80 OUTUBROS E PRA QUÊ?
o poeta enquanto jovem, José Varella Pereira (Belém do Pará, 30/10/1937).
para minha companheira Palmira, com amor.
Dos tais que detestam Papai Noel sobre todas as coisas
Aquele propagandista lojista a presentear filhos de rico
Esquecendo o presente, passado e futuro
das pobres criancinhas da Criaturada grande de Dalcídio.
Me lembro da trapalhada natalina de minha santa mãezinha
Sustento familiar da lenda a crédito do velho farsante
Ela com amor e arte fez pra mim lindo pássaro encarnado
Amei sobretudo dar o flagrante e desmentir a ingênua estória
Se já não bastasse a Cegonha competir com aves amazônicas
na entrega de curumins em vilas e lugares aportuguesados
O pai Noel diz-que tinha atravessado o Mar-Oceano
Só pra me trazer uma lembrança civilizada e aos outros nada
Naquela vila que nem vila era: a vilarana de minha infância.
.
Eu malvado a bagunçar ensaio das Pastorinhas das meninas
Desespero de minha mana pastora da estrela de Belém
Presépio vilarinho de algodão e papel crepon...
Em junho a vila havia mais alegria: beijos de moça e arroz doce,
fogueiras nas ruas, foguete, boi-Bumbá e cordões de pássaro.
Ilha filha da pororoca Marajó da minha avó mangabeuara
que morreu de parto
Papai tinha sangue cabano, ele casou sua natividade tapuia
com os olhos azuis da galega minha mãe bárbara
convertida católica Apostólica Romana
Dois rios profundos correm para o mar de minhas heranças
Vidas e mortes que se confundem neste ser que vos fala
Versos estúrdios afloram a bordo de uma vida singular
bairro do Fim do Mundo entre chuvas e piracemas
desde o primeiro dia de fecundação
depois da primeira noite do mundo
quando o Mito habitava o fundo do rio de Heráclito
no qual não se mergulha duas vezes:
mistério do carocinho de tucumã do menino Alfredo
onde o segredo da vida e da morte se esconde que nem
num jogo de búzios
(não é à toa que eu e minha cara metade princesa da Guiné;
usamos alianças de tucumã, o espinhoso 'Astrocarium vulgare'
cujo doce fruto dá o sumo dourado da divina Canhapira:
alquimia do casamento de índios e negros no mocambo).
Nasci jito feito peixinho no bucho da Cobragrande
minha mãe pariu-me na pedra da maternidade da Santa Casa
Nove meses de gestação normal e aquele medo ancestral
Que será que será que vinha a furo?
Grito de dor da mãe noviça, berro de susto do recém nascido
Nascemos todos e todas entre fezes e urina: forte coisa é o sangue!
Até ali a travessia da baía em canoa à vela
A bela e a fera rezando a pedir águas calmas e pastos verdejantes
Nossa senhora dos Navegantes
Outubro é mês de vento verão, verão! Banzeiro
Preces e aflição. Valei-nos Senhora da concepção!
Tempos depois exílio na cidade grande primeira ceia de natal
Barraco alugado em riba de lamaçal no igapó malmente aterrado
De véspera no jornal o filho orgulhoso repeliu gorda propina
oferecida gentilmente por contrabandistas de café:
informado sobre o caso o editor dissera que o jovem repórter
em apreço era puto novo...
Porém na mesa de natal havia só uma laranja para dois cristãos.
Nada mais.
Belém, Belém sinos repicavam e fogos estrugiam no ar febril.
Porém àquela feliz noite de Natal mãe e filho
Foram dormir e sonhar apesar de tudo pensando
que a vida é bela e o mundo bom.
Já dizia o índio condenado na visitação do Santo Ofício a Bahia:
"Deus fez o homem para dormir e sonhar" com a Terra sem Mal.
80 Outubros e pra quê?
Pra comer peixe frito com pirão de açaí nas varjas do Paraíso
Isto sim é felicidade de verdade não as ilusões da Cidade.
Muita merencendência paresque do caboquinho
Quando jito no Fim do Mundo a dar os primeiros passos
Lá no Itaguari minha vilarana de infância
Confronte à ilha do Quati onde no fundo mora a Cobragrande
porto imaginário do Navio Encantado.
A bem dizer eu morri afogado na beira do rio Marajó-Açu
aos sete anos de idade: a Iara queria me encantar, será?
80 Outubros e pra quê?
Pra saber paresque quem inventou o mundo
Que não se pode querer pirulito sem ter dinheiro
pra pagar...
Achar por acaso passagem na terceira margem do rio
Entre o dito Fim do Mundo e a Terra sem Mal além do horizonte.
Ou seja, descobrir o lio entre a dura realidade e o mito bacana
Subir ao espingarito das nuvens por riba do arco-íris do céu
Encostar a canoa doida no porto da mãe da Chuva.
Quando menino inocente prometi ficar pra semente
Ser paresque uma parruda Samaumeira sobre varja chã.
Viver a semear tempo ao deus dará do vento
Contar mil e tontas vezes o que ninguém quer saber
Vagar pelo vasto mundo sem arredar pé do meu chão
Nunca deixar de me perguntar acerca do porquê das coisas.
80 Outubros e pra quê?
Lao Tsé venerável mestre do Tao diz-que já nasceu velho
Eu podia morrer jitinho que nem passarinho enquanto anjo
uma das 1001 ciladas em que se ceifam vidas de crianças
Eiras e beiras onde Judas perdeu as botas.
Tal qual tio Manuel nasceu morto, gêmeo de meu pai caboco
cujo parto custou a vida de minha avó tapuia
Eu queria morrer tomando vinho de açaí
Olhando passar o cordão vermelho em revoada por aí
Ave guarás! Espíritos caruanas invisíveis a olhos profanos
Ir-me sem queixas ao cair da tarde de um dia de domingo
Segunda-feira a despedida desta minha lida
Ao som de atabaques do além e carimbó festeiro do aquém.
80 Outubros e pra quê?
O jovem Dalcídio em seus 20 e poucos anos
Quando morresse queria ser enterrado no solo de sua Cachoeira
Beira do rio Arari em frente ao chalé do Chove
Sob a sombra da árvore de infância Folha-Miúda:
mas quando ele morreu no rio de Janeiro fevereiro e março
Não sabíamos do testamento sentimental feito cedo demais.
Eu porém enquanto ainda era gente
Desejei passar pelo rito do fogo como no sagrado Ganges
Cinzas ao vento paresque sementinhas emplumadas
da gigante árvore da chuva a cair sobre campos do Marajó
A fertilizar verdes campinas para pasto de rebanhos e matinadas.
Masporém se na vida eu já não me pertenço mais
Que dirá na morte. Misteriosa que nem a primeira noite do mundo
que não sabe se é fim ou começo doutro dia.
80 Outubros e pra quê?
Agora mesmo é que eu não sei
Nunca soube ao certo quem eu sou
Donde vim e aonde vou
Desconfio apenas que esta vida é minha chance
de descobrir que a Vida é eterna enquanto permanece
que nem a lagartixa mágica Tamaquaré mundiando a presa
Sentado à beira do rio a ver navios até o fim do dia
Ai de mim Quixote tão corrupio, Sancho tão catavento
Cavaleiro e escudeiro da ilha da Barataria ao mesmo tempo.
Penitência de frade velho praticante zen-bubuia
A desfiar fibra por fibra pecados de mundos a fundo perdido
Se eu me chamasse Raimundo que nem meu bisavô
Voluntário da pátria e devoto de Santa Rita de Cássia
teria plagiado o poeta Carlos Drummond de Andrade
mas não seria rima nem solução.
Na mocidade fui mui desassossegado
A correr atrás de gado do vento e papagaio caído do ar
com linha de cerol por ruas e cercas de quintais.
Que farei eu agora destes meus inacreditáveis eus?
As eras já me pesam nos costados
Eu batelão velho roído de tempo
Eu palimpsesto comido de traças
Casa das canoas furadas carregadas de Drogas do sertão
Assombração de tropas de resgate...
Barco arruinado na tapera do estaleiro do avô
Ando devagar porque na pressa caí do cavalo
Esperei passar a raiva junto com o tombo
A mocidade se foi montada num animal arisco e mal domado
Deixei esfriar o sol e esquentar a cerveja com as desilusões
Fui embora na voadeira veloz que dobra o estirão.
Paresque que nem o prodígio de Josué na santa Bíblia
hei de frear o Sol e a Lua até conquistar a Terra sem Mal
Ser instrumento da sua paz verde que quero ver encarnada.
O céu a desabar sobre a cabeça dos guerreiros atônitos
Fado da vingança e o pesado fardo de sangue.
Meu avô festejou 60 anos de idade como quem partiu ou morreu
Então ele parou o relógio do Chalé e a maré no rio fez tipacoema
O branco velho dobrou a casa dos 100 sem se dar conta
Contam que a partir dali ele passou a vida em brancas nuvens
Mas de repente se foi assim como chegou com a tipografia,
a biblioteca e as revistas Chácaras e Quintais pra nunca mais.
No dia dos meus 30 anos chorei feito criança, mais perdido
que cachorro caído do caminhão de mudança...
Que diabo eu havia feito da minha vida?
Só e mal acompanhado encolhido a um canto a curtir
Desemprego, consumição, depressão e síndrome do pânico:
No fundo do buraco com minha inútil revolta
Eu morri de vergonha: foi paresque minha segunda morte.
Não foram três dias entre os mortos, mas três anos depois
Ressuscitei em Brasília, conheci o amor da minha vida
e a vida continuou pra mim melhor que antes...
E lá vieram filhos, a filha linda como a aurora e netas maravilhosas,
noras divinas e um filho temporão quase neto
E um menino grande que já se foi e dele a gente fala todo dia
45 anos de cumplicidade: dores e alegrias
minha Senhora de Nazaré mãe dos filhos meus.
Aos 60 eu já queria libertar geral as tribos perdidas
Ledo engano! Mais uma vez sentar e aprender, aprender, aprender...
Quem me dera agora só um tempinho a mais
Não pra rir nem pra chorar, mas compreender.
80 Outubros e pra quê?
Para enfim amansar meus sentimentos e saber dizer, de verdade
Muito Obrigado do fundão do coração
A todas e a todos amores da minha vida.
Masporém, muita atenção mea gente. Isto não é uma despedida.
É tão-só um álibi de caboco velho
pra pedir prorrogação de tempo por prazo indeterminado.
Viver é lutar com amor e fé na humanidade!
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