aos poucos na baía de Marajó, diz o narrador. O capítulo 50 se encerra e com ele, não é apenas Soure que desaparece, mas também Missunga, que não voltará mais a aparecer nos capítulos restantes do livro, assim como desaparecerá da própria obra de Dalcídio.
Referências Bibliográficas:
Freud, Sigmund. “Trauer und Melancholie” in Metapsichologische Schriften, Frankfurt: Fischer, 1992.
Jurandir, Dalcídio. Marajó. 3ª. ed., Belém: CEJUP, 1992
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